Revista Philomatica

segunda-feira, 24 de maio de 2010

Sobre literatura, poesia, cafés, absinto e o não menos baudelairiano Chat Noir

Hoje, ouvi no noticiário da TV sobre o Dia do Café (digo ouvi porque largo a TV às turras com o sofá vazio, enquanto me ocupo de outras coisas, em geral, muito mais interessantes). Fui atrás da história e descobri que ainda não chegaram a uma conclusão sobre a data. Há pouco, homenageou-se o grãozinho no dia 29 de novembro, porém, mês passado, dia 14, a imprensa destacou o Dia Internacional do Café, inclusive recontando a origem do hábito de se preparar o fruto. Conta-se que tudo começou em Kaffa, na Abíssinia, hoje conhecida por Etiópia. Pois bem, lá por esses confins, um pastor mais atento, de nome Kaldi, notou que suas cabras ficavam, digamos, mais saltitantes depois de comerem as folhas e os frutos do cafeeiro. Não deu outra, como estava a milhares de quilômetros dos Andes, o pastor resolveu comer os frutinhos, já que as folhas, ao que parece, não o deixaram tão vivaz e alegre, a exemplo do que ocorrera com suas cabras. Era o que faltava para a novidade pegar a estrada. Logo, dizem, um monge começou a fazer o tal chazinho. Os desafetos, claro, já pregaram que o preparado, ou seja, a tisane, era coisa do demônio, acabando rapidamente com o barato do monge. Diante dos monges reaças, o pastor - imagino que cabisbaixo e nada saltitante, resolveu queimar os arbustos. O aroma exalado pelos frutos torrados nas chamas não dava barato, mas logo atraiu os monges, que sairam à procura do maravilhoso perfume, e os grãos de café logo foram retirados das cinzas. Radical mudança de ideia: os grãos foram logo esmagados na água para ver que tipo de bebida daria, e logo descobriram que a bebida os mantinha acordados durante as rezas e períodos de meditação. Hoje, embora a moçada se valha de algunas cositas más para não cair no sono, o café é parte do cotidiano de milhões de pessoas mundo afora e recebe homenagens - manias do mercado.
Essa foi a deixa que tive para chegar aos Cafés Literários. A última década do século XIX, foi a época áurea da boemia carioca e os cafés literários pululavam no Rio de Janeiro. O ponto nevrálgico era entre as Ruas do Ouvidor e Gonçalves Dias. Para lá se dirigiam as celebridades literárias da época. Havia o Java, no Largo São Francisco, esquina com a Rua do Ouvidor; o Café Paris, o Café Papagaio, o Café Globo, na Primeiro de Março, entre a Rua do Ouvidor e o beco dos Barbeiros. Havia também as Confeitarias: a Castelões (lembrada por Machado de Assis nas Notas Semanais de O Cruzeiro), a Cailteau, a Pascoal, na Rua do Ouvidor, e a Colombo, na Gonçalves Dias, que, inacreditavelmente, resiste até os dias de hoje. Foi na Pascoal que João do Rio deu de cara com o aclamado poeta Olavo Bilac. Qualquer provinciano que se deslocasse à Capital, poderia chocar-se com seu poeta ou romancista admirado nesses estabelecimentos.
O point era a Confeitaria Pascoal, na Rua do Ouvidor, porém, dizem, Olavo Bilac, se desentendera com seu proprietário e, a partir de então, se transferira, junto de sua tchurminha, para a Colombo, na Gonçalves Dias. Birras de poeta.
Contra o prestígio crescente da Colombo, surge um outro grupo, chefiado por Paulo Barreto - João do Rio. Procuram hostilizar o grupo de Bilac, a quem chamavam de sr. Bilac e, em oposição à Musa Verde (o absinto) dos poetas da Colombo, que costumavam quase todos embebedar-se, cultuavam Nietzsche, o filósofo do super-humanismo, segundo nos conta Brito Broca. Aos poucos, porém, deixam a Rua do Ouvidor e passam de vez para a Gonçalves Dias. A Colombo passa a ser o ponto convergente da boemia, que já está em franca decadência. As gerações se alteram: alguns morrem, outros, como Bilac, proibido de beber pelos médicos e já avizinhando a velhice, se afastam. O panorama se altera. Lima Barreto, por exemplo, se cerca de uma roda de "rapazes instruídos" no Café Jeremias ou na Americana, onde, até certa época, segundo o próprio Lima Barreto, só tomavam café. pois o vil metal não dava para a cerveja e muito menos para o uísque. Ao lado dessas figuras literárias gravitavam artistas, desenhistas, caricaturistas e gente de teatro, além dos que se esterilizavam na boemia, e que segundo Broca, eram donos de um talento fracassado, que os amigos diziam ser grande, pois, constitui tradição boêmia, a crença de aferir talento aos que dela fizeram parte. Falava-se, por exemplo, dos famosos sonetos de Raul Braga, memorável alcoólatra, que chamando um amigo para o canto, recitava-lhe versos e pedia-lhe algumas moedas. Rocha Alazão, Santos Maia, Constantino Pacheco, e outros fizeram parte deste rol. Havia uma ligação íntima entre o álcool e a literatura: "Sim, bebíamos, mas lealmente, sinceramente" - dizia Martins Fontes.
O tempo passa e aparecem as primeiras casas de chope do Rio de Janeiro. Tudo começa com a inauguração do estabelecimento do Jacob (a alemão Jacob Wendling), à Rua da Assembleia. Paulo Barreto escreve: "Alguns estetas, imitando Montmartre, tinham inaugurado o prazer de discutir literatura e falar mal do próximo nas mesas de mármore do Jacob". Porém, segundo João do Rio, o que esses estetas, esses intelectuais, desejavam há muito tempo era um cabaré à moda do Chat Noir e do Mirliton, de Montmartre.
O Chat Noir foi o mais célebre dos cabarés, fundado em 1881, em Montmartre, por Rodolphe Salis, e possuía uma revista mesmo nome. Nela colaboraram Verlaine, Jean Moréas, Léon Bloy, Jean Richepin, Villiers de l'Isle Adam, Laurent Tailhade e tantos outros. Para assegurar a promoção do cabaré, Rodolphe Salis e Émile Gourdeau criaram a revista semanal Le Chat Noir, que teve 688 edições publicadas entre 14.1.1882 e março de 1895, e, depois, mais 122 números, numa segunda série, sendo que o último deles veio à luz em 30.9.1897. A revista encarnava o espírito de fin de siècle e tinha como colaboradores, além de artistas, cancioneiros, poetas e escritores. Le Chat Noir foi uma das primeiras revistas a publicar pequenos artigos de Jean Lorrain.
No Rio, os intelectuais esperavam por algo nos moldes do cabaré parisiense. Em 1904, na revista Kosmos, Gonzaga Duque confessa: "O cabaré foi nossa grande aspiração. Se não o tivéssemos, estávamos desmoralizados, porque sujeitar-nos-íamos à vulgaridade do burguesismo". Esperaram por muito tempo até que surgiu a notícia: acabava de fundar-se no Rio de Janeiro um Chat Noir, tal qual o parisiense. A artista, dona do estabelecimento, escreve Broca, apresentava-se travestida de Aristide Bruant, o célebre chansonnier do Mirliton. A atmosfera, enfim, era aquela desejada por artistas e escritores. "Ia-se ao Chat Noir, como a um supremo prazer de arte", dizia João do Rio. A essa época, Olavo Bilac, preocupado com a ideia da morte que o atormentou nos últimos tempos, escrevia na Gazeta de Notícias que o Chat Noir ia desmoralizar a morte. "Já temos no Rio de Janeiro um lugar onde se pode confortavelmente rir da morte". O ambiente apresentava-se satânico, o clima era baudelairiano, e o próprio Bilac colaboraria para o repertótio do Chat Noir, com a Canção do dia.
O Chat Noir não tardaria em fechar suas portas: segundo João do Rio, teria morrido por falta de dinheiro, mas na versão de Gonzaga Duque, morrera por conta das rixas, desordens e da polícia, que começou a intervir com frequencia, e o estabelecimento desmoronou-se. Mas isso foi só o começo: logo começaram a proliferar pela cidade os cafés-concerto e os cabarés, na esteira do Chat Noir.
Nota: Muitos dos dados sobre a intelectualidade e a boemia do fim do XIX, no Rio de Janeiro foram extraídos de A Vida Literária do Brasil 1900, Brito Broca, 5a. ed. Rio de Janeiro: José Olympio; Academia Brasileira de Letras, 2005, cap.IV.
Imagens: Théophile-Alexandre Steinlen, Tournée du Chat Noir, 1896, cartaz do hebdomadaire Le Chat Noir e interior da Confeitaria Colombo; todas disponíveis no Google Images.

