Revista Philomatica

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Por que ler romances?

O que nos move à leitura? Por que os jovens buscaram avidamente pelos livros da série Harry Potter, de J. K. Rowling e hoje o fazem com Crepúsculo (Twilight), a saga dos vampiros de autoria de Stephenie Meyer? Por que continuamos a ler Madame Bovary? E o Código da Vinci, por que tornou-se um fenômeno avassalador de vendas por todo o globo? Será que lemos pelo mais simples dos impulsos humanos: a curiosidade, aquela vontadezinha para a bisbilhotice? Seja o que for, o certo é que nos apaixonamos por histórias inventadas, envolvemo-nos e, ainda que como espectadores, participamos, vibramos e choramos o destino de personagens que nunca existiram.
O fato é que o entretenimento não é a única contribuição da literatura. A ficção - a literatura, contribui com novos horizontes, amplia nossa experiência e nos oferece uma nova perspectiva sobre o mundo e sobre nós mesmos.
O livro vai bem: a recente Bienal do Livro de São Paulo movimentou meros R$ 49,3 milhões de venda em livros! E o romance estava lá em todos seus matizes. Por que tanto sucesso? A resposta não é nada óbvia. O romance não tem - nunca teve, a pretensão de verdade ou objetividade; pelo contrário, nele impera a subjetividade e a realidade ali não passa de verossimilhança.
Ler um romance implica certo ritual. Sua leitura exige a dedicação de várias horas, alguns dias, quiçá semanas. E qual o resultado? A que custo? O que buscamos na leitura de um romance, que não encontramos nem em obras teóricas ou práticas, nem nos filmes, nem nessa avalanche de quinquilharia eletrônica colocada à disposição do consumidor contemporâneo?
À busca dessas respostas, talvez seja melhor começar por interrogar a respeito do próprio termo - romance. O que dizer sobre isso? Atrás dessa palavra vêm de arrasto definições de textos bem diferentes entre si: livros, ficção, romance de tese, romance realista, romance epistolar, romance de série, romance autobiográfico, romance histórico, romance naturalista, romance de cavalaria, romance de aventuras, romance regionalista, romance indianista, romance desmontável, romance didático, romance negro, romance psicológico, romance policial, romance urbano, romance de capa e espada, Stendhal, Balzac, Proust, Dumas, Victor Hugo, Dostoievski, Tolstoi, Goethe, Machado de Assis, Guimarães Rosa...
Às vezes, ficamos tentados em excluir do grande gênero romance o romanesco das fábulas, os contos, as novelas, as memórias, mas, por outro lado, admitimos que muitas das notícias ou histórias veiculadas pela internet, por exemplo, rendem ou equivalem a um bom romance. Enfim, essa catalogação não é rígida, sequer convincente. Parece-me que o dito de Maupassant continua valendo: "Le critique qui ose encore écrire: "Ceci est un roman et cela n'en est pas un" paraît doué d'une perspicacité qui ressemble fort à de l'incompétence".
O romance é plural e só isso já dispensa uma leitura unívoca. O romance é um gênero em constante mutação, uma metamorfose ambulante - como diz a canção, e, sua única constância é seu caráter inconstante. Quaisquer que sejam os saberes que ele carrega ou qualquer das ambições científicas que a ele queiram atribuir, ainda assim, ele continua a trazer o menos científico dos discursos.
O romance não expõe fatos, não explora conceitos, não deduz ideias. Ao rigor da ciência, ele opõe o aleatório e o inesperado. Contra o universal e conceitual, ele instaura o singular, o efêmero, o minúsculo, o sensual, o acaso, a batida de um coração, uma sensação de violência, o ardor de uma discussão ... Donde a tentação de classificar a leitura de romances como entretenimento, ao passo que a leitura de livros científicos e de ensino é vista como atividade reservada à aquisição de conhecimento. Ronald Shusterman, especialista em estética, afirma: "Ficção não é o conhecimento".
No entanto, muitos estudiosos falam do poder heurístico ou do poder cognitivo da literatura. Ou seja, aquilo que procuramos em romances, nada mais é que compreender melhor o humano, o mundo, a vida. Os discursos são vários e díspares: Todorov ressalta que a literatura não é a primeira das ciências, Genette afirma que o caminho do romance é de ordem cognitiva e historiadores olham para a literatura em busca de verdades históricas. Mesmo a ciência cognitiva traz a sua pedra para o edifício da teoria: a partir de seus conhecimentos sobre os mecanismos do cérebro, hoje ela faz incursões ao lado da crítica literária.
Nesse rodamoinho, insiste a pergunta que deixa a todos perplexos e acirra a divisão entre literários, sociólogos, historiadores, cientistas cognitivos, etc: que tipo de conhecimento específico traz o romance?
É certo que alguns romances podem reconstituir um universo histórico ou social, decodificar relações sociais e nos informar de maneira vibrante sobre a psicologia humana. Mas, nem por isso têm relação exclusiva com as humanidades, o ensaio ou o cinema. Por isso, devemos distinguir o conteúdo de conhecimento que um texto é detentor, além do imaginário que nele se desdobra. Reduzir o papel de Jules Verne a divulgador da ciência de seu tempo é ignorar as razões que sempre levaram os adolescentes a se apaixonarem e se envolverem com os sonhos do Capitão Nemo e ignorar a encenação das paixões mais primitivas orquestrada em as Vinte mil Léguas Submarinas (1870).
Enfim, para encurtar a prosa: o romance teima em escapar às definições, sejam elas traçadas pelos críticos literários, pelos estudiosos cognitivos, psicólogos, historiadores, sociólogos ou quem que seja. A fronteira do gênero é flexível, ora se estende ora se retrai, às vezes, acolhe num mesmo território indivíduos díspares e estranhos. O que conta, afinal é o leitor, suas motivações, suas experiências - e não apenas o texto literário - e isso é um dos aspectos mais estimulantes. Que insistam sobre a dimensão cognitiva, moral, ou afetiva da leitura, vá lá. Ao fim, não passam de discursos para romper com velhos dogmas. Ler é mais. Ler não é apenas conversar com grandes autores do passado e do presente. É um ato de reflexão, um exercício de pensamento; é descobrir outros mundos, outras personagens, incorporar novos saberes. Ler é marcar um encontro consigo mesmo!

