Revista Philomatica

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Decifra-me ou devoro-te

Conta a mitologia grega que a deusa Hera enviou a Esfinge (monstro feminino a quem se atribuía cabeça de mulher, peito, patas e cabeça de dragão, mas também com asas feito ave de rapina) para atormentar os habitantes da cidade de Tebas. A Esfinge estabeleceu-se em uma montanha, a oeste, nos arredores da cidade. Dali, assolava os habitantes da região devorando os seres humanos que lhe passassem ao alcance. Antes, porém, formulava enigmas aos viajantes. Aquele que não conseguisse decifrá-los era devorado pelo monstro. Um dia, Édipo cruzou com a Esfinge, que lhe propôs o seguinte enigma: “Que criatura pela manhã tem quatro pés, ao meio-dia tem dois e à tarde tem três?" Édipo respondeu corretamente e a Esfinge ficou tão furiosa que lançou-se de um rochedo e matou-se.
Ora, nesses tempos idos e fantásticos, era necessário um herói para decifrar, muitas vezes, o óbvio. Hoje, o mundo a nossa volta, embora careça de heróis, deve ser decifrado por todos - sem exceção. A chave para o enigma está ao alcance - a leitura, basta dela se aproximar. Não é à toa que Paulo Freire disse que "a leitura do mundo precede a leitura da palavra". Ler o mundo é saber compreender os saberes que acumulamos ao longo da vida. Esses conhecimentos, intrínsecos em nós mesmos, são olhares, sensações, gostos, cheiros, toques, enfim, nossos símbolos, aquilo que de certa forma nos coloca em ligação com nosso espaço e com o outro com quem partilhamos essa nossa visão espacial. É através da leitura de nosso mundo que passamos à leitura da palavra. A leitura da palavra, só adquire significado e significância se vier apreendida em sua relação com a leitura do mundo.

Houve épocas em que a leitura funcionou como instrumento de discriminação. Explico-me: até o início do século XIX, no Brasil, a bem poucos era assegurado o direito à escrita, portanto, à leitura. Os livros eram escassos. Com isso, os poucos privilegiados flanavam sobre a grande massa iletrada. Há histórias e histórias. Ontem, vi a retransmissão de um documentário intitulado Trópico da Saudade, que narra a aventura de Claude Lévi-Strauss, na Amazônia, por volta dos anos 30. Em certo momento Lévi-Strauss, conta o contato que tivera com os índios da tribo dos Nambikwara. Ali dera a um índio um carnet onde o índio começou a traçar algumas paralelas. Dias depois, ao visitarem outro núcleo de indígenas, Lévi-Strauss, como de hábito, levou presentes. Aquele índio quis fazer a entrega e fingiu ler a relação dos presentes sinalizando o que era para quem, numa clara intenção de mostrar aos outros que ele já dominava um código comum ao do antropólogo, o que o colocava acima dos outros.

Lembrei-me, então, de histórias em que a leitura fez a diferença. Em 2008, fez sucesso no cinema, O Leitor (The Reader), de Stephen Daldry, baseado no romance alemão Der Vorleser, de 1995, de autoria de Bernhard Schlink. A história narra a ligação do advogado Michel Berg, nos idos de 1958, com uma mulher mais velha, Hanna Schmitz, até o momento em que ela desaparece repentinamente de sua vida, para ressurgir, anos mais tarde, no banco dos réus de um tribunal de guerra alemão. Hanna era acusada de ter trabalhado para a SS durante a Segunda Guerra Mundial e mais, ser a responsável pela morte de dezenas de judeus. Ela bem que podia livrar-se de tamanha acusação, não fosse o segredo que guardava para si e que considera pior que seu passado nazista, aliás, um segredo crucial para a decisão da corte, o fato de não saber ler. Tivesse ela assumido que as palavras ainda se lhes mostravam enigmas e teria tido pena mais leve.

Outro filme que gira em torno da leitura é o francês La Lectrice, de 1988, uma comédia dramática de Michel Deville. Aqui é Constance, uma jovem que adora ler e enquanto lê, imagina coisas. No filme, Constance está lendo La Lectrice (A Leitora), um romance que narra as aventuras de Marie, uma jovem que ama tanto a leitura que resolve fazer disso sua profissão. Marie, através de um anúncio nos classificados, se oferece como leitora profissional. Clientes aparecem aos montes: um empresário empreendedor, uma viúva de um general, um adolescente deficiente físico, uma menina sagaz... e por aí vai. A leitura, porém, não se revela uma profissão relaxante. As palavras se mostram fortes, adquirem sentidos inesperados - duplos, e estranho poder. Constance se identifica a tal ponto com a personagem do romance que mistura as estações, ou seja, confunde as coisas e se perturba. Fim da prosa: valem os filmes e acima de tudo, vale a leitura, a única maneira de decifrar enigmas.

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