terça-feira, 18 de maio de 2010

João do Rio e Jean Lorrain: comparsaria literária

Na sociedade carioca do início do século XX, traduzir várias obras de Oscar Wilde, o escritor considerado maldito por sua homossexualidade, tornando-se com isso seu divulgador oficial, foi o que faltava para que as suspeitas se confirmassem e João do Rio fosse motivo de chacota entre seus contemporâneos. Esse dândi de salão, nascera João Paulo Emílio Cristóvão dos Santos Coelho Barreto, em 1881, no Rio de Janeiro, e foi cronista, jornalista, tradutor e teatrólogo. Segundo seus biógrafos, Paulo Barreto, como então era conhecido, representou um novo tipo de jornalista na imprensa, fazendo com que o exercício do jornalismo deixasse de ser uma atividade considerada menor – um bico, exercida por intelectuais ou funcionários públicos que dispunham de algumas horas vagas à disposição, digamos, dos jornais. Paulo Barreto não só profissionaliza o jornalista, como também move a criação literária para o primeiro plano e passa a viver disso, empregando pseudônimos - mais de dez - para atrair diferentes públicos e consumidores. Uma de suas grandes inovações na imprensa foi a de transformar a crônica em reportagem, ainda que não raro, lírica e com vislumbres poéticos, como bem cabe a todo bom escritor. Cabe ainda a João do Rio, a vulgarização na imprensa o hábito das entrevistas, gênero que por aqui era praticamente desconhecido até o início do século XX. A produção de Paulo Barreto, cujo pseudônimo, João do Rio, surgiu em 1903, quando assinou um artigo para a Gazeta de Notícias intitulado O Brasil Lê, em que tratava das preferências literárias do leitor carioca, foi assombrosa. Segundo Brito Broca, os quinze ou vinte volumes que deixou não absorvem senão uma pequena parte de centenas de crônicas, reportagens, contos e artigos de diferentes gêneros do que publicou, muitos, com outros pseudônimos.
Segundo Brito Broca, as referências a Oscar Wilde eram escassas no Brasil do início do século XX. Depois do domínio de Byron, no período romântico, pouco ou nenhuma familiaridade tínhamos com qualquer poeta inglês e, de fato, só se falou de Wilde após o processo que o autor sofrera na Inglaterra. A revista A Cigarra, dirigida por Olavo Bilac, fizera ligeira alusão a Wilde, porém, em referência à sua homossexualidade, considerada então uma degenerescência. Talvez o primeiro artigo publicado no Brasil sobre Wilde tenha sido de João do Rio, em abril de 1905, para a Revista Renascença, cujo título era Breviário do artificialismo. João do Rio dissera que tomara conhecimento de Oscar Wilde ao estudar os pré-rafaelitas ingleses, o que o levou a procurar por um livro na biblioteca, quando deu de cara com um volume sujo, em mau papel, da Casa Hunro, de Nova York. Eram os poemas de Oscar Wilde. Porém, apesar desse relato, Brito Broca acredita que o cronista tenha descoberto Oscar Wilde através do francês Jean Lorrain, que possuía as maiores afinidades com Wilde. Aliás, em Five O’Clock, de Elísio de Carvalho, com sua linguagem cheia de estrangeirismos, seu estilo afetado, que se assemelha em tudo a João do Rio, o cronista traça "uma comparsaria mundana do refinamento e decadentismo que parece moldada pelas silhuetas nevrálgicas de Jean Lorrain", afirma Broca. Ainda segundo Broca, o mesmo princípio da arte pela arte que denota todo os esteticismo de Wilde, levava os heróis de Jean Lorrain, como Monsieur de Phocas, aos extremos dissolutos da decadência. João do Rio provavelmente leu Lorrain, donde os traços marcantes e acentuados em seu livro Dentro da Noite, mostra da provável influência da leitura do francês. É a circulação literária a recontar a própria literatura em contextos outros que aqueles da origem, inscrevendo-se, assim, na genealogia das literaturas e marcando sua própria originalidade. Questões de intertextos. Curiosidade extra: João do Rio era o pseudônimo de Paulo Barreto; Jean Lorrain era o de Paul Duval. Muito aproximava os dois autores: as preferências sexuais de Paulo Barreto desde cedo constituíram-se em motivo de suspeita. Solteiro, sem namorada ou amante conhecidas, muitos de seus textos deixam transparecer uma inclinação homoerótica bastante explícita. Lorrain cria para si uma personagem com evidente intenção de escandalizar. Faz ostentação de sua homossexualidade e sua paixão pelos lutadores de justa, não hesita em aparecer no baile anual das artes (le bal des Quat’z Arts) com camiseta rosa e calças que se assemelham à pele de pantera, as calças, diziam, de seu amigo, um lutador de Marseille. Ele se considerava um esteta e um dândi, ao mesmo tempo que um agitador e um explorador do vício e da vulgaridade, conjunto que, muitas vezes, o faziam descambar para um tremendo mau gosto, o que lhe valeu o desprezo arrogante de Robert de Montesquiou. Léon Daudet, por sua vez, descreve Lorrain em seu Souvenirs, como alguém que tem uma cabeça de boneca, uma cara grande e gorda, cabelos repartidos ao patchouli perfumado, olhos esbugalhados, ansiosos e ávidos, lábios grandes e babosos que cuspiam e gotejavam enquanto falava. Seu tronco era curvado como a quilha de alguns abutres. Ele, Lorrain, diz Daudet, se alimentava avidamente de todas as calúnias e imundícies”.
Jean Lorrain era o pseudônimo de Paul Alexandre Martin Duval, escritor francês de forte tendência parnasiana e um dos mais escandalosos da Belle Époque, assim como seus amigos Rachilde, Hugues Rebell et Fabrice Delphi. Suas obras se aproximam da literatura de fin de siècle. Hoje, Jean Lorrain é um escritor esquecido e parecerá estranho à maioria dos leitores. Brito Broca, em 1956, já afirmava que talvez nenhum de seus livros tivesse sido editado nos últimos quarenta anos e que provavelmente seria difícil encontrar um exemplar entre os bouquinistes do cais do Sena. No entanto, seu nome aparecera em diários e memórias de escritores do 1900 francês, como Maurice Donnay e Albert Keim. No Brasil, João do Rio foi o que mais contribuiu para a vulgarização do nome de Jean Lorrain, autor de Monsieur de Phocas, deixando-se influenciar por ele não só em suas crônicas e contos, como também em suas próprias atitudes, ou seja, em seu comportamento marcado por intenções preconcebidas, com o intuito de chocar e irritar, bem à maneira de Jean Lorrain.
Lorrain deixou um grande número de obras, dentre as quais: Monsieur de Phocas – certamente a mais conhecida, Histoire de masques, Propos d’mes simples, Le vice errant, Princesse d’Ivoire et d’Ivresse, Monsieur de Bougrelon, Quelques hommes, Fards et poissons. Enfim, Lorrain é um representante típico do decadentismo do fin de siècle, que teve no A Rebours e no Là-Bas, de Huysmans, sua expressão mais elevada. A personagem mais típica de Lorrain – Monsieur de Phocas, foi inspirada, segundo Broca, certamente pelo Des Esseints, de Huysmans. E, para encurtar a prosa, isso só dá uma boa cocada em razão desses encontros que a circulação literária viabiliza ao longo do tempo.

