Revista Philomatica

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

O Egito sob o olhar de Napoleão

Embora chova torrencialmente e as previsões não façam outra coisa que anunciar mais chuva, até sábado, dia 19, ainda é tempo para se matar as saudades do sol e ver uma pequena amostra da aventura empreendida por Napoleão no Egito, em fins do século XVIII, na exposição O Egito sob o olhar de Napoleão, no Itaú Cultural, na Avenida Paulista, hoje, lugar para se andar com guarda costas, considerando-se os gostos e prazeres do cidadão.
Napoleão é ímpar e exatamente por isso faz parte daquela categoria de homens que desperta amor e ódio, um espécime que poderia muito bem ter sido definido por Vautrin em suas lições a Rastignac, um homem que se fez pelo talento. Nesses casos, afirma Vautrin, dobra-se ante o talento, acaba-se por odiá-lo, tenta-se de todas as formas caluniá-lo, até mesmo porque talento não se divide. Face ao talento, ao gênio, não há meio termo, se é ou não talentoso, genial. Se o homem talentoso persiste, então é adorado. Como talento é coisa rara, àqueles que não fazem parte desse pequeno grupo de eleitos - caso sejam arrivistas, é claro - não sobra nada além da corrupção e do ódio.
Paul Jonhson, historiador inglês, afirma que depois de Cristo, Napoleão é o indivíduo sobre quem mais se escreveu livros; também já ouvi de um professor que essa informação é velha e que Napoleão há muito está no topo da lista.
Curiosidades à parte, o fato é que o corso tomou a dianteira em muito do que fez. Dentre suas inúmeras iniciativas, o Código Civil, por exemplo, que teve um êxito sem precedentes e influenciou a vida de milhões de pessoas é - ainda hoje - modelo para vários paises do mundo. O divórcio que lá já estava pelos idos de 1804, por aqui, só apareceu em 1977!!! Mas reclamar de quê? Isso é coizinha à toa, sem importância, prova chinfrim da nossa sociedade célere e moderna. Nós tupiniquins nos preocupamos - sempre - com algo de maior vulto, a exemplo dos aumentos que variam de 62 a 123% para deputados e outros figuras da Casa da Mãe Joana, em regime de urgência... Isso sim, leitor, algo importantíssimo para a nação, decisão crucial que se não fosse tomada agora, às pressas, nos afundaria a todos em miséria e caos profundo às vésperas do Natal.
Mas revenons à nos moutons: Napoleão entrou para história não só por razões ligadas à política e à economia, mas também pela singular redescoberta da civilização egípcia. Atribui-se a ele, então general e comandante-em-chefe do exército francês quando da ocupação do Egito, em 1798, a célebre frase dita aos seus soldados: "Do alto destas pirâmides quarenta séculos vos contemplam".
A expedição ao norte africano, embora fosse parte de uma estratégia político-militar de confrontação com a Inglaterra, que bloquearia o contato desta com a Índia, também refletia a influência de suas leituras sobre o Mundo Antigo, incluindo-se aí a trajetória de Alexandre, o Grande.
Parte do legado dessa aventura, a ocupação do Egito, é um conjunto de 22 volumes, publicados entre os anos de 1809 e 1822, intitulado Description de l'Egypte, base da mostra exibida no Itaú Cultural, em São Paulo. A instituição possui uma raridade, uma das poucas coleções completas remanescentes da publicação original em todo o mundo. Além dos volumes parcialmente digitalizados, há matrizes de gravuras em bronze vindas do Museu do Louvre e cinco peças de uma coleção particular.
Através dos livros tem-se um panorama do Egito do século XVIII, sua vida, seu povo, seus costumes e suas ruínas, muitas das quais à época ainda adormecidas sob a areia escaldante do deserto.
Acompanhando a força militar napoleônica composta por 34 mil soldados, havia uma missão científica de 167 estudiosos, dentre os quais, nomes como Monge, Laplace, Bertholet e Dominique Vivant Denon, além de escultores, impressores, artistas, astrônomos, engenheiros, geógrafos, orientalistas, médicos, zoólogos, botânicos, escritores, intérpretes etc.
Diz-se que Napoleão determinou cuidados especiais aos estudiosos e que dentre outras disposições, ordenou que os animais e os sábios deveriam permanecer no meio da expedição, protegidos pelas colunas de soldados ao lado.
Assim que chegaram ao Egito, os franceses criaram o Instituto do Egito, dividido em quatro áreas, responsáveis pelo mapeamento e registro de impressões não só do Estado Moderno, mas principalmente do que restou da antiga civilização. Parte do resultado deste trabalho são os estudos que dão base à mostra.
Esse olhar francês sobre o Egito reflete na reconstrução de detalhes de esfinges, na adição de cores que já não faziam parte das pinturas originais de templos e colunas e, segundo o curador da exposição, Vagner Carvalheiro Porto, na sensualidade exagerada com que foram retratadas as mulheres.
Na exposição, alguns volumes de um metro e meio de altura, estão abertos em página fixa e podem ser vistos através de uma vitrine. As ilustrações, vistas nesses volumes, apresentam, ao lado, as matrizes em cobre vindas do Louvre, correspondentes aos desenhos.
Cerca de vinte páginas de cada livro foram fotografadas e podem ser vistas em tela plana, folheadas virtualmente, tecnologia que possibilita, inclusive, a ampliação das gravuras para a análise de detalhes. Surpreendente é a delicadeza de alguns visitantes ao tocar em equipamento tão sensível. Tem-se a impressão de que estão tentando fechar a porta emperrada de uma Fusca anos 70: resultado? impossível folhear as páginas de alguns dos livros virtuais e as gravuras, assim como as ruínas, jazem sob mistérios... (Ao menos no dia em que lá fui, foi o que presenciei; mas olhem, nada que diminua o brilho da iniciativa.)
Também faz parte da exposição um dos dois volumes de Voyage dans la Basse et la Haute Egypte, publicados pelo barão Dominique Denon, em 1802, antes da publicação do conjunto da expedição. O sucesso da publicação de Denon foi tanto que motivou a publicação da coleção Description de l'Egypte, o que fez com que os olhos do mundo se voltassem então para o Antigo Egito. Uma melhor compreensão da história do país só foi possível depois de Champollion decifrar os hieróglifos, em 1822, também a partir da Pedra de Rosetta, recolhida pela expedição de Napoleão.
A exposição que segue até o dia 19 de dezembro, está dividida em cinco temas, mais ou menos como a Description: cartografia, religião, arquitetura, o Estado Moderno e História Natural.
" ___ Qué um chocolate?
___ Ichi, tô por aqui ó, meu lanche du Mac ainda tá na garganta.
___ Te falei, num falei? Ainda quis tomá duas coca...
___ Tô afim de i nu banheiro...
___ Fala cu moço lá de paletó preto, ele deve sabê onde é..."
Para quem puder abstrair o papinho adolescente século XXI, mergulhar nas gravuras do XVIII, cair de cabeça no Mundo Antigo é algo formidável.

Imagens: Napoléon et le Sphinx, Jean-Léon Gérôme, 1862; Monuments de l'Egypte, Charles-Louis-Fleury Panckoucke, ca. 1821-1824 e Napoléon en Egypte, Jean-Léon Gérôme, ca. 1867-1868.

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

A Semana: a fusão do útil e do fútil

Em 6 de janeiro de 1855, Machado de Assis, aos 16 anos, publicou no jornal Marmota Fluminense, o poema Palmeira, dedicado a seu amigo Francisco Gonçalves Braga. Essa colaboração marca o início de uma atividade jornalística que se prolongaria por toda sua carreira, salvo raros intervalos. Seus primeiros ensaios em prosa, para a mesma Marmota Fluminense, de Paula Brito, foram em 1856. Nesse mesmo ano - e até 1858, empregou-se na Marmota como tipógrafo, o que o aproximou mais do jornal e das letras e onde também conheceu Manuel Antônio de Almeida, de quem seria amigo até a morte deste, em 1861.

Ainda em 1858, torna-se revisor no Correio Mercantil, onde publica a novela chamada Madalena e seu primeiro ensaio, O passado, o presente e o futuro da literatura, marco inicial de uma atividade crítica que se estenderia até 1879 e que nos legou dentre outros, o singular Instinto de Nacionalidade, texto crítico publicado em 1873, no periódico O Novo Mundo. Ali, com a intenção de avaliar a produção literária da época, Machado de Assis, sustenta que quem olhar para a produção literária da segunda metade do século XVIII, seguramente irá perceber certo instinto de nacionalidade e a presença de certa cor local; enfoca as relações entre nacionalismo e literatura e questiona aqueles que consideram o primeiro como critério para se questionar e julgar a segunda. Dali vem a célebre afirmativa: "O que se deve exigir do escritor antes de tudo, é certo sentimento íntimo, que o torne homem do seu tempo e do seu país, ainda quando trate de assuntos remotos no tempo e no espaço" (ASSIS, 1973:804).

Logo após sua passagem pelo Correio Mercantil, vê-se um crescente aumento de suas colaborações em inúmeros jornais e revistas, tais como o Paraíba, de Petrópolis, e O Espelho (1859). Em 1860, a convite de Quintino Bocaiúva, entra para o Diário do Rio de Janeiro. Já considerado jornalista, trava conhecimento com vários intelectuais da época. No Diário do Rio de Janeiro, assina a coluna "Comentários da Semana", crônicas onde Machado fala das novidades teatrais e literárias e, sobretudo, de política. Depois, no mesmo Diário, assinaria a coluna "Ao Acaso", estas, mais amenas no que tange à política. Sua participação em diversas publicações é intensa: passa pela Semana Ilustrada (1860-1876), a revista O Futuro (1862-1863), ainda na década de 60, o Jornal das Famílias, a partir de 1863. Anos mais tarde, deixa o Diário do Rio de Janeiro e assume o cargo de adjunto do diretor do Diário Oficial. Passou ainda pela Ilustração Brasileira (1876-1878) e O Cruzeiro (1878).

