Revista Philomatica

segunda-feira, 24 de maio de 2010

Sobre literatura, poesia, cafés, absinto e o não menos baudelairiano Chat Noir

Hoje, ouvi no noticiário da TV sobre o Dia do Café (digo ouvi porque largo a TV às turras com o sofá vazio, enquanto me ocupo de outras coisas, em geral, muito mais interessantes). Fui atrás da história e descobri que ainda não chegaram a uma conclusão sobre a data. Há pouco, homenageou-se o grãozinho no dia 29 de novembro, porém, mês passado, dia 14, a imprensa destacou o Dia Internacional do Café, inclusive recontando a origem do hábito de se preparar o fruto. Conta-se que tudo começou em Kaffa, na Abíssinia, hoje conhecida por Etiópia. Pois bem, lá por esses confins, um pastor mais atento, de nome Kaldi, notou que suas cabras ficavam, digamos, mais saltitantes depois de comerem as folhas e os frutos do cafeeiro. Não deu outra, como estava a milhares de quilômetros dos Andes, o pastor resolveu comer os frutinhos, já que as folhas, ao que parece, não o deixaram tão vivaz e alegre, a exemplo do que ocorrera com suas cabras. Era o que faltava para a novidade pegar a estrada. Logo, dizem, um monge começou a fazer o tal chazinho. Os desafetos, claro, já pregaram que o preparado, ou seja, a tisane, era coisa do demônio, acabando rapidamente com o barato do monge. Diante dos monges reaças, o pastor - imagino que cabisbaixo e nada saltitante, resolveu queimar os arbustos. O aroma exalado pelos frutos torrados nas chamas não dava barato, mas logo atraiu os monges, que sairam à procura do maravilhoso perfume, e os grãos de café logo foram retirados das cinzas. Radical mudança de ideia: os grãos foram logo esmagados na água para ver que tipo de bebida daria, e logo descobriram que a bebida os mantinha acordados durante as rezas e períodos de meditação. Hoje, embora a moçada se valha de algunas cositas más para não cair no sono, o café é parte do cotidiano de milhões de pessoas mundo afora e recebe homenagens - manias do mercado.
Essa foi a deixa que tive para chegar aos Cafés Literários. A última década do século XIX, foi a época áurea da boemia carioca e os cafés literários pululavam no Rio de Janeiro. O ponto nevrálgico era entre as Ruas do Ouvidor e Gonçalves Dias. Para lá se dirigiam as celebridades literárias da época. Havia o Java, no Largo São Francisco, esquina com a Rua do Ouvidor; o Café Paris, o Café Papagaio, o Café Globo, na Primeiro de Março, entre a Rua do Ouvidor e o beco dos Barbeiros. Havia também as Confeitarias: a Castelões (lembrada por Machado de Assis nas Notas Semanais de O Cruzeiro), a Cailteau, a Pascoal, na Rua do Ouvidor, e a Colombo, na Gonçalves Dias, que, inacreditavelmente, resiste até os dias de hoje. Foi na Pascoal que João do Rio deu de cara com o aclamado poeta Olavo Bilac. Qualquer provinciano que se deslocasse à Capital, poderia chocar-se com seu poeta ou romancista admirado nesses estabelecimentos.
O point era a Confeitaria Pascoal, na Rua do Ouvidor, porém, dizem, Olavo Bilac, se desentendera com seu proprietário e, a partir de então, se transferira, junto de sua tchurminha, para a Colombo, na Gonçalves Dias. Birras de poeta.
Contra o prestígio crescente da Colombo, surge um outro grupo, chefiado por Paulo Barreto - João do Rio. Procuram hostilizar o grupo de Bilac, a quem chamavam de sr. Bilac e, em oposição à Musa Verde (o absinto) dos poetas da Colombo, que costumavam quase todos embebedar-se, cultuavam Nietzsche, o filósofo do super-humanismo, segundo nos conta Brito Broca. Aos poucos, porém, deixam a Rua do Ouvidor e passam de vez para a Gonçalves Dias. A Colombo passa a ser o ponto convergente da boemia, que já está em franca decadência. As gerações se alteram: alguns morrem, outros, como Bilac, proibido de beber pelos médicos e já avizinhando a velhice, se afastam. O panorama se altera. Lima Barreto, por exemplo, se cerca de uma roda de "rapazes instruídos" no Café Jeremias ou na Americana, onde, até certa época, segundo o