Revista Philomatica

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

A burka francesa

Houve épocas ao longo da história em que as pessoas foram bem mais místicas. É bem provável que se debatessem por um pedacinho de osso que considerassem sagrado, isso porque acreditavam que talvez o dito ossinho tivesse sido parte da costela, sei lá, de um daqueles santos que vagavam a pregar pelo deserto. Ou quem sabe de Adão. Por que não? Brigava-se por objetos místicos e míticos - como o Santo Graal, por pedaços de terra e, sobretudo, pelo direito de que a sua crença prevalecesse sobre todas as outras. A verdade, a sua verdade, leitor, naquela época tinha poder de fogo. E fosse você alguém poderoso, sua verdade abrasava todas as demais. De fato, nem precisava ser tão poderoso, bastava influência. Tanto é que a primeira das cruzadas, que na verdade precedeu a Primeira Cruzada, ocorreu em 1096 e foi chamada de Cruzada Popular ou dos Mendigos. Foi um acontecimento extra-oficial e organizada por um tal de Pedro, o Eremita, homem de retórica, cujas pregações comoviam multidões e que conseguiu reunir não só guerreiros, mas também uma multidão de mulheres, velhos e crianças. O bando, composto por milhares, antes de chegar em condições sofríveis em Constantinopla, massacrou judeus pelo caminho, pilhou e destruiu. Detalhe: o objetivo não eram os judeus, mas sim os muçulmanos, a bem da verdade, o intuito era claro desde o início. Nada era dissimulado. Isso foi só o começo. Houve um total de quinze cuzadas, sempre com o mesmo intento: liberar Jerusalém dos muçulmanos e liberar, nesse caso, equivalia a exterminar quem ali estava. Matou-se muito muçulmano e pereceu milhares de cristãos. O contexto histórico era outro, não dá para condenar este ou aquele. Um dado, porém, era claro: não se ficava em cima do muro. Era, ou isto ou aquilo.
Séculos mais tarde começamos a ficar mais hipócritas. Machado de Assis em crônica de 26.02.1893, fala do embate entre "a cruz e a crescente que levaram[ou] atrás de si milhares e milhares de homens", ao comentar as felicitações que o sultão da Turquia enviara ao Papa, por ocasião de seu jubileu. Como diz o cronista, é "Alá cumprimentando o Senhor, Maomé a Cristo".
Hoje, a hipocrisia campeia, está a solta. Socialmente, somos obrigados a posar de politicamente corretos. Não gostamos, mas gostamos, porque, se afirmarmos o contrário, corremos o risco de sermos taxados de reacionários ou de qualquer outro adjetivo excludente e pejorativo. Às vezes, porém, as diferenças culturais tão queridas e exaltadas em países como a França, por exemplo, sofrem uma rasteira. Veja-se o que ocorreu esta semana. O primeiro-ministro da França, François Fillon, assinou um decreto negando a naturalização de um estrangeiro que obriga a mulher, que é francesa, a usar um véu semelhante a uma burka. De acordo com o premiê, já que obriga a mulher a vestir uma espécie de burka, o homem em questão "não merece a nacionalidade francesa". E mais: segundo o ministro da Imigração, Éric Besson (nascido no Marrocos, de origem libanesa), foi constatado que o tal sujeito "privava a mulher da liberdade de sair com o rosto descoberto e rejeitava os princípios de laicismo e da igualdade entre homens e mulheres". Para Fillon, que baixou o decreto, há uma lei que diz que qualquer um que não aceitar os princípios do laicismo e da igualdade entre homens e mulheres terá a aquisição da nacionalidade francesa negada. Enfim, vale a verdade francesa. Condenar a França que já teve a Marianne esculpida à semelhança de Brigitte Bardot? Jamais. O curioso e o que se pergunta é: como um país que produziu Bardot, Channel e tantas outras, consegue, ainda hoje, trazer à baila assunto tão exótico? Ou será que a identidade francesa já não é mais a mesma e está miscigenada a tal ponto que, depois das aventuras coloniais, as diferenças não são mais tão exotiques, mas surgem como ameaça? Uma amiga que esteve recentemente em Paris comentou sobre uns arredores da cidade que estão mais para o Largo da Concórdia, aquele, ali, bem coladinho à Vinte e Cinco de Março, que para seu símile, a Place de la Concorde, situada ao pé da Champs-Élysées.
E a Suiça proibiu, semanas atrás, construções com minaretes em seu solo neutro e, na França, uma comissão parlamentar encarregada de estudar a regulamentação do uso do burka, recomendou a proibição da peça no funcionalismo público e... Bem, é esperar pra ver onde isso vai dar.
Imagens: Place de la Concorde, Paris; Pedro o Eremita, montado num burro, mostra o caminho de Jerusalém aos cruzados (iluminura francesa de cerca de 1270)

Um comentário:

  1. Adorei o texto e concordo com o que você escreveu. Muitas vezes o "politicamente correto" faz surgir muitos Tartufos...

    ResponderExcluir