Em 1883, Machado começa uma longa parceira com o jornal Gazeta de Notícias, donde sairá as crônicas mais famosas e saborosas de Machado. Ali, escreve para a coluna "Balas de Estalo" (1883-1886), "Bons Dias" (1888-1889) e a "A Semana"(1892-1897).


Geralmente preteridas em relação a seus romances, contos e poemas, suas crônicas, não só são reveladoras de uma época, descrevendo modos e costumes da sociedade carioca do século XIX, como também exibem sua habilidade e talento no trato do texto jornalístico. Na quase totalidade desses escritos - e em correspondência à identidade da crônica, ao narrar, o cronista se debruça sobre acontecimentos periféricos do noticiário, de cuja estranheza extrai um efeito ficcional. Na maioria das vezes as manchetes do dia passam à larga de sua atenção. Em crônica de 13.8.1893 (ASSIS,1961:437) Machado revela seu processo de criação: "Eu gosto de catar o mínimo e o escondido. Onde ninguém mete o nariz, aí entra o meu, com a curiosidade estreita e aguda que descobre o encoberto. [...] eu [aperto] os meus [olhos] para ver cousas miúdas, cousas que escapam ao maior número, cousas de míopes". E acrescenta: "A vantagem dos míopes é enxergar onde as grandes vistas não pegam".

Pensando na semana, lembrei-me de "A Semana" e tracei paralelos:

Na Feira do Livro, da USP. Levas, multidões emaranhadas, empurra-empurra, filas, catas de livros ao léu, filas e paciência, paciência e filas, sacolas, muitas sacolas, esfrega-esfrega, ora meio sem querer, ora querendo mesmo!

Fora, um ar mais fresco e a canabis invadindo o espaço e entorpecendo as folhas das árvores, a tiazinha que vende trufas e ri às bandeiras despregadas, as raras borboletas azuis que, ao meio-dia, já não sabem se voam em agradecimento ao sol que teima em apagar os vestígios da chuva do dia anterior ou porque estão mesmo zonzas pela fumaça.

Logo à frente, o pedreiro, que palita os dentes após o almoço observa curioso o dois mocinhos das letras que caminham de mãos dadas jurando carícias eternas. Bem diferente das últimas agressões na Paulista, mostra de intolerância não diferente daquela narrada por Machado em sua crônica de 1896 (ASSIS, 1961:103-107), relato da história de uma amiga que se mata para que a outra não padeça. A outra era diariamente espancada, por causa da "amizade" entre elas. Ambrosina, a que buscou o veneno e deu fim à vida, quis vencer a morte e deixou rascunhado para a amiga: "Adeus, Matilde; recebe o meu último suspiro".

Nos jornais, a absolvição (já previsível; quem achou que seria outra a sentença?) do iletrado Tiririca. Imagino as estripulias a partir de janeiro na Casa da Mãe Joana, digo, no Congresso nada sério. Aqui também, não me esqueci da "Semana": em 1873, no Senado, o senador Jobim evoca Voltaire, retomando sua correspondência ao Duc de Richelieu. De arrasto vem à tona Montesquieu, com o De l'esprit des lois e Duvergier de Hauranne. A partir de janeiro pas de Voltaire, pas de Montesquieu, pas d'Hauranne e pior que tá, fica! Talvez alguma discussão sobre a Florentina de Jesus... arrhhh!!!

Dia seguinte: Como tudo agora me faz lembrar as rosas de Malherbe, ouço da janela: ia, ia, ia, queremos .... Atônito, pensei: meu Deus, o povo pede poesia!? Saí, na varanda constatei: não era poesia e sim moradia! Voltei à leitura desencantado e triste achando que até a poesia vive ce qui vivent les roses, l'espace d'un matin.





ASSIS, Machado de. Obra Completa. Rio de Janeiro: Companhia José Aguilar Editôra, 1973, Vol. III.

______. Obra Completa. Rio de Janeiro: Editora Jackson, 1961, Vol. 28.

______. Idem.

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

O mito da originalidade

As eleições estão quase terminadas. Lá pelo final do mês saberemos que tipo de erva daninha haverá de invadir nosso canteiro. Voltaire já dizia: "Il faut cultiver notre jardin", portanto, ainda que a tiririca insista em infestar seu jardim, saiba que você ficou livre de plantinhas tão ou bem piores, o que já é um consolo, considerando-se que o solo anda tão solapado.
Não pretendia começar pela política torva e sanhuda, porém, tal qual aquela borboleta que pousava ora numa flor ora noutra e que Machado comparou a si mesmo à cata de ideias, lembrei-me de algumas eleições e presidentes - sem nostalgia, absolutamente. Recordei-me de nomes e palavras que usávamos quando nos referíamos a este ou àquele. Logo, pensei: aquele que se aventurar pelo universo literário há de se deparar com uma multiplicidade de nomes para falar de seus diversos momentos. Tentei, não sem esforço, me lembrar das várias designações literárias (que coloco aqui só para reforçar a memória): o humanismo e sua emancipação do espírito; o barroco e seu volume; o classicismo e toda sua ordenação do universo; as Luzes e a emancipação da razão; o romantismo com sua exaltação do eu e o sentimento ligado à natureza; a modernidade e a procura pela originalidade; o realismo e a construção do verdadeiro; o simbolismo e suas correspondências; o surrealismo, seus fantasmas e suas provocações, e, finalmente, a cultura contemporânea com suas contradições, suas experiências e, muitas vezes, sua falta de rumo.
Tudo isso para chegar num assunto que me intrigou ao longo da semana quando li um texto em que Borges discutia sobre o mito da originalidade. Como é sabido, até o classicismo, adicionava-se mais um elo à corrente, ou seja, recontava-se a mesma história, utilizando-se ora ou outra de novas formas, por exemplo. Racine reescreveu a Fedra, de Eurípedes, em versos alexandrinos e ninguém o acusou de plágio!
Afinal, quando foi que o escritor sentiu o escrúpulo da originalidade? Em que momento, durante seu vôo de borboleta, sentiu-se constrangido em pousar em uma ideia-flor do jardim alheio e dali subtrair seu pólen?
É sabido que Platão e, posteriormente, Aristóteles, tomaram emprestado frases e metáforas de Homero, Hesíodo, Píndaro, Eurípedes etc. Até então, tudo bem: nada de leis regulatórias e direitos autorais, portanto, nada de plágio. Séculos mais tarde, ainda antes da era cristã, continua tudo parecido, os escritores ainda não estão conscientes da ideia de originalidade, porém, alguns poucos já começam a justificar seus empréstimos.
Um belo exemplo disto, conforme observado por Pietro Citati, escritor e crítico, aclamado como um exímio leitor e capaz de apreender e comunicar profundas interpretações dos textos clássicos, o apóstolo João, autor do Apocalipse, não foi nem um vidente ou um visionário: seu mundo era repleto de livros. Inconscientemente, João nos diz em versículos famosos, que ele também teria se apropriado do texto de outrem: ele come[1], engole livros cujo papel penetra em seu ventre: Êxodo, Isaías, Ezequiel, Daniel, Zacarias, Joel ... etc. João combina, mistura, ordena, reorganiza e refina imagens construidas por outros profetas, dos quais ele se apropriou. Como numa espécie de embriaguez alucinatória, João processa o que havia engolido. E assim, Apocalipse, o texto, que nasceu não de uma experiência visionária, tornou-se o maior texto visionário do Ocidente.
Décadas antes do Apocalipse, de João - escrito, acredita-se, por volta do ano de 96 - Sêneca justifica sua maneira de apropriar-se das frases de Epicuro. Há pouco sentido, afirma ele, redizê-las sob forma de citação, uma vez que não são propriedade intelectual de Epicuro, mas bem comum de sua escola, ou seja, já eram uma espécie de domínio público. Sêneca afirmava ainda que é um sinal de pobreza de espírito querer manter suas próprias ideias, sob a autoridade dos outros. E acrescentava: é necessário assimilar pensamentos e ideias, sem contudo, viver sob a dependência dos livros ou dos seus autores, fazer sua qualquer noção adquirida, sem se apegar a um modelo, sem, a cada volta, olhar para trás para garantir a aprovação do mestre.
Um século depois de Sêneca e, pelo menos meio século após o Apocalipse, de João, veio Lucius Apuleius (Apuleio), cavalheiro rico da África, considerado o maior escritor em prosa latina de todos os tempos. Escreveu Metamorphoseon Libri XI (Onze livros de metamorfose), mais conhecida como O asno de ouro . Para os especialistas, O Asno de Ouro é um plágio, ou antes a combinação de numerosos plágios de diversos escritores, de modo que, para Apuleio, a escrita não é, estritamente falando, uma criação, mas a metamorfose de uma frase, de uma metáfora, de um padrão já utilizado por outros.
Apuleio, diz Pietro Citati, era um plagiador, um artista marqueteiro, mas Metamorphoseon Libri XI é provavelmente o romance mais original que já foi escrito, sem o qual, jamais poderíamos imaginar nem Decamerão, nem a pintura do Renascimento italiano, ou a mística ocidental de todas as idades, nem Dom Quixote, ou A Flauta Mágica, ou Nerval ou mesmo Wilhelm Meisters Lehrjahre (Os Anos de Aprendizado de Wilhelm Meister), de Goethe.
Para encurtar a prosa e também porque hoje o tempo é curto, continua valendo a velha máxima: quem conta um conto aumenta um ponto. E acrescento: até que se coloque o ponto ou posponto, em geral, há muita vírgula, muita pausa e muita história, donde a intertextualidade, mecanismo carregado de diferentes sentidos e utilizado à exaustão até tornar-se uma ideia ambígua do discurso literário. Isso porque o processo intertextual apresenta a vantagem de reagrupar diferentes manifestações de textos e verificar suas ligações e dependências recíprocas, de maneira a utilizar um texto em um outro texto[2]. A isso, leitor, chame como quiser: diálogo, trama, tecido, biblioteca etc, etc... Falo da intertextualidade na literatura, porém, entre as artes a intertextualidade está presente e é intensa. A arte pop, por exemplo, já mostrou a Mona Lisa, de maneiras que Da Vinci sequer imaginou. E até mesmo Marilyn Monroe caiu no jogo intertextual.