Para saber mais sobre João do Rio e seu encontro com Lorrain, veja BROCA, Brito. A Vida Literária no Brasil 1900. 5ª. ed. Rio de Janeiro: José Olympio; Academia Brasileira de Letras, 2005, p. 57, 321, 324.
Imagens: Litografia de Jean lorrain (1855-1906); João do Rio (1881-1921) e caricatura de Jean Lorrain por Sem.

quinta-feira, 13 de maio de 2010

Clarice, simplesmente Clarice

É preciso inventar desculpas para se viver. Para escrever não é diferente. Desculpas sempre são férteis e a última delas de que lancei mão foi certamente o espetáculo Simplesmente eu. Clarice Lispector, que há muito não é mais novidade para os amantes e frequentadores de teatro, afinal, já rodou muitas capitais, recebeu ótimas críticas e rendeu o prêmio de melhor atriz para Beth Goulart, diga-se, merecidíssimo. Segundo li na imprensa, que a intimidade de Beth com Clarice é de longa data: "Vivi uma busca existencial na adolescência e Clarice foi uma grande referência para mim.", diz a atriz que também é a diretora de Simplesmente eu. Clarice Lispector e responsável pela adaptação de seus textos para o teatro. O espetáculo traz a trajetória de Clarice, uma mulher buscando entender o amor, seu universo, suas dúvidas e contradições. Não faço aqui crítica teatral, mas são raras as vezes em que a transposição de um material literário para o teatro ou cinema saem a contento e, quando isso acontecesse é preciso aplaudir. Em cena, pode-se ver a autora e seus personagens dialogando sobre o ato de escrever - a inspiração e a criação, a vida e a morte, a solidão, o silêncio e a palavra, Deus, o cotidiano, a entrega, a aceitação e o entendimento. O texto é extraído de depoimentos, entrevistas, correspondências de Clarice e trechos de obras. "Escolhi personagens que, de certa maneira, têm relação com algumas fases da vida da Clarice", diz Beth, [...] "A Joana (de, Perto do Coração Selvagem) representa o impulso criativo, até um pouco adolescente. A Ana (do conto Amor), dona-de-casa dedicada aos filhos e ao marido, lembra o momento família dela, casada com o diplomata Maury Gurgel Valente e mãe de Pedro e Paulo. A Lóri (de Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres) incorpora a importância do amor, do encontro amoroso. E a mulher anônima (da crônica Perdoando Deus) ecoa um pouco o lado racional e bem humorado da Clarice, sua sagacidade".
Enfim, o que norteou a atriz foi querer traçar um paralelo entre elas e a trajetória de vida da autora, cuja literatura era ligada a seus questionamentos. O lado cômico do espetáculo fica por conta da história da mulher que se depara com um rato morto na Avenida Copacabana. "As pessoas não associam o humor à obra de Clarice, mas ela tinha um humor meio de rir de si mesma.", afirma Beth, que interpreta a autora em cena de maneira natural, ao passo que suas personagens são interpretadas de modo mais expressionista.
Eis uma ótima desculpa para falar de Clarice, uma das nossas maiores escritoras, senão, a mais singular - segundo alguns de seus críticos, uma espécie de Simone Weil, que teria sido tentada pela ficção. Clarice Lispector nasceu em Tcheltchelnik, na Ucrânia, de uma família judia. A data de seu nascimento é algo controverso. Em alguns lugares aparece 1917, em outros 1920 ou ainda 1925 (às vezes, as datas estão seguidas de um ponto de interrogação). A data de sua chegada pouco importa, o fato é que era bela e teatral: possuía um desses rostos iluminados, olhar penetrante e oblíquo que denunciava uma certa malícia sob o arco de suas sobrancelhas bem definidas - um olhar imponente, porém frágil, doce. Quanto à sua obra, já li que aqueles que se debruçaram sobre seus primeiros livros, talvez tenham acreditado ter encontrado neles uma literatura de certo epigonismo, isto é, uma filiação, dependência, ou imitação de outro autor mais importante, em especial de geração anterior; já que neles se podia entrever lembranças de Kafka e, sobretudo, de um existencialismo de vertente meio romântica, que simbolizou, deste lado do Atlântico, La Nausée, de Sartre, e L'Étranger, de Camus.
