Revista Philomatica

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Vida pregressa; juízos posteriores

Diz o dito popular que espelho não mente. Por culpa dele Branca de Neve embrenhou-se pela mata e refugiou-se junto dos anõeszinhos. Culpa dele também é o sobressalto que a gente leva ao remexer em fotos antigas. O espelho é traidor e enganoso. O reflexo diário dá a falsa impressão de eternidade, de que a imagem ali refletida é permanente e, se altera, a mudança é tão lenta e suave quão imperceptível. De fato, o que está em jogo é a roda do tempo, inabalável, constante e... imperdoável. Nada é perene. Mas deixando a imagem de lado, já experimentou você, leitor, folhear revistas antigas, ainda que sejam de quatro ou cinco anos atrás? É inacreditável a velocidade com que as coisas mudam. Hoje, me caiu nas mãos uma delas. Duas constatações: algumas coisas se alteram muito rapidamente, bem mais que outras, prova de que nem o tempo é imparcial. A lógica parece ser esta: aquelas que mais nos incomodam parecem persistir. Veja-se: em 2004, discutia-se o oportunismo de uma panelinha de políticos que pleiteavam a reeleição para a presidência do Senado e da Câmara. Lá continuam ainda, Sarney, Renan Calheiros e, acreditem, Collor, que fez há tempos sua rentrée na política nacional; falava-se também dos gorós homéricos do presidente, o "cara", enfim, uma história sobre uma reportagem publicada no New York Times que, nota-se, mobilizou a esquerda brasileira a ponto de querer expulsar o jornalista autor da matéria; comentava-se também as juras de amor de Deborah Secco a seu novo amor com direito à tatuagem no pé e tudo; mexicaravam ainda sobre Gisele Bündchen e Leonardo de Caprio. Como se vê o pessoal da política tem tutano bem mais resistente, já a tchurma das artes é volátil, move-se muito mais rápido, hoje tudo está diferente! A tatuagem acredito foi apagada e, no caso dos mexericos, são outros os protagonistas.

Mas, creiam, o que me chamou mais a atenção foi um artigo que encontrei, de 2008, sobre o lançamento do livro Cartas a Favor da Escravidão (Hedra; 160 páginas, em edição organizada pelo historiador e jornalista Tâmis Parron), publicadas originalmente entre 1867 e 1868 como Novas Cartas Políticas, de autoria de José de Alencar. O objetivo central desses escritos - uma série de panfletos endereçados, na forma de cartas públicas, ao imperador Dom Pedro II, que vinha expressando simpatia pela causa abolicionista – era esse mesmo: defender o trabalho escravo, que só o Brasil, na América, ainda sustentava. O autor do artigo diz categoricamente que depois da leitura do livro, sobra pouco do autor cearense, além de afirmar que Alencar era um escritor quando muito medíocre e um ser humano abominável. Alencar, autor do projeto de construção de uma literatura nacional e consagrado como um dos principais autores do romantismo, principalmente pelos romances indianistas Iracema e O Guarani, embora mostrasse conhecido empenho escravista, penso, não pode ter sua literatura minimizada por razões únicas de sua infeliz opinião. Repito: pensamento escravista abominável sim, mas não a literatura, essa é esplêndida. Iracema perdurará como exemplo singular de obra romântica brasileira.

Afinal, quem já não deu suas pisadas na bola? Em se tratando de intelectuais, a história, aos poucos, encarrega-se de fazer uma faxina, seja ela moral ou ética. Convém lembrar que muitos, quando jovens, disseram tolices aos montes e adotaram ideologias que, tempos depois, revelaram-se besteiras homéricas. Muitos se arrependeram, outros persistiram até a velhice em seus equívocos. Machado de Assis, por exemplo, foi censor do Império quando estava no Conservatório Dramático e, diga-se, um crítico rigoroso e feroz. Jorge Amado. Ah, Jorge Amado, para quem não sabe, defendeu Hitler e Josef Stálin. Fez propaganda do nazismo nos anos de 1940; virou redator da página de cultura do Meio-Dia, jornal de propaganda nazista no Brasil. E mais: não só tentava arregimentar intelectuais para a causa nazista - tal qual Oswald de Andrade, como também escreveu um livrinho chamado O Mundo da Paz, inteirinho para adular Stálin. Graciliano Ramos afirmava que o futebol era uma moda passageira e que o esporte combinava com a personalidade "bronca" do brasileiro. Gilberto Freyre, em sua dissertação de mestrado apresentada na Universidade de Columbia, elogiou o esforço dos "cavalheiros da Ku Klux Klan americana" que à época já executava negros, chamando-os de "uma espécie de maçonaria guerreira", criada pelo sulistas contra a humilhação imposta pelos americanos do Norte. Gregório de Matos, longe da fama de escritor beatnik que tem hoje, sobretudo na Bahia, era um dedo-duro. Em 1989, o crítico literário João Adolfo Hansen, da USP, defendeu que essa fama do escritor diz mais sobre a Bahia de hoje que aquela de seus dias. No livro Sátira e o Engenho, o crítico mostra que o poeta odiava negros, pobres, índios e judeus - afinal, o que se esperava de um fidalgo português daquela época. Em seu poema Milagres do Brasil São, Gregório de Matos afirma que ser mulato é "ter sangue de carrapato." Ora, por que então condenar peremptoriamente Alencar? Dê uma chance ao gajo! E fim de prosa.

Nenhum comentário:

Postar um comentário