[1] Apocalipse, Capítulo 10, versículos 8, 9, 10 e 11. Diz João: "8. E a voz que eu do céu tinha ouvido tornou a falr comigo, e disse: Vai e toma o livrinho aberto da mão do anjo que está em pé sobre o mar e sobre a terra. 9. E fui ao anjo, dizendo-lhe: Dá-me o livrinho. E ele disse-me: Toma-o, e come-o, e ele fará amargo o teu ventre, mas na tua boca será doce como mel. 10. E tomei o livrinho da mão do anjo, e comi-o; e na minha boca era doce como mel; e, havendo-o comido, o meu ventre ficou amargo. 11. E ele disse-me: Importa que profetizes outra vez a muitos povos, e nações, e línguas e reis.
[2] SAMOYAULT, Tiphaine. L’intertextualité – Mémoires de la littérature. Paris: Armand Colin, 2005 (Littérature 128), p. 5-8.

Imagens (todas disponíveis no Google Images): St. John at Patmos (1518), de Hans Burgkmair the Elder (1473-1531); Mona Lisa (1988), de Paul Giovanopoulos; Marilyn Monroe e sua referência intertextual.

quinta-feira, 30 de setembro de 2010

O carijó Essomericq e a Festa Brasileira em Rouen

Há dias, quando comentei as estripulias sexuais do Imperador D. Pedro I e, obviamente, os embaraços causados pela alta taxa de fecundidade em cama alheia, mencionei en passant um caso curioso nas crônicas da extensa relação Brasil-França - o do índio carijó Essomericq. Hoje, bati os olhos em um livrinho na estante, que adquiri ano passado, e me lembrei de uma outra história não menos singular: trata-se de Uma Festa Brasileira celebrada em Rouen em 1550, de Ferdinand Denis - Une fête brésilienne célébrée à Rouen en 1550; publicado originalmente em Paris no ano de 1850 e relançado em 2007, em edição bilíngue, pela Editora Usina de Ideias.
Não só porque são histórias que se sucedem, mas também porque são deliciosas, eis mais alguns detalhes: engana-se quem pensa que uma vez fincados os pés cá os portugueses não tiveram mais dor de cabeça. Pelo contrário, o imenso território recém descoberto despertava muita curiosidade e cobiça. E o povo daqui era uma atração a parte: os indígenas brasileiros provocaram forte impacto nos viajantes europeus ao se mostrarem desnudos, pintados, dançando ou, eventualmente, como bem retratou Hans Staden, devorando uns aos outros em pantagruélicos banquetes antropofágicos. Aliás, Staden, uma das personagens mais cativantes do Brasil colonial só não foi parte do cardápio porque além de se fazer passar por francês - povo que à época era aliado dos Tupinambás, chorava e gemia toda vez que ia ser devorado, o que fazia com que os nativos o considerassem impróprio para o abate. Cá entre nós, acredito que já desconfiavam que a adrenalina compromete a qualidade da carne.
Mas, voltemos a Essomericq. A presença dos franceses foi quase que simultânea a dos portugueses na costa brasileira. Em 1504, o navio L'Espoir, procedente da Normandia e capitaneado por Binot Paulmier de Gonneville, aportou em Santa Catarina. Ali, os marujos permaneceram por seis meses e estabeleceram relações - nesse caso, com os pacíficos índios carijós. O que se sabe dos primórdios desses contatos entre brasileiros e franceses deve-se, em boa parte, a uma espécie de boletim de ocorrência, dessa embarcação, que naufragou na volta à França, devido ao ataque de piratas no canal da Mancha. O documento trazia dados sobre um índio de 15 anos que fora levado por Gonneville, com a promessa de que seria devolvido a seu pai, o cacique da tribo carijó, ao fim de vinte luas, fato que jamais ocorreu.
Ao que tudo indica, o capitão tencionava trazê-lo de volta, porém, a empreitada mostrou-se uma peripécia desencorajadora e Essomericq, que havia escapado a nado, foi rebatizado Binot e como recompensa, casou-se com uma das nobres parentas do capitão, Marie Moulin Paulmier. O casal teve 14 filhos e o índio viveu na França por 95 anos. A história só veio à tona porque em 1658, Luís XIV instituiu o imposto de ádvena, uma taxa a ser paga por estrangeiros. Sem entender, os descendentes acabaram por reconhecer que tiveram um ancestral princípe das terras austrais, depois que o abade Jean Paulmier de Courtonne recorreu ao Almirantado de Rouen para obter uma cópia da declaração de viagem do capitão Binot de Gonneville. O bisneto de Essomericq interessou-se pela aventura do capitão e, não obstante a interpretação errônea de sua origem, haja vista que as duas expedições organizadas no século XVIII para atingir as terras austrais fracassaram, só muito mais tarde é que se veio saber que o avô de Paulmier de Courtonne era um habitante da terra dos papagaios.
Voltemos a Rouen: há quase cinco décadas, em 1550, a cidade em que Jeanne D'Arc foi queimada e que nos presenteou com Flaubert, foi palco de um evento inusitado, patrocinado por armadores e comerciantes da cidade, interessados em convencer o rei Henri II e a rainha Catherine de Médicis a investir mais nas expedições ilegais ao Brasil. Em 1 de outubro de 1550, quando da visita real à cidade, Henri II, Catherine de Médicis, Marguerite, a filha do rei, Mary Stuart, da Escócia, duques, condes, barões e embaixadores da Espanha, Inglaterra, Alemanha e Portugal, viram um espetáculo grandioso. Quem também esteve presente aos festejos foi Nicolas de Villegaignon, que aqui fundaria a efêmera France Antarctique. Em Rouen, entre carrosséis, desfiles, danças e outras diversões, viu-se a teatralização da vida selvagem brasileira. Às margens do Sena, o cenário era impressionante: havia árvores enfeitadas com flores e frutos do Brasil e a maquete de uma aldeia ali instalada estava repleta de saguis, papagaios e micos. Os índios, por entre as malocas, circulavam desnudos e bronzeados. Eram cerca de trezentos homens e mulheres. De fato, pelos menos cinquenta deles eram Tupinambás originários do Maranhão e da Bahia, que para ali foram levados especialmente para a comemoração. O restante da troupe era composta de marinheiros normandos que tinham bom conhecimento do Brasil - muitos, fluentes em tupi e habituados ao trato com os nativos. O elenco feminino ficou por conta das prostitutas locais.
Mais que uma exibição, o que se viu ali foi verdadeira mostra de como se passava a vida aquém do oceano. Índios e figurantes pescavam, caçavam, namoravam nas redes, colhiam frutas e transportavam pau-brasil. Houve inclusive uma simulação de ataque à aldeia tupinambá, que foi assaltada por um bando de índios Tabajaras, os quais, no Brasil, eram aliados dos portugueses. No combate simulado, árvores vieram ao chão, canoas foram viradas e ocas foram incendiadas. Ao fim do ataque, óbvio, os Tupinambás, aliados dos franceses, derrotaram os Tabajaras.
Durante muito tempo ainda os indígenas brasileiros continuariam despertando a curiosidade dos europeus, causando sensação e inspirando teorias. Três Tupinambás do Maranhão, em 1613, foram batizados e enviados à Corte francesa, onde exibiram seus dotes musicais, tocando maracas. A partir de então os contatos são sucessivos. Há Montaigne que, em Des Cannibalis, ao comparar os Tupinambás aos europeus, tenta mostrar a barbárie da ação destrutiva destes últimos. Depois vem Rousseau com o mito do bon sauvage, depois, bem depois, veio a literatura dos franceses. Em troca despejamos muito de nossa riqueza natural na Europa e também depois, bem depois, face à escassez de índios, e, quando passamos a crer piamente que quem não gosta de samba bom sujeito não é, ou é ruim da cabeça ou doente do pé, mandamos o samba. E você, leitor, acha pouco?



Imagens: Figure des Brifilians, Fête brésilienne donnée à Rouen en l'honneur du roi Henri II, 1550; L’Entrée Royale d’Henri II et Catherine de Médicis à Rouen en 1550 e reprodução do livro de Hans Staden, canibais em ritual antropofágico.