O fato é que essas afirmações, embora não sejam totalmente falsas, são insuficientes. O pensamento místico que eleva a inspiração ao seu auge, mas que, não raro, aniquila a possibilidade de se exprimir por palavras, alimenta o essencial da obra da romancista. O pensamento errante dos místicos, e a inconstância do pensamento é, em Clarice, a recusa de se fechar em um sistema, pelo simples fato de que todo sistema contém as sementes de respostas previsíveis, com isso suas ideias se desenvolvem às margens da sombra do conhecimento, onde a imaginação não é mais que uma intrusa, onde, de fato, ela participa da discussão.
Mas o que disse Clarice Lispector, a partir de seu primeiro livro, Perto do Coração Selvagem? Ela diz que seu corpo é a sombra de sua alma: que Deus nunca deve ser pensado, porque, caso o seja, ele foge; que ele, Deus, deve ser ignorado; que a nostalgia que sentimos não é aquela do Deus que nos falta, mas a nostalgia de nós mesmos que não somos suficientes, porque sentimos falta de nossa grandeza impossível e, diz mais, que aquele que não sabe o que é Deus, jamais poderá conhecê-lo. Diz algo como Deus é o passado ou qualquer coisa que a gente já sabe. Porém se questiona, volta-se a Ele: "Deus meu eu vos espero, Deus vinde a mim. Deus, brotai no meu peito, eu não sou nada e a desgraça cai sobre minha cabeça e eu só sei usar pala­vras e as palavras são mentirosas e eu continuo a so­frer, afinal o fio sobre a parede escura. Deus vinde a mim e não tenho alegria e minha vida é escura como a noite sem estrelas e Deus por que não existes den­tro de mim? por que me fizeste separada de ti?"
Às vezes, a exemplo dos místicos para quem o amor supremo de Deus é o amor morto, o amor que não deseja, que não procura, que não concebe mais nada, ela argumenta que a oração mais profunda não é aquela que implora, mas a que nada mais pede. E, muitas vezes, como um astuto teólogo treinado para evitar as armadilhas, a leitora de Espinosa e São Tomás de Aquino diz que Deus é o que existe, e todas as contradições estão em Deus e não se contradizem. Anos depois, em Água Viva, dirá; "E Deus é uma criação monstruosa. Eu tenho medo de Deus porque ele é total demais para o meu tamanho".
O pensamento do teólogo, que aspira a ir além da compreensão e se misturar ao conhecimento do Ser Supremo se encontra na origem do problema que a linguagem literária coloca permanentemente em Clarice Lispector, um problema que se torna tema recorrente e parte constitutiva de sua obra. Para melhor compreender a natureza da sua inspiração melhor seria, talvez, aventurar-se pelo pensamento do hermétivo filósofo Wittgenstein que, como a autora, afrontou as fronteiras da linguagem.
Em A Hora da Estrela, seu último livro publicado em vida, responde: "Por que escrevo? Antes de tudo porque captei o espírito da língua e assim às vezes a forma é que faz conteúdo".
Em Água Viva, mostra seu embate frente às palavras: "Há muita coisa a dizer que não sei como dizer. Faltam as palavras. Mas recuso-me a inventar novas: as que existem já devem dizer o que se consegue dizer e o que é proibido. E o que é proibido eu adivinho. Se houver força. Atrás do pensamento não há palavras: é-se. Minha pintura não tem palavras: fica atrás do pensamento. Nesse terreno do é-se sou puro êxtase cristalino. È-se. Sou-me. Tu te és." - Logo, porém, reage contra si mesma e se pergunta: "Não usar palavras é perder a identidade? é perder-se nas essenciais trevas daninhas? Perco a identidade do mundo em mim e existo sem garantias". Mas essa sua reconciliação com a linguagem não dura muito tempo e logo depois diz: "Bem atrás do pensamento tenho um fundo musical".
Essa desconfiança que Clarice sente a respeito do poder da linguagem, sob muito aspectos, é mesmo combatida em suas obras, onde a exata percepção da realidade é resultante do uso que faz das palavras, as quais deixam a impressão de que criam corpo, continuam e se desenvolvem por sua própria conta a ideia e a visão inicial da autora.
Enfim, Clarice é de fato uma escritora singular. Em O Lustre, sua segunda obra, mostra-se um tanto romanesca, mas, em A Paixão Segundo G.H., algo extraordinário aconteceu em sua escrita que a fez galgar status de autora que produz grande literatura, pois atinge verdadeiro equilíbrio no que revela ser suas duas rendência - a forma e o informe, que atingem equilíbrio numa narrativa que previlegia as sensações e as ideias. E a obra de Clarice vai além: é para ser lida, relida, relida, relida e relida.


