Revista Philomatica

domingo, 21 de março de 2010

A Exposição Brasiliana

A exposição Brasiliana Itaú, em cartaz na Pinacoteca, é inegavelmente algo suntuoso e excepcional. Destaca-se não só por sua amplitude e variedade, mas, principalmente, pela importância, diversidade e natureza das peças, inteiramente dedicadas ao Brasil, através das quais se pode recontar parte da história, da arte e da literatura brasileiras. A exposição está disposta em seis diferentes núcleos: Terra Brasilis, dedicado aos séculos XVI e XVII, com uma cartografia de encher os olhos, além de livros que tratam das terras recém descobertas, incluindo-se ai o Grande Atlas Blaeu, de 1664; o Brasil Holandês, compreende o período da ocupação do nordeste do Brasil pelos holandeses (1624 a 1654), quando o Príncipe Maurício de Nassau trouxe com ele artistas e cientistas para documentar sua estada no Novo Mundo, dentre os quais se destacam Frans Post e Albert Eckhout; o Brasil dos Naturalistas, documenta a enxurrada de naturalistas que vieram ao país logo após a abertura dos portos em 1808, por D. João VI, cujos trabalhos estavam diretamente ligados ao estudo da flora e da fauna brasileiras, dentre eles destacam-se os alemães Spix e Martius; o Brasil dos Viajantes, traz aquarelas e pinturas de Debret, Rugendas, do Conde de Clarac e de Armand Julien Pallière, algo de beleza ímpar; Rio de Janeiro, o quinto núcleo, traz as diferentes impressões dos viajantes europeus que, obrigatoriamente, faziam parada na capital do Império e deixaram registros panorâmicos inigualáveis, dentre eles há obras do italiano Eugenio Rodriguez, do espanhol Miguel Blasco, dos ingleses J. Dickson e Henry Chamberlain, do francês Debret, do suiço Frédéric Salathé e pinturas de Victor Meirelles; finalmente, o núcleo Memória da Cultura evoca grandes momentos da história e da cultura brasileiras com documentos, tratados e uma iconografia ímpar sobre a escravidão no Brasil, além, é claro, de primeiras edições de livros, cartas e manuscritos de nossos principais romancistas e poetas. Enfim, algo imperdível.
Os quinhentos metros, acho, que se percorre entre mapas, aquarelas, pinturas e objetos nos fazem percorrer, de fato, quinhentos anos de história e cultura. Cultura brasileira em parte construída por franceses, suiços, alemães, italianos e portugueses. Era o princípio e, nesses primórdios, nada mais natural que em todos os campos do conhecimento tivéssemos a presença estrangeira. Porém, logo após a Independência nasce o desejo por uma identidade nacional. algo que pudesse nos identificar e que pudéssemos chamar de nosso, só nosso. Na literatura, vamos ter José de Alencar como o principal representante, no auge do romantismo idealista de meados do século XIX, a idealizar a figura do índio nobre e corajoso, em comunhão com a natureza e amigo do colonizador como o elemento chave do indianismo, movimento literário que nasce de um nacionalismo em busca de uma identidade própria e que encontra no índio seu herói mítico.
Pensei, ao final da Exposição, se não seria essa a razão desse nosso mal psicológico, essa nossa busca obcecada por uma identidade nacional. Afinal, passou-se décadas e muito do que hoje achamos genuinamente brasileiro - o samba, a feijoada, o futebol, a capoeira etc, ainda não eram ícones nacionais. Até 1930, por exemplo, a feijoada não passava de um prato regional e o futebol era um estrangeirismo que muitos intelectuais reprovavam. Graciliano Ramos, acreditem, em crônica de 1921, se perguntava: "Mas por que o football? Não seria, porventura, melhor exercitar-se a mocidade em jogos nacionais, sem mescla de estrangeirismo, o murro, o cacete, a faca de ponta, por exemplo?" e, mais à frente, sugere: "Reabilitem os esportes regionais que aí estão abandonados: o porrete, o cachação, a queda de braço, a corrida a pé, tão útil a um cidadão que se dedica ao arriscado ofício de furtar galinhas, a pega de bois, o salto, a cavalhada e, melhor que tudo, o cambapé, a rasteira".
O fato é que em busca desta identidade passamos por várias fases: lá pelos anos 20 ainda tínhamos vergonha da mestiçagem, uma vez que estávamos impregados pelas ideias em voga na Europa, onde acreditava-se que as etnias tinham características imanentes, permanentes, isto é, não mudavam com a cultura e a educação. O francês Arthur de Gobineau, acreditava que a mistura racial era a grande causa da decadência das civilizações e da degeneração dos povos. Entretanto, ao longo do caminho, apareceu Gilberto Freyre que, ao publicar Casa-Grande & Senzala, mostrou o reverso da moeda ao afirmar que a nossa riqueza estava justamente na mistura de índios, negros e brancos. Até a publicação da obra de Freyre, aqueles que se preocuparam com a identidade nacional não foram muito longe. Ora enalteceram o índio romântico, belo e valente, a exemplo das personagens de Alencar, ora manifestaram o desejo que o povo adquirisse o máximo de cultura europeia que pudesse, enfim, uma busca pelo embranqueamento que valia fosse para o sangue fosse para as ideias. Tempos depois veio o modernismo, escritores e poetas passaram a valorizar e pesquisar o folclore e os regionalismos, na tentativa de conhecer a alma brasileira. Assim como na Europa, o nacionalismo uniu intelectuais e políticos. Segundo a antropóloga Lilia Moritz Schwarcz, resolvido o complexo de inferioridade do brasileiro, veio um novo distúrbio -o "complexo do Zé Carioca", isto é, criou-se uma "necessidade de cobrar uma certa singularidade local", o que levou à condenação de expressões culturais que não pareçam genuinamente brasileiras. Felizmente, antes não se pensou assim, razão pela qual, hoje, pode-se apreciar com orgulho a Brasiliana.
Notas: Imagens: 1) Engenho, Frans Post, 1668, 2) Mantiqueira, Rugendas, 3) Mapa de Pernambuco, Willem J. Blaeu, 1635, 4) São Paulo, Vista da Várzea do Carmo, Armand Julen Pallière.
. Sobre citação de Graciliano Ramos ver Milton Pedrosa, Gol de Letra: O Futebol na Literatura Brasileira, Gol, 1967, p. 167-168; sobre citação de Lilia Moritz Schwartcz ver "Complexo de Zé Carioca", Revista Brasileira de Ciências Sociais, número 19, 1995; sobre nacionalismo ver Leandro Narloch, Guia Politicamente Incorreto da História do Brasil, Leya, São Paulo, 2009, p. 130-136.

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