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Ainda sobre o romance

Há dias, questionava aqui sobre o que nos move à leitura; conclui pela pluralidade do romance, sua polifonia, e trouxe de arrasto a ideia veiculada por Ronald Shusterman, especialista em estética, de que "Ficção não é o conhecimento". Comentei que a questão provoca certa cisão entre especialistas dos mais diversos campos do conhecimento - literários, sociólogos, historiadores, cientistas cognitivos - entre outros, que comumente indagam sobre que tipo de conhecimento específico traz o romance. Finalizei admitindo que o romance é um veículo de autoconhecimento, não sem antes sinalizar que alguns romances podem reconstituir um universo histórico ou social, decodificar relações sociais e nos informar de maneira vibrante sobre a psicologia humana. Basta ler Zola, a Comédie Humaine de Balzac e tantos outros.
Mas, reduzir o romance a isto é muito pouco. Como já disse, ele é plural, porém, afirmar essa pluralidade implica admitir que o romance também é condutor de ideias científicas e filosóficas, ainda que dissimuladas ao longo de uma trama, despidas do rigor científico e inseridas em um discurso suscetível de incertezas, em razão da subjetividade do contexto. Mas é inegável que dali podem surgir personagens modelos que, coladas à teoria, funcionam como vulgarizadores de ideias filosóficas e científicas, às vezes, à primeira vista, enigmáticas, incompreensíveis, por que não, inalcançáveis.
Dentro desse contexto, por exemplo, L'Étranger, de Camus (1942) é de certa forma uma síntese dos principais temas da filosofia existencial: a solidão, a morte, a alteridade, o absurdo. Mas, como bem observou Roland Barthes[1], o que faz de L'Étranger um obra literária e não uma tese, é que o homem aí presente não se reduz ao seu caráter moral, mas traz consigo certo humeur, ou seja, no sentido literal da palavra, um estado de espírito ou de ânimo, uma disposição, enfim, algo emotivo que condiciona seu próprio caráter e a qualidade de suas relações ao meio em que vive.
Guardadas as devidas proporções, você, leitor, poderia dizer exatamente a mesma coisa sobre a literatura de Clarice Lispector, que de certa maneira nos informa uma psicologia existencial porque ousou desvelar em seus escritos as profundezas da alma ou, como querem outros, porque soube exatamente como proteger-se em zonas de sombra, fazendo-se mistério, precisamente o que nos faz vislumbrar em sua obra uma virtude essencial, dada a atmosfera única em que emerge. Ambiente e atmosfera de um mundo imerso em papel; drama existencial ou humor de personagens inventadas do nada, ou melhor, da própria essência e da lucidez ou caos da alma. Quando a lemos, intuitivamente sentimos que as palavras da autora quer dizer algo do nosso tempo a nós mesmos. Algo que sabemos, já sentimos, experimentamos. Criamos uma cumplicidade. Afinal, é alguém que nos entende e aí, como disse há dias, nos conhecemos. É o autoconhecimento via romance. Isto ocorre precisamente porque a textura das palavras é feita de sonhos, não de fatos e ideias, muito embora o romance também enriqueça nossa competência linguística e contribua para nossa melhor apreensão da realidade. O romance, ainda que visto com desdém, de soslaio, por parte (hoje - poucos, acredito) da intelligentsia, é a prova da capacidade da ficção em mostrar aquilo que a filosofia não consegue demonstrar.
A arte do romancista consiste em ver o mundo, ao passo que a arte do leitor vale-se dos olhos de um outro, o narrador. Dessa forma, o romance nos permite viver uma multiplicidade de vidas, seja na pele de um marginal, um detetive, um amante, um ditador ou um louco. Logo, a ficção nos dá vidas por procuração, ou seja, ela age, ao longo de nossa existência, como um multiplicador de experiência. Isso nos coloca em contato com a complexidade de nossas próprias vidas, ainda que a partir de vidas semelhantes - ou por que não, estranhas às nossas.
Assim, dentro desse contexto, o leitor experimenta situações que não pode viver na realidade, pode escolher algumas situações, negar outras, e obter os benefícios dessas experiências sem incorrer no perigo real (é a velha tranquilidade da catarse). Nesse sentido, um dos aspectos mais marcantes da leitura de um romance consiste em sua função telepática. Ao ler um romance, o leitor pode perfeitamente proferir ideias que não são suas, isto é, que normalmente não sustenta ou apóia.
Com isso, ao avançar pela leitura de Dom Casmurro, de Machado de Assis (1899), inclino-me a apoiar o eu que se expressa. Vejo-me levado pelo que se passa na cabeça de Bentinho em suas crises de ciúme, ainda que nada haja ali que prove a infidelidade de Capitu. Essa interiorização do outro explica uma intimidade excepcional que sentimos com relação a certos personagens. Sentimo-os viver, falar e agir em nós. Essa experiência especial, às vezes, perturbadora, por vezes é hilariante e nem mesmo o cinema consegue reproduzir. Por isso, é compreensível que a adaptação de romances para a tela seja muitas vezes tão decepcionante.
Processo cognitivo, a leitura revela-se, portanto, também um processo afetivo extremamente poderoso e emocionante. Umberto Eco já comparou a leitura de um romance a um jogo de xadrez. Ora, o jogo de xadrez combina duas funções bem distintas: o jogo e a diversão. O jogo está ligado à reflexão, está enraizado na razão, faz apelo à inteligência, à capacidade de estratégia; a diversão está fincada no imaginário, no lúdico. No universo da leitura, a diversão provoca um jogo de papéis com base na identificação com uma figura imaginária - a personagem. Concluindo: se o leitor decidir partir em viagem com a personagem, fugir com ela, viajar no tempo e participar de intrigas e aventuras mirabolantes, nada o impedirá de fazer suposições sobre o resto da história e manter um espírito crítico. Este modelo tem o mérito de restabelecer a viagem imaginária, proposta por qualquer narrativa de ficção, sem esquecer a dimensão reflexiva da leitura.
Para encerrar a prosa, esse contexto fez com que alguns teóricos da literatura questionassem sobre as noções de prazer, de emoção e de fuga provocadas pela leitura, porque, afinal, a maioria dos leitores afirma que ao ler romances pensa muito mais em escapar da realidade e em buscar algo divertido, que pensar, aprender e adquirir conhecimento; evidência que ultimamente tem recebido o olhar de novos e importantes estudiosos e que foi, acreditem, por muito tempo desprezada pela teoria literária.

[1] BARTHES, Roland. "L’Étranger, roman solaire", In Œuvres complètes, t. I, 1942-1961, 1993, rééd. Seuil, 2002. Diz Barthes: "ce qui fait de L’Étranger une œuvre, et non une thèse, c’est que l’homme s’y trouve pourvu non seulement d’une morale, mais aussi d’une humeur".
Imagens: Mulher lendo, de Fernando Botero, livros antigos e ilustração de Albert Camus, por Emmanuel.