* Os dados sobre a entrevista de Beth Goulart foram extraídos da FolhaOnline Ilustrada - entrevista concedida a Lucas Neves, em 20.9.2009, 8h30.
Imagens: Clarice Lispector, Capa do programa do Espetáculo e Beth Goulart como Clarice - todas disponíveis no Google Images.

sexta-feira, 7 de maio de 2010

Intertextualidade: possível entre Andy Warhol e Claude Monet?

A literatura, como qualquer campo do conhecimento, nos oferece inúmeras formas de abordagem. O texto em si, este, pode ser visto de maneira ingênua, a partir de uma leitura singela, como também pode ser explorado pelo lado sensual, sim, tal qual um objeto de prazer, pleno de erotismo e que provoca gozo. Roland Barthes em Le Plaisir du Texte (1973), argumenta sobre o lado sensual do texto, tanto por parte de quem escreve, que se expõe, sem qualquer medo de mostrar seus desejos, sob pena de ser alvo fácil - da crítica e de tantos outros, tanto por parte do leitor, que normalmente é visto como um ser passivo, indefeso frente ao texto, mas que em Barthes é mostrado em instante de plenitude criativa, ou seja, em momento de gozo e êxtase. Há quem diga que um bom texto é melhor que uma boa trpd (rsrsrs). O fato é que Barthes em Le Plaisir du Texte, ao desconsiderar a frigidez do texto político e barroco (empolado) e evocar argumentos de Flaubert, Stendhal, Bataille, Sade, Proust etc, traz, de maneira lúdica, um tema fundamental da semiologia e da literatura, ou seja, o gozo profundo (e literário). O prazer é extensivo ao encontro de literaturas e, nelas, o encontro pode ser estudado pela intertextualidade.