Veja: MAUPASSANT, Guy de. Le roman. Préface de Pierre et Jean, In Roman, Paris: Gallimard, 1987; SHUSTEMAN, Ronald. Quand lire, c'est faire: la valeur cognitive de la fiction. Paris: Tropismes, nr. 11, 2003.
Imagens: La Lecture (1934), de Picasso; Chat lecteur e La Lettrice (1864-1865 ca.) de Federico Faruffini.

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Rendez-vous no Alcazar Lyrique

"Há nesta cidade do Rio de Janeiro um estabelecimento, onde, tôdas as noites, por entre baforadas de fumo de álcool, vê-se e ouve-se aquilo que nossos pais nunca viram nem ouviram, embora se diga que é um sinal de progresso e de civilização. Chama-se êste estabelecimento - Alcazar Lírico".[1]
O parágrafo acima é trecho da primeira de umas das crônicas que Machado de Assis escreveu para a Semana Ilustrada, periódico carioca fundado em 1860 por Henrique Fleiüss e que teve no seu quadro de colaboradores, além de Machado, personalidades como Quintino Bocaiuva, Joaquim Manuel de Macedo, Joaquim Nabuco, Bernardo Guimarães e outros.
A série de crônicas fazia parte da coluna Crônicas do Dr. Semana e foram dirigidas ao Ilmo. Exmo. Sr. Dr. Chefe de Polícia e ao Ilmo. e Exmo. Sr. Conselheiro Presidente do Conservatório Dramático Brasileiro, instituição onde Machado atuaria como censor teatral a partir de 1862.
Machado, ao redigir seus libelos, coloca-se radical e ironicamente contra o estabelecimento dirigido pelo francês Mr. Arnaud e com isso participa da polêmica gerada à época em que o Alcazar Lírico era odiado por uns e amado e aplaudido por outros.
O Alcazar Lyrique foi inaugurado em 17.2.1859 com um programa variado[2], segundo o Jornal do Commercio. Também foi conhecido por alguns anos (1866/1880) por Théâtre Lyrique Français, Theatro Francez, Alcazar Lyrico Fluminense e Alcazar Fluminense; e ocupava os números 43, 45, 47, 49 e 51 da Rua da Vala, posteriormente denominada Rua Uruguaiana. De acordo com o Requerimento 50-2-60 de 15.2.1879, o prédio do teatro recebeu o número 39, que corresponde atualmente aos números 31 e 35 da Rua Uruguaiana, área hoje ocupada pelo Banco Francês e Brasileiro e a Loja Bemoreira, no pavimento térreo, sendo o prédio de dois pavimentos.
Em meados dos século XIX, mais precisamente nos anos 60, época em que o teatro era dirigido pelo artista francês Joseph Arnaud, proprietário e empresário que pretendeu dar à casa de espetáculos a feição dos cabarés de Paris, o Alcazar foi alvo permanente de polêmicas, contudo, tornou-se referência no quadro das mudanças urbanas que então se processavam na capital.
O Alcazar introduziu na pacata noite carioca uma novidade: o vaudeville revisitado e ficaria imortalizado não só nas crônicas, mas também pelas beldades que ali se apresentaram. O palco do Alcazar oferecia um teatro de variedades com números de dança e canto, inspirados principalmente na obra de Offenbach, autor que aparecerá muitas outras vezes como intertexto nas crônicas machadianas.
Para muitos, o Alcazar era uma preocupação e dava muito trabalho à polícia. CRULS[3], por exemplo, comenta o pesadelo que o Alcazar representava para as famílias: "... os velhos babosos, os maridos bilontras e a rapaziada bordelenga se davam rendez-vous todas as noites, para rentear as atrizes brejeiras e as cupletistas gaiatas que degelavam os mais idosos e rescaldavam os mais moços". Joaquim Manoel de Macedo[4] o chama de satânico e afirma que o Alcazar era "o teatro dos trocadilhos obscenos, dos cancãs e das exibições de mulheres seminuas" e que "corrompeu os costumes e atiçou a imoralidade". Macedo afirma ainda que o Alcazar influiu para "a decadência da arte dramática e a depravação do gosto".