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

A França na alcova de D. Pedro I

O livro 1808, de Laurentino Gomes, narra algo inusitado para época, embora já estejamos habituados à história: a fuga da família real para o Rio de Janeiro. Até então, reis e rainhas que haviam sido destronados procuravam refúgio em territórios alheios, mas nenhum deles ousou tanto, ou seja, cruzou o oceano para viver, reinar e transformar uma colônia do outro lado do mundo. Laurentino repete a dose: seu 1822 está vendendo como água nas livrarias, tamanha é a sede e a curiosidade do público leitor em saber mais sobre esse período importante para a história de nosso país. O protagonista do livro, claro, é D. Pedro I.
É sabido que as ligações históricas Brasil-França começaram pouco tempo depois do achamento do Brasil, por Pedro Álvares Cabral. Em 1504, Binot Palmier de Gonneville, capitão francês, aportou na região onde hoje é o Estado de Santa Catarina. Durante os seis meses em que ali esteve o capitão e sua esquadra conviveram com os índios carijós. Ao partirem, levaram um índio que receberia o nome Essomericq e permaneceria na França pelo resto de sua vida. Depois veio Villegaignon, o corsário René Dougay-Trouin, La Condamine, Jean-Baptiste Debret, Grandjean de Montigny, Nicolas-Antoine Taunay, a filosofia positivista de Auguste Comte, etc etc, até que a Rua do Ouvidor estivesse repleta de lojas francesas, os palcos cariocas plenos de espetáculos e cocottes francesas e a literatura quase que inteiramente ligada à influência gálica, só para mudar um pouco o adjetivo.
Todo esse exórdio - como diria Machado, é para falar de D. Pedro I e suas relações francesas (relações, aqui, no sentido físico do termo, se é que me entendem). E, se você leitor, não faz parte da grande maioria desmemoriada, há de se lembrar de um certo senador da república, que até recentemente pagava a pensão de sua amante com dinheiro público. Lembrou-se? Não? Pois aí vai uma pista: ele não tem afeição nehuma pela pecuária, mas, ainda assim, conseguiu vender mais de 400 cabeças de gado a um pequeno açougueiro de Alagoas que, curiosamente, o que fatura por mês mal atinge dois dígitos. Milagres do sertão. Ainda não se lembrou? Acho que é C.., Ca..., Calh... Bem, o prenome é francês e o restante, leitor, trate de descobrir.
Mas e D. Pedro I, o que tem com isso? Pois bem, nosso querido Imperador esteve envolvido em um caso de golpe da barriga. Isso mesmo! Esse golpe tão aplicado em nossos dias, época em que os neurônios estão em baixa e o bumbum em alta. Acredita-se que foi o primeiro da história nacional em que ela dá o golpe, ele aproveita e você, contribuinte, paga a conta. O estratagema remonta a 1828; o incauto, nesse caso, foi o Imperador D. Pedro I e quem pagou a conta, tal como no caso do dito senador, foi o povo brasileiro.
D. Pedro I, como sabido, foi um grande conquistador de corações e exímio fazedor de filhos. Em quinze anos de vida sexual ativa, foi pai de nada mais nada menos que 28 filhos, dez em seus dois matrimônios e dezoito fora dele. Até a quituteira negra do Palácio de São Cristóvão entrou no... na... quero dizer, na dança, e teve a honra de uma gravidez real, como também uma freira, na Ilha Terceira! Aleluia!
Entretanto, o caso mais rumoroso e caro foi, sem dúvida o de Madame Saisset, Clémence Saisset. Em 1828, na Rua do Ouvidor, era o local das lojas mais refinadas da cidade, em geral de propriedade de franceses. D. Pedro I, quando se delocava de São Cristóvão para o Paço da Cidade, na atual Praça XV, passava por ali com sua carruagem e, certamente, observava o animado comércio e, dada a virilidade do moço, as modistas francesas ali estabelecidas, com as quais não poucas vezes teve casos amorosos. Acontece que certo dia sua atenção voltou-se para a casa de n°. 98, defronte à Rua Nova do Ouvidor (atual Travessa do Ouvidor) um fino estabelecimento de modas e papéis pintados, de Bernardo Wallenstein & Companhia. Porém, sua atenção não era dirigida às roupas ou papéis de parede ali exibidos, nem era a figura do solteirão Bernardo ou de seu sócio, Pierre Joseph Félix Saisset que lhe despertaram a curiosidade, mas sim a bela figura da esposa do segundo, Madame Clémence Saisset, nascida Mëes, modista e bela mulher de vinte e cinco anos e já mãe de dois filhos, o último deles nascido em março daquele ano. D. Pedro I percebeu que a jovem lhe correspondia e concebeu engenhoso plano para conquistá-la. Contratou Pierre Félix para colocar papéis de parede em todo o Paço de São Cristóvão. Enquanto o marido colocava os papéis nos salões imperiais, D. Pedro I colocava-lhe chifres! Como em toda boa história de traição, um dia a casa caiu. Nesse dia Pierre Félix retornou mais cedo para casa e encontrou D. Pedro I totalmente despido em sua cama! A esposa o convenceu de que o Imperador havia sofrido uma queda de um cavalo defronte à casa, e Madame Clémence Saisset, fazendo jus ao nome, o recolhera e despira (tudo no maior respeito, é claro...) para aplicar-lhe uma massagem de socorro. O marido fingiu acreditar, pois logo percebeu o quanto poderia lucrar com a situação. D. Pedro I, inclusive, posteriormente o autorizou a colocar uma placa na fachada da casa, indicando o negócio de papéis pintados ser “Fornecedor da Casa Imperial”, motivo de muita gozação entre os vizinhos. Em novembro, Clémence engravidou de D. Pedro I e, para o escândalo não aumentar, no dia 30 de dezembro de 1828 o casal Saisset partia para a Europa, não sem antes ter todo seu negócio indenizado a peso de ouro pelo Imperador, recebendo Madame Clémence Saisset, dentre os muitos presentes e dádivas, um saque de setenta e cinco mil francos e um título de pensão vitalícia.
De quebra, D. Pedro I ainda prometeu pagar a educação do pimpolho com mesada régia, às custas dos contribuintes. Em Paris, às seis horas da tarde do dia 23 de agosto de 1829, à rua Bergère, n°. 17, nasceu um menino, que passou a chamar-se Pedro de Alcântara Brasileiro, oficialmente filho de Pierre Saisset, antigo oficial de cavalaria francesa, de 32 anos, e de Madame Clémence Saisset[1].
Durante a gravidez da esposa, tanto Mr. Saisset como Clémence endereçaram muitas cartas ao Imperador e a seus procuradores, todas tratando de dinheiro, é claro. Depois, os Saisset se mudaram para a Avenue de Sceaux, n°. 2, em Versailles, onde granjearam fama na sociedade local, tendo o casal feito larga propaganda do filho tido com o Imperador do Brasil, fato que o próprio Mr. Saisset alardeava como de grande mérito. Costumava Madame Saisset exibir aos amigos e visitantes os presentes oferecidos a ela pelo Imperador do Brasil, em especial um papagaio falante, bem como toda a correspondência amorosa de ambos.
Entretanto, a renúncia do Imperador ao trono do Brasil, ocorrida a 7 de abril de 1831, bem como sua morte precoce, em Lisboa, a 24 de setembro de 1834, interromperam a remessa de dinheiro ao casal, fato que não passou sem poucos protestos. Após alguns anos, a Imperatriz viúva, Da. Maria Amélia, concedeu uma pequena pensão à criança, por alguns anos. Pedro de Alcântara Brasileiro foi educado num dos melhores colégios de Paris, o Lycée Louis le Grand, e se bacharelou em letras. Casou-se e foi pai de dois filhos, indo afinal residir em San José de Guadalupe, São Francisco, Califórnia. Em outubro de 1864 recebeu a notícia do falecimento da mãe, morta aos 61 anos. Só então, por meio do advogado da família, recebeu uma pasta de documentos e veio a saber que era filho do ex-Imperador do Brasil. Pedro de Alcântara enviou então uma missiva ao seu meio-irmão brasileiro, nada mais nada menos que o Imperador D. Pedro II, pedindo uma ajuda de custo para a educação de seus dois filhos, haja vista que sua mãe, a finada Clémence Saisset, havia torrado toda a fortuna da família em luxos e futilidades. O Imperador não retornou a correspondência e o assunto morreu. Alguns anos depois, em 26 de agosto de 1877, quando D. Pedro II esteve em Londres, um dos filhos de Pedro de Alcântara, o Capitão de Fragata Ernest de Saisset tentou contato com o Imperador, sem sucesso.
E assim acaba a história de como a França adentrou-se a alcova do Imperador e o contribuinte pagou pelo rendez-vous.
[1] Em 1822, de Laurentino Gomes, à página 125, há a informação de que a certidão de batismo do filho de D. Pedro I com Clémence Saisset está reproduzida em Pedro I, um brasileiro, Acervo do Museu Imperial de Petrópolis.
Nota: A história narrada acima, justamente em razão das estripulias do corrupto senador, foram disseminadas pela internet, porém em Cartas de D. Pedro I à Marquesa de Santos, de Alberto Rangel, Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1984, p. 244 e 323, há informação sobre o rebento e os Saisset.

Veja ainda: GOMES, Laurentino. 1808: como uma rainha louca, um príncipe medroso e uma corte corrupta enganaram Napoleão e mudaram a história de Portugal e do Brasil. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2007; 1822: como um homem sábio, uma princesa triste e um escocês louco por dinheiro ajudaram D. Pedro a criar o Brasil - um país que tinha tudo para dar errado. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2010.

Imagens: D. Pedro I, de Simplício de Sá (1826); D. Pedro I compondo o Hino Nacional (hoje Hino da Independência), em 1822, de Augusto Braga (1880); Brasão e Coroa do Império do Brasil.