A intertextualidade são as relações possíveis entre vários textos, seja no âmbito de compreensão, da história ou mesmo do plágio. A intertextualidade é um eco de memória, é a lembrança nostálgica que leva a literatura a sua própria retomada e com isso se articula, na transposição, com um novo sistema significante, o que resulta em sistema operatório que denuncia a co-presença entre dois ou mais textos. De maneira clara e na sua representação mais simples, a intertextualidade se define como a ideia de que tudo se apóia, seja na escrita ou na arte, conscientemente ou não, no simples fato de que nenhum texto pode ser escrito de forma independente, uma vez que já foram registradas em nossa memória mensagens de (e) textos anteriores emitidos por outros autores, o que equivale a dizer que, quando rascunhamos algumas linhas, as palavras nelas grafadas já estão inelutavelmente impregnadas pelo pensamento de um texto qualquer que nos precedeu e que, inconscientemente - ou não, em algum momento do passado alimentou nosso conhecimento.

O mecanismo da intertextualidade, metaforicamente definido por diálogo, trama, tecido, biblioteca etc, ao mesmo tempo em que concorre para a tessitura de um novo texto, marcando assim, a construção de sua própria originalidade, se inscreve na genealogia de entrelaçamentos e filiações que ao longo da história permitiu a literatura nutrir-se de si mesma, de sua história. Bakhtin, grande teórico da literatura e autor de Problemas da Poética de Dostoiévski, que desvenda a multiplicidade de vozes e consciências independentes que constituem a peculiaridade fundamental dos romances de Dostoiévski, afirma: "Notre pensée ne rencontre que des mots déjà occupés, et tout mot, de son propre contexte, provient d’un autre énoncé déjà marqué par l’interprétation d’autrui." *

Em literatura a intertextualidade se mostra na trama por meio de referências, citações, alusões, pastiche, paródias e mesmo o plágio, como dito acima, mas, e nas artes? A relação entre a literatura e as artes já há muito se consolidou: quem não se lembra de Le Ventre de Paris, de Émile Zola, quando Florent chega ao grande Halles ao amanhecer e o vê sair das sombras, apreciando os legumes emergirem das calçadas ao raiar do sol, inundando as ruas próximas ao mercado com uma explosão de cores e tons, sob o efeito da luz, numa demonstração fascinante do impressionismo nas páginas de um livro? Pois o mesmo se dá com as artes plásticas, onde às imagens que mantêm diálogo entre si, dá-se o nome de citacionismo - nada mais que um outro conceito para a intertextualidade de imagens. A prática vem do século XV e as imagens, transpostas para outros contextos, são reformuladas, trapaceadas, de forma forma a criar uma segunda série de imagens, ainda que com significados diversos daqueles da origem, aumentando, assim, o estoque iconográfico. Muitos chamam a isto de releitura: Picasso fez a releitura das Meninas, de Velásquez; Francis Bacon, séculos depois (1953), releu o Retrato do Papa Inocêncio X, de 1650, também de Diego Velásquez.

Mas e a técnica, é possível uma intertextualidade no fazer das artes? Possível ou não (e, como não entendedor do assunto, apenas especulo, portanto desconheço que nome a isto se dá), o certo é que ao visitar a Exposição Andy Warhol Mr. America, em cartaz na Estação Pinacoteca, em São Paulo, acreditei piamente na possibilidade. Ao dar de cara com a Jackie Onassis, em tons dégradés, num registro de alteração de luz e sombra, que torna umas imagens sutilmente mais claras que outras, de pronto, lembrei-me da série Le Jardin Japonais, do pintor impressionista Claude Monet. Monet tornou-se célebre por retratar a natureza e experimentar os diferentes efeitos da luz, muitas vezes reproduzindo o mesmo lugar em diferentes momentos do dia ou épocas do ano. O último dos pintores impressionistas de renome, destacou em suas pinturas os reflexos da água com as luzes e as sombras dos objetos ao redor, num jogo, de fato, impressionante. A técnica, óbvio, não é a mesma de Warhol, mas os dégradés estão lá e, claro, os achei intertextuais. O mais é com você leitor!



* A citação extrai de André Laugier, que cita Bakhtin, porém, não menciona o livro, só a editora (éditions du Seuil, 1965, page 50).
Imagens: Jackie, de Wandy Warhol e Le Jardin Japonais, de Claude Monet (algumas das pinturas).

