Revista Philomatica

domingo, 28 de fevereiro de 2010

Nem só de livros vive o homem

Ao narrar a tentação de Cristo, no deserto, Mateus retoma o Mestre naquela fala que já foi tão versejada ao longo da circulação das ideias literárias: "Nem só de pão viverá o homem, mas de toda a palavra que sai da boca de Deus". Hoje retomo Antonio Candido ao falar de José Mindlin: "Nem só de livros vive o homem", isso porque José Mindlin, bibliófilo inigualável, sempre ao contar suas aventuras para conseguir um exemplar raro, tinha uma história que vinha de arrasto. Tive a oportunidade de ver, há cerca de dois anos, esse dois mestres, juntos, em conferência na Universidade de São Paulo. Lá, Mindlin contou como conhecera Guimarães Rosa, em Paris. Lá também, relembrou a saga para conseguir a primeira edição de O Guarany, de José de Alencar. Mindlin, em seu livro Uma vida entre livros, Reencontros com o tempo, conta como começou a juntar livros e o fez não só por notar sua importância do ponto de vista físico, mas também pelo histórico, ou seja, a qualidade do exemplar, a importância da primeira edição, sua raridade e sua beleza. José Mindlin morreu hoje, aos 95 anos. Uma perda irreparável. Era leitor refinado. Dizia: "Desconfio dos livros de sucesso, e desses, em geral, só vou ler os que tiveram um tempo de decantação. Se os próprios escritores, especialmente os principiantes, pusessem o livro na gaveta, depois de escrito, por um ou dois anos, e depois disso vissem se o texto resistiu a uma releitura - é provável que a massa imensa de livros que se publicam no mundo se reduzisse substancialmente". Tinha afinidade por Montaigne, Proust e Guimarães Rosa. Dizia também que o coração batia mais forte quando, depois de anos de procura, encontrava um livro raro. Colecionou livros a vida inteira. O resultado? Uma das mais importantes bibliotecas privadas do país, que começou a formar aos 13 anos e, em 2006, doou os cerca de 45 mil volumes, entre coleções e folhetos, para a Brasiliana USP, no campus da universidade, em São Paulo. Não teve tempo de ver a biblioteca concluída. Foi-se Mindlin, mas ficaram seus livros e suas histórias. Em Uma vida entre livros, conta as aventuras para comprar O Guarany, primeira edição, de 1857. Tudo começa em 1960, no Rio, quando um grego oferece o exemplar por mil doláres. Nenhum colecionador se interessou em comprá-lo. Mindlin, quando soube, já não mais conseguiu falar com o tal grego, que tinha ido embora. Ficou por quase dez anos atrás do grego até que, um dia, o exemplar aparece no catálogo de um leilão na Inglaterra. Mindlin manda um telegrama para um amigo livreiro, pedindo que efetuasse a compra. Ansioso, pergunta ao amigo quanto ele achava que custaria o livro: "Umas vinte libras", responde o outro. No dia do leilão, Mindlin, que estava em Nova York, telefona ao livreiro para saber da compra. "Ah, não comprei, porque tinha falado a você em vinte libras, de modo que, quando chegou a sessenta, parei, pensando que você poderia ficar aborrecido." - "Bem, aborrecido estou agora", retruca Mindlin. Em 1977, em Paris, num leilão de livros raros, lá estava novamente o grego, que ora pediu muito mais pelo livro do que havia pedido há anos atrás, no Rio. De posse do livro, o bibliófilo volta para o Rio com o exemplar "no colo". Na ponte aérea Rio-São Paulo, ainda no avião, abre a pasta e constata que o livro não estava mais lá! Acredita que adormeceu, deixando o livro cair no vôo Paris-Rio. Ao chegar em casa, disse à Guita, sua mulher: "Sabe o que comprei em Paris? O Guarany", "Não diga!". "É, mas já perdi." Felizmente, Mindlin deixara suas informações na Air France que, três dias depois, lhe informou que o livro tinha fora achado - tinha ido para Buenos Aires, destino final do vôo. Vale a pena a leitura das aventuras bibliófilas de Mindlin. Mindlin partiu mas ficaram seus livros e suas histórias, afinal, nem só de pão vive o homem, mas também de bons livros e boas histórias.

Nota: Uma vida entre livros, Reencontros com o tempo, José Mindlin, EDUSP; Companhia das Letras, 1997.

2 comentários:

  1. Muita bonita sua homenagem a José Mindlin. Não tive, como você, o privilégio de conhecê-lo pessoalmente. Li entrevistas e artigos, era um homem fascinante. Ainda não li "Uma vida entre livros", então tenho tudo para descobrir sobre José e Guita Mindlin.
    um agrande abraço
    Ana

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  2. Bela homenagem de quem gosta muito de livros para que os amava. Mindlin mereçe, pois valorizou o que o povo brasileiro precisa valorizar. Os livros.

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