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Visões do Paraíso

Antes que você, leitor, ao deitar os olhos no título se enverede por caminhos, digamos, exóticos, por que não, fantásticos, explico-me: Visão do Paraíso é o interessantíssimo livro de Sérgio Buarque de Holanda ; nele o historiador analisa os motivos e mitos edénicos relacionados à colonização do Brasil, que fizeram parte das grandes narrativas acerca do achamento e colonização do continente americano. Essas narrativas foram escritas entre o final do século XV e o século XVIII. Nelas o Jardim do Éden, paraíso bíblico, é o mote das representações coletivas associadas ao continente americano e investigadas por Buarque de Holanda. Visão do Paraíso é um dos mais expressivos e eruditos textos da historiografia brasileira. Publicado em 1959, pela Editora José Olympio, foi relançado em 2000, pela Publifolha (Coleção Grandes Nomes do Pensamento Brasileiro) em edição comentada.
O texto originou-se da tese elaborada pelo autor, em 1958, para o concurso que o conduzira à cátedra de História da Civilização Brasileira da Universidade de São Paulo, porém, em prefácio à segunda edição (p. X), Buarque de Holanda comenta as razões que o levaram a abordar tal tema: "O que nele se tencionou mostrar é até onde, em torno da imagem do Éden, tal como se achou difundida na era dos descobrimentos marítimos, se podem organizar num esquema altamente fecundo muitos dos fatores que presidiram a ocupação pelo europeu do Novo Mundo, mas em particular da América hispânica, e ainda assim enquanto abrangessem e de certa forma explicassem o nosso passado brasileiro".
As Visões do Paraíso, embora tão fantasiosas quanto os motivos edénicos que levaram os europeus a suspeitarem de que pudessem ter encontrado o paraíso na terra, se analisadas, não se mostram tão fabulosas e fantásticas, mas, acreditem, cheiram a conto do vigário. Explico-me: a partir de 3 de outubro de 2010, viveremos no Éden. Acreditem. Quem viver verá!
Como posso afirmar isso? Ora, convenhamos; é só você, leitor, deixar-se levar pela retórica, digo, engôdo pré eleitoral. Os fichas sujas mergulharam com as Náiades em fontes e nascentes, e, diferente do que ocorria à época mitológica, os infratores não foram punidos pelas ninfas com a morte, em vez disso só lhes coube a amnésia e do mergulho saíram fichas limpas. Para nós eleitores, duas constatações: já não se fazem mais ninfas como antigamente e a amnésia, para nós, traz efeito reverso, é um tiro pela culatra. o sujeito amnésico não é exatamente aquele que padece com a falta de memória, pelo contrário, é aquele que há de se lembrar de nós e nos dará um pedacinho do paraíso. Ele, ao invés de perder - ganha; e nós, se ganhamos, não levamos! Suas estripulias ganham tonalidade ética, ou seja, dos mensalinhos e mensalões às cuecas - que de meras protetoras da genitália foram alçadas à condição de caixas-forte, mais os descalabros da Casa da mãe Joana, digo Civil, tudo, tudo mesmo, passa a ser vendido como ações de líderes pró-ativos. Seremos presentados com o que há de melhor!
Mas, deixemos a política torva e sanhuda de lado. Falemos do Paraíso que nos prometem todos os dias: como nem tudo é perfeito e as regras do Altíssimo continuam valendo, lá, não seremos como Adão e Eva antes do pecado original, teremos que trabalhar, mas, acreditem, o mínimo será de no minímo cinco salários minímos atuais - maravilha! Como em casos de aumento tudo é proporcional, ou seja, o aumento é maior para quem ganha mais, que façam a conta. Na educação os professores serão bem pagos(!!!); o aluno sairá da escola sabendo ler e escrever e - incrível, dono de uma capacidade crítica invejável. Detalhe: os estudantes de baixa renda terão os estudos totalmente subvencionados pelo estado. Vagas nas creches serão vagas; há de faltar criança. Como todos já sabem o funk, o rap e o samba, nas escolas públicas os alunos hão de decifrar quem e o que são esses hieróglifos: Mozart, Bach, Beethoven, Schumann etc.
No Paraíso, como o próprio nome sugere, não se falará em poluição; afinal, a vida será pura e verde. Haverá parques, ciclovias (Comparando ao Éden - uma inovação, a modernidade!). Os rios serão limpos, despoluídos. Ah! meu amado Tiete, quanto vil metal já não escorreu sob suas águas em direção aos bolsos...ops, em direção ao rio Paraná. Enfim, educação ambiental não será matéria de jornal, até mesmo porque isso será assunto de outros mundos - mais utópicos. Gostamos de utopia!
E, caso lhe aconteça alguma tragédia no Paraíso, tranquilize-se: a saúde será de Paraíso de primeiro mundo, quase celestial, afinal, essa possibilidade é puro devaneio porque em paraíso que é paraíso, ninguém adoece. E os estádios? Ah, em 2014 os estádios serão deslumbrantes! (Não estava eu falando de hospitais?).
Mas e o nosso mal maior, a segurança? Bem, isso já tivemos o gostinho de experimentar; não falo das balas perdidas, os assaltos e os sequestros, mas a sensação célica que impera no firmamento. Virtude tais já andaram por aqui. Quer uma prova, leitor? Pois vá lá, um relato de Machado de Assis em crônica de 10.10.1864[1]: "Casta filha do céu, que vês tu na planície? perguntei-lhe como no poema de Ossian[2]. A infeliz desceu com ar desconsolado e disse-me que nada vira, nem a sombra de um acontecimento, nem o reflexo de uma virtude. Perdão, viu uma virtude.Não sei em que lugarejo da Bahia reuniu-se o júri no prazo marcado e teve de dissolver-se logo, porque o promotor de justiça não apresentou um só processo. Ó Éden baiano![3] dar-se-á o caso que no intervalo que mediou entre a última sessão do júri e esta, nem um só crime fôsse cometido dentro dos vossos muros? Nem um furto, nem um roubo, nem uma morte, nem um adultério, nem um ferimento, nem uma falsificação? O pecado sacudiu as sandálias às vossas portas e jurou não voltar aos vossos lares? O caso não é novo; lembra-me ter visto mais de uma vez notícias de fenômenos semelhantes. O Éden, antes do pecado de Eva, não era mais feliz do que essas vilas brasileiras onde o código vai-se tornando letra morta, e os juízes verdadeiras inutilidades. Onde está o segrêdo de tanta moralidade? Como é que se provê tão eficazmente à higiene da alma? Há nisto matéria para as averiguações dos sábios. ___ Mas, __ juste retour des choses d’ici-bas[4], __ talvez que na próxima sessão do júri, a vila que desta vez subiu tanto aos olhos da moralidade, apresente um quadro desconsolador de crimes e delitos, de modo a desvanecer a impressão deixada pelo estado anterior".
Como acaba de constatar, leitor, ainda que vivamos no Paraíso que nos prometem, ainda assim haveremos de desejar certa desestabilização porque, afinal, nem tudo é perfeito, sequer o Paraíso. Algo deve agitar a bem-aventurança. No Éden, o próprio criador plantou a árvore da sabedoria e, logo depois, veio a serpente, astuciosa como sempre. No paraíso mitológico havia os sátiros, essas divindades menores da natureza, criaturas meio homem meio animal, com cauda e orelhas de asno ou cabrito, pequenos chifres na testa, narizes achatados, lábios grossos, barbas longas e órgãos sexuais de dimensões bem acima da média - muito frequentemente mostrados em estado de ereção. Viviam nos campos e bosques e tinham frequentes relações sexuais com as ninfas, além de copularem com mulheres e rapazes humanos, cabras e ovelhas. Uma festa!
Veja você, leitor, há paraísos e paraísos, uns mais movimentados que outros; e, se a serpente desestabilizou o Éden e os sátiros excitaram as ninfas, o que poderia comprometer a segurança de nosso paradisíaco torrão? Talvez a tiririca, aquela erva que insiste em tomar conta do canteiro, uma das piores plantas daninhas do mundo, devido à alta nocividade, agressividade e larga amplitude ecológica. É isso aí, talvez venhamos a padecer com uma invasão de tiriricas.


[1] ASSIS, Machado de. Obra Completa de Machado de Assis - Crônicas - Vol. 2 (1862-1867). Rio de Janeiro: W. M. Jackson Inc. Editores, 1957, p. 178-1835.
[2] Trata-se do bardo celta Oisín ou Ossian que teria vivido na Escócia no século III. Na verdade, constatou-se no final do século XIX tratar-se de uma fraude literária, embora exemplo precursor do romantismo. James Macpherson (1763-1796) teria coletado o original da obra em sua pesquisa de campo pelo noroeste da Escócia por volta do ano de 1760, na tentativa de recuperar um antigo poema épico escocês. Em 1762 publica Temora e Fingal, dois poemas épicos. No entanto, os poemas são criações do próprio Macpherson baseadas nas baladas gaélicas; verificou-se mais tarde que os habitantes daquelas paragens desconheciam as baladas cantadas por Macpherson e supostamente originadas ali.
[3] Pura ironia machadiana! O Éden parecia bem mais agitado. O Diário do Rio de Janeiro de 7.10.1864, p. 1, publica notícias vindas das províncias do nordeste entre outras: “... jazem dous infelizes, presos na villa de Tapera há 64 dias, sem que lhes tenha feito nem interrogatorio, nem processo, nem cousa alguma,...”, “A polícia dorme, e apenas acorda para ir a missa estriptosamente na igreja da Piedade, sendo as patrulhas da cidade dadas sem necessidade pela tropa de linha!’, “Agora para Itaparica foi nomeado um contrabandista...” (sobre nomeações e demissões de cargos policiais após a eleição).
[4] Le Tartuffe – Ato V, cena III: Mme Pernelle, mãe de Orgon, não acredita no caráter hipócrita de Tartuffe, como pensa seu filho. Este, acabara de presenciar a cena em que o impostor tenta seduzir sua esposa. Quando a mãe insiste em que é preciso provas para acusar alguém, Orgon não se contém e esbraveja todo seu rancor em uma cena de diálogo contundente, quando Dorine intervém: “Juste retour, monsieur, des choses d’ici bas: Vous ne voulez point croire, et l’on ne vous croit pas.”


Imagens: Nymphs and Satyr (1873), de William-Adolphe Bouguereau 91825-1905); urna eleitoral de 1893 e a erva daninha tiririca.

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Por que ler romances?

