Revista Philomatica

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Supérfluo: desnecessário, caracteriza gratuidade, extravagância, etc

Dias desses soube de uma campanha provocativa do Ministério da Cultura da Itália. Trata-se de expor pelas ruas do país imensos painéis com obras de arte sendo transportadas para fora do país. Ali estão David, de Michelangelo, içado por helicópteros e suspenso por cordas; o Coliseu sendo demolido por guindastes; a Última Ceia, de Da Vinci, sendo transportada pelas ruas de New York... O intuito é, através da provocação, sensibilizar os cidadãos italianos a valorizar o próprio acervo cultural, diga-se, invejável. Nos cartazes, pode-se ler: "Se non lo visiti, lo portiamo via". (Se você não nos visitar, vamos levar embora.) Não sei porque, numa fração de segundos, meus neurônios acessaram informações de arquivo esquecido. Ligaram dados, estabeleceram conexões e, via de regra, pensei nos livros. Pensei no teatro, pensei nas artes. As artes, dizem, não só espantam a ignorância do universo humano como traduzem sua sensibidade; nelas e por meio delas expressamos certa fineza da alma, certa genialidade. Talvez por isso esteja cada dia mais acontonada em guetos e exercida por grupos. Talvez sempre tenha sido assim. A massa não se envolve, é conduzida. Veja-se na Itália, é preciso provocar, para se ver o que é sublime. No Brasil, há décadas, séculos, vivemos problemas semelhantes. No início dos anos 90, me lembro de ter participado de um encontro com atores que encenaram Fedra, em Campinas. Fernanda Montenegro, afirmava ser o teatro um ato de resistência. Ainda me soa nos ouvidos sua fala: "Se os teatros forem fechados, certamente não haverá nenhuma passeata, nenhum protesto na praça com as pessoas gritando: queremos teatro, queremos teatro". Ou seja, teatros fechados, o que se veria e verá é a completa indiferança à arte.

Exemplo latente é o caso na Biblioteca Mário de Andrade. Fechada para reforma desde o início de setembro de 2007, com promessa de ser reaberta em julho de 2008 (Isto está escrito nas placas ao lado da biblioteca.) até hoje continua... em reforma e fechada. Não soube de um cristão que tenha elevados sua voz aos céus (voz alta ainda que seja na imprensa) para implorar ao poderoso - ou poderosos, que agilizem a reabertura do templo do saber. Eu aguardo ansioso. Espero que haja lá uma sala de leitura, silenciosa, onde possa dedicar-me à leitura (Antes não havia. Só se podia entrar e consultar livros do acervo.) Espero também que os arredores sejam mais limpos e convidativos. É constrangedor ter que desviar dos corpos entorpercidos e em prostração que normalmente jazem pelas calçadas. Como se vê, mais uma prova de que o envolvimento com a arte é restrito, embora seja ela alardeada todos os dias pela mídia, ou seja, é coisa para categorias marginais - amantes da leitura, do teatro, da pintura,.. das bibliotecas. Pena é que, em se tratando da biblioteca, não podemos sequer usar o slogan italiano se non lo visiti. Visitar como? Quando? A sensação que fica é de que tudo isto é supérfluo. Já os shoppings...
E já que o assunto é a Biblioteca Mário de Andrade, em São Paulo, bem que se poderia reservar parte do vil metal da generosa verba destinada à reforma para erigir uma escultura a Machado. A que está no Rio de Janeiro, em frente ao Petit Trianon, como é chamado o edifício da Academia Brasileira de Letras, é de autoria do escultor Humberto Cozzo e um dos símbolos da casa, afinal, impossível desvincular da instituição a imagem do escritor, visto ter sido ele um dos que mais lutaram por sua criação. Também no Rio, no Centro Cultural Banco do Brasil, ao lado da Academia, adendo do Prédio Austregésilo de Athayde, no segundo andar, há o Espaço Machado de Assis. Homenagens da cidade a um de seu mais ilustres cidadãos. Acontece, porém, que Machado, literariamente, extrapolou as fronteiras cariocas. (A saber: Machado, em vida, não foi só até Niterói como dizem, mas chegou até Barbacena e, pelos relatos, parece ter voltado com mais apreço pela cidade maravilhosa.) Na literatura é patrimônio nacional. Camões, Goethe (A de Goethe, se não me trai a memória, já foi roubada.) Dante (Esta, depois da reforma na Praça D. José Gaspar, ficou no meio de uma passagem de pedestres e tem seu pedestal implorando por cuidados!), Cervantes e Chopin estão representados nos arredores da Mário de Andrade. Por que não Machado? É preciso abaixo-assinado? Se for o caso, redijo a introdução e começo a espalhar os tais dos spams. Aí cabe a São Paulo.
Notas: Revenons-en à nos moutons: a expressão é usada para chamar a atenção para um assunto do qual se falava. teve sua origem na comédia La Farce du Maître Pathelin, do século XV, de autor desconhecido.
Título: parte da definição dada pelo dicionário Houaiss para a palavra supérfluo.
Fotos: Cartaz do Ministério da Cultura da Itália - A Última Ceia sendo transportada pelas ruas de New York e fachada da Biblioteca Mário de Andrade.

Nenhum comentário:

Postar um comentário