Havia, porém, uma parte da sociedade, digamos, não tão moralista, que via o Alcazar como um símbolo do progresso que novos ares traziam à capital do Império. Muitos o elogiavam e o viam como a possibilidade de aplaudir um teatro que praticamente não existia na corte. Ali, era possível o contato com os artistes d'élite - as celebridades da época, como Aimée, Risette, Delmary, Adèle Escudero, Duchaumont e outras.
Essas beldades passaram pelo Alcazar, sobretudo, no período em que Mr. Arnaud dirigiu a casa. Nesses anos o Alcazar atingiu seu auge e passou a oferecer espetáculos consagrados e artistas de destaque, de maneira que as novidades teatrais francesas fizeram parte de um contexto de modernização. Assim , classificá-los como espetáculos de "mau gosto" denota mais uma crítica moralista que estética.
O Alcazar, passa então a propagar as novidades de Paris e o esplendor cultural que o Império de Napoleão III projetava sobre o mundo e, de quebra, ventilava a ideia da educação pelo teatro, em parte disseminada pelo mimetismo da cultura francesa que afetava a sociedade como um todo. Vale ressaltar que à época a França era vista como o exemplo a seguir por toda nação que se propusesse a fazer parte dos paises ditos civilizados.
A título de reflexão, cabe lembrar aqui, mais uma vez, o trecho de Elementos de Rhetorica Nacional, de 1869, de Junqueira Freire I (p.50-51): “Depois da gloriosa época da nossa emancipação política, têm surgido muitos gênios, mas ainda não temos completa a nossa emancipação literária. Enquanto não a tivermos, e formos obrigados a seguir um norte, sigamos a França. Porque é ela o farol que ilumina todo o mundo civilizado"; o próprio Machado, anos mais tarde, em 1877, constata: "Vivemos de, por e para Paris". [5]
O fato é que na multifacetada influência francesa na cidade do Rio de Janeiro, o Alcazar e suas celebridades, despertando repulsa ou admiração, contribuíram para reforçar a ideia de que a França era o modelo a seguir. Com isso, no Rio de Janeiro do século XIX, a presença da cultura francesa era assídua e copiosa também a importação de produtos franceses, com destaque para a moda, os espetáculos teatrais, livros e, dada a história do alcazar, a cocotte commédienne do teatro ligeiro e das operetas.

[1] ASSIS, Machado de. Semana Ilustrada. Crônicas do Dr. Semana. In: Obras Completas. Rio de Janeiro: W. M. Jackson Inc. Editores, 1957, Vol. 22, p. 248.
[2] Ouverture: 1ère Partie: Adieu, M. Lamoureux, chansonnette par Mlle. Adèline; Le cabinet de lecture, scène comique par M. Amédée; Un prince auvergnant, duo-comique par Mlle. Julie et M. Triollier; La faurette du canton, par Mme. Maire; Le chat de Mme. Chopin, scène comique par M. Germain; Le vieux braconier, chansonnette par M. Amédée; Air de Galathées, par Mme. Maire. 2ème Partie: 1ère présentation de La perle de la cannebière, vaudeville en 1 acte de Marc Michel et Labiche. Distribution: Beautandon - MM. Amédée; Godefroid, son fils - MM. Triollier; Antoine, domestique de Beautandon - MM. Germain; Georges, domestique de Thérèson - MM. Alexis; Thérèson, macasse marseillaise - MMmes Céline Dulac, Mme. de Ste. Poule, Mmmes. Adèline Morand; Mme. Blanche, sa fille - MM. Julie Conjeon.
[3] CRULS, Gastão. Aparência do Rio de Janeiro: notícia histórica e descritiva da cidade. Rio de Janeiro: José Olympio, 1965, p. 553.
[4] MACEDO, Joaquim Manoel de. Memórias da Rua do Ouvidor. Brasília: UnB, 1988, p. 142.
[5] ASSIS, Machado de. Crônicas. História dos quinze dias, 15.11.1857. Rio de Janeiro: W. M. Jackson Inc. Editores, 1957, vol. 24, p. 293.
Imagens: Rua Uruguaiana, Teatro Lírico e Rua Uruguiana.