Revista Philomatica

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

A descoberta do mundo

Antes que você, leitor, diga qualquer coisa, adianto-lhe: o título é plágio. Trata-se do título do livro de crônicas de Clarice Lispector, A Descoberta do Mundo, que me foi indicado por uma professora muito querida há cerca de dois meses. Esse é um fato. Hoje, ao sair para ir à universidade, aguardava para atravessar uma rua, quando presenciei diálogo que faz jus aquele ditado - as aparências enganam. Duas garotas comentavam o início das aulas. Uma delas, com uma braçada de livros, transpirava sob o sol forte, carinha de inteligente, protótipo de futura intelectual. Confesso: quase me prontifiquei para ajudá-la a carregar os livros. A outra, ignorava o sol por detrás de uns óculos enormes, estilo tela TV de plasma, mp4 ao pescoço, celular última geração nas mãos, calça cintura baixa, enfim, uma adolescente a quem os franceses classificariam de génération Y. Dedução clara: aquela que arfava sob o sol e o peso dos livros, só o fazia porque os tinha em alta conta. Ledo engano o meu quando a ouvi dizer que tinha uma porção de porcaria pra ler. E acreditem, entre as porcarias pude vislumbrar a capa do livro A Hora da Estrela, de Clarice Lispector. Confesso, doeu-me no coração, me resignei e disse pra mim mesmo em oração: as aparências enganam. Cabisbaixo, saí cantarolando: As aparências enganam, aos que odeiam e aos que amam - Porque o amor e o ódio se irmanam na fogueira das paixões, canção eternizada na voz sublime de Elis Regina. Esse foi o outro fato e, dito e feito, quando algo assim me acontece, logo que chego em casa vou fuçar em papéis e anotações para relembrar coisas, reler um poema, um trecho de um livro...
Achei dados sobre A Descoberta do Mundo, primeiro trabalho de crônicas de Clarice, na verdade, seu cahier de voyage ao longo da vida: paixões, histórias, entrevistas, filmes, enfim, tudo o que participou de alguma forma de sua existência. São 468 títulos de crônicas publicadas aos sábados no Jornal do Brasil — certos dias agrupam várias delas, pequenas — entre 1967 e 1973 e, curiosamente, muitas delas poderiam ser republicadas hoje sem que ninguém percebesse a passagem dos anos. Algumas reflexões são atuais e atemporais. O livro é dividido em dias, como se fosse um diário, mas sempre entre realidade e ficção. Esta última, no entanto, revela com fidelidade as incertezas que cercavam sua enigmática personalidade. A vida cotidiana e os acontecimentos no Brasil daquela época permeiam a narrativa. Em meio aos devaneios permanentes que foram marca pessoal da autora, surgem importantes nomes da cultura brasileira e latino-americana.

Clarice foi uma dessas escritoras singulares. Há pouco mais de meio século, os ditos países desenvolvidos, os centrais, sob uma modernidade em expansão, cuja indústria e descoberta tecnológicas atingiam níveis nunca anteriormente vistos, já experimentavam o cansaço de sua narrativa e de sua linguagem, truncadas, carentes de ideias e de força, enfim, padecendo com a ausência de jogos teóricos e narrativos que pudessem, talvez, levá-los mais além. O sangue novo viria então da América Latina, onde a literatura trazia um sopro maior. Entretanto, enquanto países como México e Colômbia respiravam novos ares, o Brasil, permanecia deitado em berço esplêndido, ou seja, mostrava-se impermeável a tudo o que não vinha de si mesmo e vivia em completa autofagia.

Até meados do século 20, o grande nome da literatura brasileira continuava sendo Machado de Assis, ainda nosso grande autor, o que inaugurou o romance psicológico em terras tupiniquins, através de uma narrativa incomum em que as dores da alma, pensamentos e sentimentos são contados de maneira inesperada. Pode-se afirmar, porém, que Clarice Lispector é filha direta e legítima de Machado de Assis e dona de obra misteriosa e ímpar. Li, meses atrás que o influente The New York Review of Books rendeu tributo a Clarice com um ensaio extenso de Lorrie Moore, a jovem deusa do minimalismo. O magnetismo de Clarice, segundo Moore, deve-se em parte aos franceses, sobretudo quando, nas universidades francesas, houve o apogeu dos estudos sobre a mulher. Hélène Cixous, que reuniu parte dos estudos sobre a obra da autora, recorda que, na França, a extraordinária abstração da prosa de Lispector fez com que a vissem como uma filósofa. Quando ela assistiu a um encontro de teóricos sobre sua obra, abandonou a sala na metade da homenagem, dizendo que não entendia uma só palavra do jargão. O fato é que Clarice, com sua escritura, rompia com todas as convenções da arte de narrar e arrancava de cada palavra um tremor secreto, enigmático.

Lembrei-me de Hilda Hilst. Talvez porque, assim como Clarice, que não suportou a tal conferência dos franceses, Hilda, certa vez abandonou o teatro em dia de estreia, exatamente quando um de seus textos era encenado. Segundo o ator que me contou a história, Hilda achou tudo muito chato. Não suportou a ideia de ver o que via em cena e saiu dizendo que não era nada daquilo. Pobre garota dos livros, infelizmente diz ser chato aquilo que desconhece e sequer vai descobrir que Clarice é muito mais que aquilo que levava nos braços.

Um comentário:

  1. Clarice é muito mais que ela mesma, vc tem razão, ela retrata o externo para mostrar o interno, o mais secreto de nós mesmos.

    Clarice e os animais. Novidade.

    Gostei

    Parabéns.

    Xiko

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