próprio Lima Barreto, só tomavam café. pois o vil metal não dava para a cerveja e muito menos para o uísque. Ao lado dessas figuras literárias gravitavam artistas, desenhistas, caricaturistas e gente de teatro, além dos que se esterilizavam na boemia, e que segundo Broca, eram donos de um talento fracassado, que os amigos diziam ser grande, pois, constitui tradição boêmia, a crença de aferir talento aos que dela fizeram parte. Falava-se, por exemplo, dos famosos sonetos de Raul Braga, memorável alcoólatra, que chamando um amigo para o canto, recitava-lhe versos e pedia-lhe algumas moedas. Rocha Alazão, Santos Maia, Constantino Pacheco, e outros fizeram parte deste rol. Havia uma ligação íntima entre o álcool e a literatura: "Sim, bebíamos, mas lealmente, sinceramente" - dizia Martins Fontes.
O tempo passa e aparecem as primeiras casas de chope do Rio de Janeiro. Tudo começa com a inauguração do estabelecimento do Jacob (a alemão Jacob Wendling), à Rua da Assembleia. Paulo Barreto escreve: "Alguns estetas, imitando Montmartre, tinham inaugurado o prazer de discutir literatura e falar mal do próximo nas mesas de mármore do Jacob". Porém, segundo João do Rio, o que esses estetas, esses intelectuais, desejavam há muito tempo era um cabaré à moda do Chat Noir e do Mirliton, de Montmartre.
O Chat Noir foi o mais célebre dos cabarés, fundado em 1881, em Montmartre, por Rodolphe Salis, e possuía uma revista mesmo nome. Nela colaboraram Verlaine, Jean Moréas, Léon Bloy, Jean Richepin, Villiers de l'Isle Adam, Laurent Tailhade e tantos outros. Para assegurar a promoção do cabaré, Rodolphe Salis e Émile Gourdeau criaram a revista semanal Le Chat Noir, que teve 688 edições publicadas entre 14.1.1882 e março de 1895, e, depois, mais 122 números, numa segunda série, sendo que o último deles veio à luz em 30.9.1897. A revista encarnava o espírito de fin de siècle e tinha como colaboradores, além de artistas, cancioneiros, poetas e escritores. Le Chat Noir foi uma das primeiras revistas a publicar pequenos artigos de Jean Lorrain.
No Rio, os intelectuais esperavam por algo nos moldes do cabaré parisiense. Em 1904, na revista Kosmos, Gonzaga Duque confessa: "O cabaré foi nossa grande aspiração. Se não o tivéssemos, estávamos desmoralizados, porque sujeitar-nos-íamos à vulgaridade do burguesismo". Esperaram por muito tempo até que surgiu a notícia: acabava de fundar-se no Rio de Janeiro um Chat Noir, tal qual o parisiense. A artista, dona do estabelecimento, escreve Broca, apresentava-se travestida de Aristide Bruant, o célebre chansonnier do Mirliton. A atmosfera, enfim, era aquela desejada por artistas e escritores. "Ia-se ao Chat Noir, como a um supremo prazer de arte", dizia João do Rio. A essa época, Olavo Bilac, preocupado com a ideia da morte que o atormentou nos últimos tempos, escrevia na Gazeta de Notícias que o Chat Noir ia desmoralizar a morte. "Já temos no Rio de Janeiro um lugar onde se pode confortavelmente rir da morte". O ambiente apresentava-se satânico, o clima era baudelairiano, e o próprio Bilac colaboraria para o repertótio do Chat Noir, com a Canção do dia.
O Chat Noir não tardaria em fechar suas portas: segundo João do Rio, teria morrido por falta de dinheiro, mas na versão de Gonzaga Duque, morrera por conta das rixas, desordens e da polícia, que começou a intervir com frequencia, e o estabelecimento desmoronou-se. Mas isso foi só o começo: logo começaram a proliferar pela cidade os cafés-concerto e os cabarés, na esteira do Chat Noir.
Nota: Muitos dos dados sobre a intelectualidade e a boemia do fim do XIX, no Rio de Janeiro foram extraídos de A Vida Literária do Brasil 1900, Brito Broca, 5a. ed. Rio de Janeiro: José Olympio; Academia Brasileira de Letras, 2005, cap.IV.
Imagens: Théophile-Alexandre Steinlen, Tournée du Chat Noir, 1896, cartaz do hebdomadaire Le Chat Noir e interior da Confeitaria Colombo; todas disponíveis no Google Images.

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