O que nos move à leitura? Por que os jovens buscaram avidamente pelos livros da série Harry Potter, de J. K. Rowling e hoje o fazem com Crepúsculo (Twilight), a saga dos vampiros de autoria de Stephenie Meyer? Por que continuamos a ler Madame Bovary? E o Código da Vinci, por que tornou-se um fenômeno avassalador de vendas por todo o globo? Será que lemos pelo mais simples dos impulsos humanos: a curiosidade, aquela vontadezinha para a bisbilhotice? Seja o que for, o certo é que nos apaixonamos por histórias inventadas, envolvemo-nos e, ainda que como espectadores, participamos, vibramos e choramos o destino de personagens que nunca existiram.
O fato é que o entretenimento não é a única contribuição da literatura. A ficção - a literatura, contribui com novos horizontes, amplia nossa experiência e nos oferece uma nova perspectiva sobre o mundo e sobre nós mesmos.
O livro vai bem: a recente Bienal do Livro de São Paulo movimentou meros R$ 49,3 milhões de venda em livros! E o romance estava lá em todos seus matizes. Por que tanto sucesso? A resposta não é nada óbvia. O romance não tem - nunca teve, a pretensão de verdade ou objetividade; pelo contrário, nele impera a subjetividade e a realidade ali não passa de verossimilhança.
Ler um romance implica certo ritual. Sua leitura exige a dedicação de várias horas, alguns dias, quiçá semanas. E qual o resultado? A que custo? O que buscamos na leitura de um romance, que não encontramos nem em obras teóricas ou práticas, nem nos filmes, nem nessa avalanche de quinquilharia eletrônica colocada à disposição do consumidor contemporâneo?
À busca dessas respostas, talvez seja melhor começar por interrogar a respeito do próprio termo - romance. O que dizer sobre isso? Atrás dessa palavra vêm de arrasto definições de textos bem diferentes entre si: livros, ficção, romance de tese, romance realista, romance epistolar, romance de série, romance autobiográfico, romance histórico, romance naturalista, romance de cavalaria, romance de aventuras, romance regionalista, romance indianista, romance desmontável, romance didático, romance negro, romance psicológico, romance policial, romance urbano, romance de capa e espada, Stendhal, Balzac, Proust, Dumas, Victor Hugo, Dostoievski, Tolstoi, Goethe, Machado de Assis, Guimarães Rosa...
Às vezes, ficamos tentados em excluir do grande gênero romance o romanesco das fábulas, os contos, as novelas, as memórias, mas, por outro lado, admitimos que muitas das notícias ou histórias veiculadas pela internet, por exemplo, rendem ou equivalem a um bom romance. Enfim, essa catalogação não é rígida, sequer convincente. Parece-me que o dito de Maupassant continua valendo: "Le critique qui ose encore écrire: "Ceci est un roman et cela n'en est pas un" paraît doué d'une perspicacité qui ressemble fort à de l'incompétence".
O romance é plural e só isso já dispensa uma leitura unívoca. O romance é um gênero em constante mutação, uma metamorfose ambulante - como diz a canção, e, sua única constância é seu caráter inconstante. Quaisquer que sejam os saberes que ele carrega ou qualquer das ambições científicas que a ele queiram atribuir, ainda assim, ele continua a trazer o menos científico dos discursos.
O romance não expõe fatos, não explora conceitos, não deduz ideias. Ao rigor da ciência, ele opõe o aleatório e o inesperado. Contra o universal e conceitual, ele instaura o singular, o efêmero, o minúsculo, o sensual, o acaso, a batida de um coração, uma sensação de violência, o ardor de uma discussão ... Donde a tentação de classificar a leitura de romances como entretenimento, ao passo que a leitura de livros científicos e de ensino é vista como atividade reservada à aquisição de conhecimento. Ronald Shusterman, especialista em estética, afirma: "Ficção não é o conhecimento".
No entanto, muitos estudiosos falam do poder heurístico ou do poder cognitivo da literatura. Ou seja, aquilo que procuramos em romances, nada mais é que compreender melhor o humano, o mundo, a vida. Os discursos são vários e díspares: Todorov ressalta que a literatura não é a primeira das ciências, Genette afirma que o caminho do romance é de ordem cognitiva e historiadores olham para a literatura em busca de verdades históricas. Mesmo a ciência cognitiva traz a sua pedra para o edifício da teoria: a partir de seus conhecimentos sobre os mecanismos do cérebro, hoje ela faz incursões ao lado da crítica literária.
Nesse rodamoinho, insiste a pergunta que deixa a todos perplexos e acirra a divisão entre literários, sociólogos, historiadores, cientistas cognitivos, etc: que tipo de conhecimento específico traz o romance?
É certo que alguns romances podem reconstituir um universo histórico ou social, decodificar relações sociais e nos informar de maneira vibrante sobre a psicologia humana. Mas, nem por isso têm relação exclusiva com as humanidades, o ensaio ou o cinema. Por isso, devemos distinguir o conteúdo de conhecimento que um texto é detentor, além do imaginário que nele se desdobra. Reduzir o papel de Jules Verne a divulgador da ciência de seu tempo é ignorar as razões que sempre levaram os adolescentes a se apaixonarem e se envolverem com os sonhos do Capitão Nemo e ignorar a encenação das paixões mais primitivas orquestrada em as Vinte mil Léguas Submarinas (1870).
Enfim, para encurtar a prosa: o romance teima em escapar às definições, sejam elas traçadas pelos críticos literários, pelos estudiosos cognitivos, psicólogos, historiadores, sociólogos ou quem que seja. A fronteira do gênero é flexível, ora se estende ora se retrai, às vezes, acolhe num mesmo território indivíduos díspares e estranhos. O que conta, afinal é o leitor, suas motivações, suas experiências - e não apenas o texto literário - e isso é um dos aspectos mais estimulantes. Que insistam sobre a dimensão cognitiva, moral, ou afetiva da leitura, vá lá. Ao fim, não passam de discursos para romper com velhos dogmas. Ler é mais. Ler não é apenas conversar com grandes autores do passado e do presente. É um ato de reflexão, um exercício de pensamento; é descobrir outros mundos, outras personagens, incorporar novos saberes. Ler é marcar um encontro consigo mesmo!

Veja: MAUPASSANT, Guy de. Le roman. Préface de Pierre et Jean, In Roman, Paris: Gallimard, 1987; SHUSTEMAN, Ronald. Quand lire, c'est faire: la valeur cognitive de la fiction. Paris: Tropismes, nr. 11, 2003.
Imagens: La Lecture (1934), de Picasso; Chat lecteur e La Lettrice (1864-1865 ca.) de Federico Faruffini.

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Rendez-vous no Alcazar Lyrique

"Há nesta cidade do Rio de Janeiro um estabelecimento, onde, tôdas as noites, por entre baforadas de fumo de álcool, vê-se e ouve-se aquilo que nossos pais nunca viram nem ouviram, embora se diga que é um sinal de progresso e de civilização. Chama-se êste estabelecimento - Alcazar Lírico".[1]
O parágrafo acima é trecho da primeira de umas das crônicas que Machado de Assis escreveu para a Semana Ilustrada, periódico carioca fundado em 1860 por Henrique Fleiüss e que teve no seu quadro de colaboradores, além de Machado, personalidades como Quintino Bocaiuva, Joaquim Manuel de Macedo, Joaquim Nabuco, Bernardo Guimarães e outros.
A série de crônicas fazia parte da coluna Crônicas do Dr. Semana e foram dirigidas ao Ilmo. Exmo. Sr. Dr. Chefe de Polícia e ao Ilmo. e Exmo. Sr. Conselheiro Presidente do Conservatório Dramático Brasileiro, instituição onde Machado atuaria como censor teatral a partir de 1862.
Machado, ao redigir seus libelos, coloca-se radical e ironicamente contra o estabelecimento dirigido pelo francês Mr. Arnaud e com isso participa da polêmica gerada à época em que o Alcazar Lírico era odiado por uns e amado e aplaudido por outros.
O Alcazar Lyrique foi inaugurado em 17.2.1859 com um programa variado[2], segundo o Jornal do Commercio. Também foi conhecido por alguns anos (1866/1880) por Théâtre Lyrique Français, Theatro Francez, Alcazar Lyrico Fluminense e Alcazar Fluminense; e ocupava os números 43, 45, 47, 49 e 51 da Rua da Vala, posteriormente denominada Rua Uruguaiana. De acordo com o Requerimento 50-2-60 de 15.2.1879, o prédio do teatro recebeu o número 39, que corresponde atualmente aos números 31 e 35 da Rua Uruguaiana, área hoje ocupada pelo Banco Francês e Brasileiro e a Loja Bemoreira, no pavimento térreo, sendo o prédio de dois pavimentos.
Em meados dos século XIX, mais precisamente nos anos 60, época em que o teatro era dirigido pelo artista francês Joseph Arnaud, proprietário e empresário que pretendeu dar à casa de espetáculos a feição dos cabarés de Paris, o Alcazar foi alvo permanente de polêmicas, contudo, tornou-se referência no quadro das mudanças urbanas que então se processavam na capital.
O Alcazar introduziu na pacata noite carioca uma novidade: o vaudeville revisitado e ficaria imortalizado não só nas crônicas, mas também pelas beldades que ali se apresentaram. O palco do Alcazar oferecia um teatro de variedades com números de dança e canto, inspirados principalmente na obra de Offenbach, autor que aparecerá muitas outras vezes como intertexto nas crônicas machadianas.
Para muitos, o Alcazar era uma preocupação e dava muito trabalho à polícia. CRULS[3], por exemplo, comenta o pesadelo que o Alcazar representava para as famílias: "... os velhos babosos, os maridos bilontras e a rapaziada bordelenga se davam rendez-vous todas as noites, para rentear as atrizes brejeiras e as cupletistas gaiatas que degelavam os mais idosos e rescaldavam os mais moços". Joaquim Manoel de Macedo[4] o chama de satânico e afirma que o Alcazar era "o teatro dos trocadilhos obscenos, dos cancãs e das exibições de mulheres seminuas" e que "corrompeu os costumes e atiçou a imoralidade". Macedo afirma ainda que o Alcazar influiu para "a decadência da arte dramática e a depravação do gosto".
Havia, porém, uma parte da sociedade, digamos, não tão moralista, que via o Alcazar como um símbolo do progresso que novos ares traziam à capital do Império. Muitos o elogiavam e o viam como a possibilidade de aplaudir um teatro que praticamente não existia na corte. Ali, era possível o contato com os artistes d'élite - as celebridades da época, como Aimée, Risette, Delmary, Adèle Escudero, Duchaumont e outras.
Essas beldades passaram pelo Alcazar, sobretudo, no período em que Mr. Arnaud dirigiu a casa. Nesses anos o Alcazar atingiu seu auge e passou a oferecer espetáculos consagrados e artistas de destaque, de maneira que as novidades teatrais francesas fizeram parte de um contexto de modernização. Assim , classificá-los como espetáculos de "mau gosto" denota mais uma crítica moralista que estética.
O Alcazar, passa então a propagar as novidades de Paris e o esplendor cultural que o Império de Napoleão III projetava sobre o mundo e, de quebra, ventilava a ideia da educação pelo teatro, em parte disseminada pelo mimetismo da cultura francesa que afetava a sociedade como um todo. Vale ressaltar que à época a França era vista como o exemplo a seguir por toda nação que se propusesse a fazer parte dos paises ditos civilizados.
A título de reflexão, cabe lembrar aqui, mais uma vez, o trecho de Elementos de Rhetorica Nacional, de 1869, de Junqueira Freire I (p.50-51): “Depois da gloriosa época da nossa emancipação política, têm surgido muitos gênios, mas ainda não temos completa a nossa emancipação literária. Enquanto não a tivermos, e formos obrigados a seguir um norte, sigamos a França. Porque é ela o farol que ilumina todo o mundo civilizado"; o próprio Machado, anos mais tarde, em 1877, constata: "Vivemos de, por e para Paris". [5]
O fato é que na multifacetada influência francesa na cidade do Rio de Janeiro, o Alcazar e suas celebridades, despertando repulsa ou admiração, contribuíram para reforçar a ideia de que a França era o modelo a seguir. Com isso, no Rio de Janeiro do século XIX, a presença da cultura francesa era assídua e copiosa também a importação de produtos franceses, com destaque para a moda, os espetáculos teatrais, livros e, dada a história do alcazar, a cocotte commédienne do teatro ligeiro e das operetas.