domingo, 2 de maio de 2010

Aleijadinho, nosso Quasímodo romântico

Sobras de um café. Sobras do café. Paro um instante e penso. Chego à conclusão de que a língua prega peças. Tem-se, às vezes, palavras de mais para falar de assuntos de menos e, não raro, ao se tentar expressar os pensamentos mais óbvios, nota-se que vem de arrasto problemas de linguagem inusitados. Não falo do café, que bebo puro para sentir nas veias a cafeína, na boca o erotismo do sabor e nas narinas a sensualidade do aroma, sem, contudo, me chafurdar na devassidão do açúcar. Falo do que conversava, com amigos, em um café na universidade. De fato, bebíamos suco e água, pois, lá, o café se prostituiu: o erotismo do sabor é intenso, depravado, mal dosado; chega mesmo a afastar a sensualidade do aroma e, com açúcar, on sent la nostalgie de la boue, a exemplo de uma prostituta arrependida.
Bem, as sobras do café – melhor assim, eram a reflexão silenciosa e contínua sobre o que falávamos, tão logo havermos nos dispersado. M. acha que éramos mais sinceros, menos hipócritas. A. acha que éramos mais cruéis. Lembramo-nos de situações: P., porque tinha sobrancelhas e cílios avantajados, era chamado de mosca, R., que tinha nariz adunco e aquilino, projetado à frente, era o ladrão de oxigênio, alguém mais lento era logo chamado de retardado; os hoje chamados de especiais, à época, eram os mongolóides. Não se usava eufemismos. Também não se falava de bullying. É certo que éramos mais cruéis, mas não se pode ignorar que éramos mais verdadeiros – e como diz o provérbio: a verdade dói.
Na literatura a intimidação e a violência física ou psicológica – muitas vezes oriunda de uma des-qualidade física rendeu muitas histórias. O romantismo foi pródigo nesse tipo de fabulação. Quem não se lembra do famoso conto de fadas francês La Belle et la Bête (A Bela e a Fera), em que a Fera, personagem assustadora, revela-se, aos poucos, de uma meiguice inimaginável e conquista o coração da Bela, essa, de uma enorme dulcidão?! E Frankenstein, de Mary Shelley? Monstro asqueroso, agredido pelas pessoas comuns, porém, capaz de se instruir e chegar às vias de um comportamento moral invejável?! E nosso simpático Quasimodo, a personagem impagável de Notre-Dame de Paris, criação do não menos inesquecível Victor Hugo? Corcunda e deformado, mostra-se uma alma caridosa e sensível, bem ao contrário das pessoas comuns que o desprezavam por sua feiúra e deformidade. O romantismo foi capaz disso: de fazer valer a ideia de que a beleza não se explica pela razão, é espontânea, natural, talvez resultado de características como o sentimentalismo e o Mal do Século que fazem parte de sua receita. Com o sentimentalismo, o autor explora sentimentos comuns à sociedade e a temática centra-se nos dramas de amor, na paixão, no ódio, na cólera, etc.. Com o Mal do Século – termo originado com a geração conhecida por Byroniana ou também por Ultrarromantismo, o romantismo abordou temas obscuros como a morte, amores impossíveis e a escuridão. No Brasil, o romantismo teve como marco fundador a publicação do livro Suspiros poéticos e saudades, de Gonçalves de Magalhães, em 1836, e durou 45 anos terminando em 1881 com a publicação de Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, para ser sucedido pelo Realismo.
O porquê de tudo isso? Ora, leituras, leituras e a programação da Virada Cultural 2010, que anuncia uma Exposição sobre Aleijadinho, no Palácio da Justiça, na Praça da Sé.
Aleijadinho, na versão que conhecemos hoje e, diga-se, atualizada ainda outras tantas vezes, teria sido uma invenção de Rodrigo Ferreira Bretas. Segundo estudo de Leandro Narloch[1], em 1858, o jurista, deputado estadual e diretor de ensino de Ouro Preto, decidiu escrever a biografia de Antônio Francisco Lisboa, um dos inúmeros artesãos que construíram os adornos da igrejas de Ouro Preto, durante a corrida do ouro, período chamado de Barroco Mineiro, nas artes. Ainda segundo Narloch, o escultor havia morrido há aproximadamente cinco décadas e comentava-se que ele tinha uma ou as duas mãos paralisadas por uma doença. A boca miúda alardeia e reconta, e, mesmo sem qualquer comprovação, viajantes estrangeiros incluíram a história em seus relatos. Embora sem qualquer dado confiável, vista à escassez de fontes, o mineiro não se conteve, tascou essa história e publicou-a no Correio Oficial de Minas. Ali, Bretas acrescentou detalhes, expôs minudências e aventou certo matiz trágico à trajetória do escultor. O estado de saúde de Aleijadinho agravou-se: “As pálpebras inflamaram-se e, permanecendo neste estado, ofereciam à vista sua parte inferior; perdeu quase todos os dentes e a boca entortou-se como sucede frequentemente ao estuporado, o queixo e o lábio inferior abateram-se um pouco, assim o olhar do infeliz adquiriu certa expressão sinistra e de ferocidade, que chegava mesmo a assustar a quem quer que o encarasse inopinadamente”[2], escreveu Bretas. Bretas afirma ainda que a sífiles ou lepra que teria acometido o escultor, o fizera perder os dedos, curvar o corpo, não podendo locomover-se a não ser de joelhos, na tentativa de diminuir a intensidade da dor. Qualquer semelhança com Quasímodo não é mera coincidência. Veja-se trecho da descrição de Quasímodo: “A careta era o próprio rosto, ou melhor, a pessoa toda era uma horrível careta: uma cabeça grande ouriçada de cabelos ruivos, entre os dois ombros, uma corcunda enorme da qual o contragolpe se fazia sentir na parte frontal de seu corpo; um sistema de coxas e de pernas tão estranhamente tortas que se tocavam apenas por meio dos joelhos”[3]. Bretas construiu um monstro a partir de relatos nada comprovados e deu a ele o nome de Aleijadinho. Esse monstro tinha algo de horrível e sublime: uma imagem assustadora, repugnante, porém, era genial, capaz de produzir arte barroca admirável com ferramentas amarradas ao braço.