[1] ASSIS, Machado de. Semana Ilustrada. Crônicas do Dr. Semana. In: Obras Completas. Rio de Janeiro: W. M. Jackson Inc. Editores, 1957, Vol. 22, p. 248.
[2] Ouverture: 1ère Partie: Adieu, M. Lamoureux, chansonnette par Mlle. Adèline; Le cabinet de lecture, scène comique par M. Amédée; Un prince auvergnant, duo-comique par Mlle. Julie et M. Triollier; La faurette du canton, par Mme. Maire; Le chat de Mme. Chopin, scène comique par M. Germain; Le vieux braconier, chansonnette par M. Amédée; Air de Galathées, par Mme. Maire. 2ème Partie: 1ère présentation de La perle de la cannebière, vaudeville en 1 acte de Marc Michel et Labiche. Distribution: Beautandon - MM. Amédée; Godefroid, son fils - MM. Triollier; Antoine, domestique de Beautandon - MM. Germain; Georges, domestique de Thérèson - MM. Alexis; Thérèson, macasse marseillaise - MMmes Céline Dulac, Mme. de Ste. Poule, Mmmes. Adèline Morand; Mme. Blanche, sa fille - MM. Julie Conjeon.
[3] CRULS, Gastão. Aparência do Rio de Janeiro: notícia histórica e descritiva da cidade. Rio de Janeiro: José Olympio, 1965, p. 553.
[4] MACEDO, Joaquim Manoel de. Memórias da Rua do Ouvidor. Brasília: UnB, 1988, p. 142.
[5] ASSIS, Machado de. Crônicas. História dos quinze dias, 15.11.1857. Rio de Janeiro: W. M. Jackson Inc. Editores, 1957, vol. 24, p. 293.
Imagens: Rua Uruguaiana, Teatro Lírico e Rua Uruguiana.

terça-feira, 27 de julho de 2010

Machado de Assis sob a aura de André Roswein

Não raro, quando estamos às voltas com o ensino e aprendizagem de um novo idioma, deparamo-nos com as tais expressões idiomáticas. Na transposição de um idioma para outro algumas sofrem transformações radicais; outras, no entanto, não se sabe bem por quê, guardam certas semelhanças. Vejam, por exemplo: voltar à vaca fria, expressão que comumente usamos para retornar ao assunto principal duma conversação; os franceses, na mesma situação, valem-se de revenons à nos moutons (voltemos aos nossos carneiros). A fauna permance e não se sabe qual o motivo. Poderíamos muito bem dizer - voltemos ao jardim, voltemos à sala, o que falávamos mesmo?, voltemos ao início, ou ainda, voltemos ao que eu tinha pensado... Mas essa, leitor, só vale para o enunciador, o narrador, o que tem a chave do segredo, enfim, é uma saída extremamente egoísta. A não ser que o outro resolva dividir o que pensava ou pensou.
Pois vá lá, em épocas em que o politicamente correto é dividir tudo, desde a terra até os óculos e a escova de dentes (eca!), dividamos as ideias, o que pensamos, ainda que o assunto não tenha lá a profundidade exigida dos acadêmicos, ávidos por citações e pela verborragia que condiciona o leitor - não raro - ao inelutável vai-e-vem, ou seja, desvendar Proust, Barthes, Céline, Stendhal, Guimarães Rosa, Clarice, Machado, Céline, ou ou ou ou ou passa a ser um eterno retorno ao início do parágrafo, um martírio. Leia o grande teórico LUCOLI (Uma espécie de anagrama, claro; afinal, não vou dar minha cara a bater por causa de um comentariozinho qualquer! rsrrsrsrs) e vejam só!!! Aposto, leitor, que concordará comigo. Como já disse, aqui terás não mais que um comentário e, em se tratando de tal, não espere muito.
De fato, pensava em comentar sobre Octave, personagem central de Confession d'un enfant du siècle, sobre o qual já foram escritas milhares de páginas. mas, vejam só, assim como Brás Cubas soube pelo pai que sua possível noiva chamava-se Virgília a partir do verso de Virgílio que escrevinhava sobre o papel, deu-se o mesmo comigo: parti do Octave, de Musset e, à força dos homônimos, acabei em André Roswein, de Octave Feuillet. Ignore você, leitor, a relação personagem/autor, autor/personagem.
Ocorreu-me, num estalo, a quantidade de referências que Machado de Assis faz à personagem André Roswein, de Feuillet. Obra e personagem transitam pelas crônicas, críticas e poesias de Machado a tal ponto que Sílvio Romero[1] ao pensar a poesia machadiana, tasca: "A poesia para ele é uma abstrata mansão, onde habitam a esperança e a saudade, é um refúgio tranqüilo, um sossegado asilo, terra pura e santa, onde há um suave remédio para os tristes, onde a musa verte seus bálsamos e converte as lágrimas em pérolas, onde se transforma o viver, acalma-se a tristeza, a dor se abranda e cala, canta a alma e suspira; enfim, alguma causa de comparável à Alemanha por que sonhava a ingênua moça, amante de André Roswein, no drama Dalila de Octave Feuillet!...
Farpas de Sílvio Romero à parte, revenons à nos moutons: quem é André Roswein? Roswein, protagonista do drama Dalila, de Feuillet, é um jovem artista que se apaixona por Marthe (Amélia, na versão brasileira), filha de Sertorius, seu antigo professor de música. A história tem início justamente em dia de grande ansiedade para Roswein e todos os outros, afinal, é a apresentação da primeira obra do antigo pastor de cabras. Roswein promete a Marthe que ao voltar, caso obtenha sucesso, aproveitará o momento para pedir sua mão em casamento. Como em toda boa trama, no outro extremo acha-se Carnioli, protetor de Roswein e louco amante da música. Carnioli, grande inimigo do casamento, acredita que as esperanças matrimoniais do jovem maestro será o suicídio do artista, a quem ama como a um filho. Na esperança de dissuadí-lo da ideia, faz entrar em cena a princesa Falconieri, mulher experiente, sedutora e de muitos amantes que, como bem afirma Dumas[2], será "Le vampire à la robe de dentelles et au collier de diamants [qui va soucer] a sucé tout le sang du beau jeune homme, tout le génie du pauvre maestro..."
Como toda boa história romântica há encontros e desencontros, lágrimas, sofrimento e a morte dos jovens amantes fadados a perecer pelo abandono: Marthe, ante a indiferença de Roswein e esse, que segundo Carnioli, não era um músico, mas a própria música, com o desprezo de Falconieri, que parte para Gaëte com um tenor que interpretava Boadbil.
O interessante é comparar a crítica feita por Alexandre Dumas para Le Monte-Cristo, Journal Hebdomadaire, em 18/6/1857 e a de Machado de Assis para a Revista Dramática[3], no Diário do Rio de Janeiro, em 13/4/1860. Ambos, em princípio, demoram-se mais em contar a trama que tecer um comentário crítico da encenação teatral em si. Machado opta por um viés ligado ao mito bíblico da mulher fatal, Dalila, e, a partir disso, reconta o drama de um André Roswein meio ingênuo e enredado pelos enleios da Dalila Falconieri, porém, entre a fragilidade da arte e um amor fadado à ruína, opta por comentar a derrota desse amor. Dumas, contudo, escolhe um tom em que procura mostrar a arte que se exaure frente às intempéries do amor. Roswein de maestro prodígio, termina com o coração e talento corroídos pela paixão e ao fim de seus dias "n'est plus qu'un homme ordinaire, ne pouvant pas exécuter l'opéra qu'on lui a payé d'avance, et vivant, comme les domestiques, au compte de la princesse".
Porém, ambos os críticos são unânimes quanto ao vigor literário da obra de Feuillet. Machado inicia sua crítica afirmando que "Octave Feuillet, à imitação de muitos, escreveu a Dalila, como um romance em diálogos. É assim o Aldo de Georges Sand, e as cenas dramáticas de Alfredo de Musset", conclui. Dumas começa por afirmar que o Vaudeville apresenta uma obra distinguée et vivante e completa, cheio de entusiasmo: "Comme œuvre, c'est remarquable, distingué, littéraire surtout; l'auteur y a mis tout son tempérament, c'est maladif et fiévreux, enfant et vieillard. Si quelque chose fait défaut dans l'œuvre, ce n'est ni le sentiment, ni la délicatesse, ni la poésie. C'est la virilité ! Le drame est taillé en plein dans le manteau étoile de la fantaisie, il côtoie presque constamment ce précipice, qu'on appelle en art, le faux, mais s'il y penche souvent.' il n'y tombe jamais"[4].
Bref, mais uma prova de que mesmo em pensamentos, ao divagar, sempre há uma boa razão para se voltar às vacas frias e aos moutons!


Imagens: Samson et Dalila (1882), de Gustave Moreau; Octave Feuillet e página de Le Monte-Cristo, o jornal editado por Dumas.

[1] ROMERO, Sílvio. História da literatura brasileira. 5ª Ed. Organizada e prefaciada por Nelson Romero. Rio de Janeiro: José Olympio, 1954. V. 5, pp. 16171638.
[2] DUMAS, Alexandre. Le Monte-Cristo, Journal Hebdomadaire de romans, d’histoire, de voyages et de poésie. Paris : Délavier, Éditeur, 1857, p. 139-143.
[3] ASSIS. Machado de. Crítica Teatral in Obras Completas de Machado de Assis. Rio de Janeiro: W. M. Jackson Editores, 1955, p. 153-162.
[4] DUMAS, Alexandre. Op. cit., p. 139-143.