Muito já se discutiu sobre a veracidade da história. Na década de 1990, o pesquisador Dalton Sala, chegou mesmo a questionar se o escultor tinha alguma doença ou mesmo se existiu. Vasculhou-se os arquivos de Minas Gerais e o máximo que se encontrou foram alguns recibos assinados por Antônio Francisco Lisboa, o que comprova a existência de um artífice com aquele nome, porém, sem qualquer menção sobre sua história.
Guiomar de Grammont, filósofa e escritora, produziu tese de doutorado, na USP, que resultou no livro Aleijadinho e o Aeroplano, em 2008. Nele, Grammont, alimenta a polêmica por outro viés: o de que as histórias contadas por Bretas e outros escritores são ecos de personagens literárias. Diz a autora: “Compreendemos ‘Aleijadinho’ como um personagem literário, sucessivamente reconstruído na história do pensamento em letras e artes no Brasil, de acordo com os interesses do momento em que se produzia cada discurso sobre o tema”[4]. “Além do clichê belo-horrível, Antônio Lisboa ganhou traços de artista romântico: o indivíduo isolado de seus semelhantes e de genialidade espontânea, acrescenta Narloch. Segundo Bretas, o escultor entocava-se na igrejas, separado do mundo por cortinas improvisadas, para não assustar os passantes com suas chagas. Grammont levanta as semelhanças biográficas do escultor com grandes mestres do Renascimento: Aleijadinho teria deixado cair pedaços de granito na cabeça de um general que vistoriava seu trabalho, assim como Michelangelo teria feito com o Papa Júlio II e assim como Rafael, vingou-se de seu desafeto usando o rosto dele como modelo para uma de suas obras. O êxito da narrativa de Bretas foi tamanho que passou à condição de documento histórico, além do que, sua personagem era tão fantástica para a época que rendeu ao seu criador a Ordem da Rosa, outorgado por D. Pedro II. Uma curiosa lenda local tornou-se ícone nacional, alimentada exaustivamente por guias turísticos, dando cor às cidades históricas mineiras e cristalizando-se principalmente após o “esforço avassalador de estudiosos modernistas, que enxergavam no escultor uma das raízes da cultura genuinamente brasileira, de médicos a dar detalhes de sua doença, de historiadores a falar de sua infância como assistente do pai, o arquiteto português Manuel Francisco Lisboa, de críticos a apontar intenções psicológicas que explicariam o seu trabalho, e de moradores a atribuir ao escultor sem mãos a autoria de centenas de obras em Ouro Preto, Mariana, Congonhas, Caeté, Sabará, Tiradentes, São João Del Rei, Catas Altas, Campanha, Nova Lima e Barão dos Cocais, a ponto de que, se todas fossem de fato feitas por ele, o artífice teria de ter vivido em três cidades ao mesmo tempo”, afirma Narloch.
O problema do culto a Aleijadinho é que o monstro que todos consideravam genial produziu obras grosseiras. A verdade incômoda é que muitas figuras tinham o nariz desproporcional , maçãs do rosto salientes demais, polegar na mesma direção de outros dedos e olhos exageramente amendoados, além do fato de que as igrejas que contaram com seu esforço parecerem cópias de seus símiles europeus. A crítica viu isso e não perdou, criticou. Porém, com os intelectuais modernistas, o trabalho de Aleijadinho foi reavaliado e o monstro-genial foi alçado a símbolo de brasilidade, depois da viagem a Minas que fizeram Mário de Andrade, Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral em companhia do poeta francês Blaise Cendras.
A obra do escultor? Ah, essa há cinco décadas não passava de 160 peças, hoje, estão perto de 425, segundo catálogo de Márcio Jardim, de 2006. A filósofa Guiomar de Grammont é taxativa: “Tenho razão para desconfiar que existe um conluio entre colecionadores e críticos para valorizar obras anônimas”[5]. Afinal, tivesse você, leitor, uma estatuazinha estilo barroco mineiro, não ia querê-la também feita por Aleijadinho, essa personagem que fica a cada dia mais interessante e que pode, de uma hora para outra, fazer seu patrimônio valorizar muito além da Bolsa? Isso é assunto para muita prosa! Polêmicas à parte, não há nada mais agradável e estimulante que passear pelas cidades históricas mineiras e apreciar a arte de suas igrejas barrocas.


Imagens: Projeto de frontspício para a Igreja de São Francisco em São João del Rei, séc. XVII, atribuído a Aleijadinho; São Francisco de Assis (Ouro Preto) de Aleijadinho e Estudo para a fachada da Igreja São Francisco de Assis, de Ouro Preto, atribuído a Aleijadinho.

[1] NARLOCH, Leandro. Guia politicamente incorreto da história do Brasil. Ilustrações de Gilmar Fraga. São Paulo: Leya, 2009, p. 181-197.
[2] FERREIRA BRETAS, Rodrigo. O Aleijadinho. Itatiaia, 2002.
[3] HUGO, Victor. O Corcunda de Notre-Dame. São Paulo: Larouse do Brasil, 2005, p. 7.
[4] GRAMMONT, Guiomar de. Aleijadinho e o Aeroplano. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008, p. 86
[5] NARLOCH, Leandro. Op.cit., p. 195.