Revista Philomatica

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Visões do Paraíso

Antes que você, leitor, ao deitar os olhos no título se enverede por caminhos, digamos, exóticos, por que não, fantásticos, explico-me: Visão do Paraíso é o interessantíssimo livro de Sérgio Buarque de Holanda ; nele o historiador analisa os motivos e mitos edénicos relacionados à colonização do Brasil, que fizeram parte das grandes narrativas acerca do achamento e colonização do continente americano. Essas narrativas foram escritas entre o final do século XV e o século XVIII. Nelas o Jardim do Éden, paraíso bíblico, é o mote das representações coletivas associadas ao continente americano e investigadas por Buarque de Holanda. Visão do Paraíso é um dos mais expressivos e eruditos textos da historiografia brasileira. Publicado em 1959, pela Editora José Olympio, foi relançado em 2000, pela Publifolha (Coleção Grandes Nomes do Pensamento Brasileiro) em edição comentada.
O texto originou-se da tese elaborada pelo autor, em 1958, para o concurso que o conduzira à cátedra de História da Civilização Brasileira da Universidade de São Paulo, porém, em prefácio à segunda edição (p. X), Buarque de Holanda comenta as razões que o levaram a abordar tal tema: "O que nele se tencionou mostrar é até onde, em torno da imagem do Éden, tal como se achou difundida na era dos descobrimentos marítimos, se podem organizar num esquema altamente fecundo muitos dos fatores que presidiram a ocupação pelo europeu do Novo Mundo, mas em particular da América hispânica, e ainda assim enquanto abrangessem e de certa forma explicassem o nosso passado brasileiro".
As Visões do Paraíso, embora tão fantasiosas quanto os motivos edénicos que levaram os europeus a suspeitarem de que pudessem ter encontrado o paraíso na terra, se analisadas, não se mostram tão fabulosas e fantásticas, mas, acreditem, cheiram a conto do vigário. Explico-me: a partir de 3 de outubro de 2010, viveremos no Éden. Acreditem. Quem viver verá!
Como posso afirmar isso? Ora, convenhamos; é só você, leitor, deixar-se levar pela retórica, digo, engôdo pré eleitoral. Os fichas sujas mergulharam com as Náiades em fontes e nascentes, e, diferente do que ocorria à época mitológica, os infratores não foram punidos pelas ninfas com a morte, em vez disso só lhes coube a amnésia e do mergulho saíram fichas limpas. Para nós eleitores, duas constatações: já não se fazem mais ninfas como antigamente e a amnésia, para nós, traz efeito reverso, é um tiro pela culatra. o sujeito amnésico não é exatamente aquele que padece com a falta de memória, pelo contrário, é aquele que há de se lembrar de nós e nos dará um pedacinho do paraíso. Ele, ao invés de perder - ganha; e nós, se ganhamos, não levamos! Suas estripulias ganham tonalidade ética, ou seja, dos mensalinhos e mensalões às cuecas - que de meras protetoras da genitália foram alçadas à condição de caixas-forte, mais os descalabros da Casa da mãe Joana, digo Civil, tudo, tudo mesmo, passa a ser vendido como ações de líderes pró-ativos. Seremos presentados com o que há de melhor!
Mas, deixemos a política torva e sanhuda de lado. Falemos do Paraíso que nos prometem todos os dias: como nem tudo é perfeito e as regras do Altíssimo continuam valendo, lá, não seremos como Adão e Eva antes do pecado original, teremos que trabalhar, mas, acreditem, o mínimo será de no minímo cinco salários minímos atuais - maravilha! Como em casos de aumento tudo é proporcional, ou seja, o aumento é maior para quem ganha mais, que façam a conta. Na educação os professores serão bem pagos(!!!); o aluno sairá da escola sabendo ler e escrever e - incrível, dono de uma capacidade crítica invejável. Detalhe: os estudantes de baixa renda terão os estudos totalmente subvencionados pelo estado. Vagas nas creches serão vagas; há de faltar criança. Como todos já sabem o funk, o rap e o samba, nas escolas públicas os alunos hão de decifrar quem e o que são esses hieróglifos: Mozart, Bach, Beethoven, Schumann etc.
No Paraíso, como o próprio nome sugere, não se falará em poluição; afinal, a vida será pura e verde. Haverá parques, ciclovias (Comparando ao Éden - uma inovação, a modernidade!). Os rios serão limpos, despoluídos. Ah! meu amado Tiete, quanto vil metal já não escorreu sob suas águas em direção aos bolsos...ops, em direção ao rio Paraná. Enfim, educação ambiental não será matéria de jornal, até mesmo porque isso será assunto de outros mundos - mais utópicos. Gostamos de utopia!
E, caso lhe aconteça alguma tragédia no Paraíso, tranquilize-se: a saúde será de Paraíso de primeiro mundo, quase celestial, afinal, essa possibilidade é puro devaneio porque em paraíso que é paraíso, ninguém adoece. E os estádios? Ah, em 2014 os estádios serão deslumbrantes! (Não estava eu falando de hospitais?).
Mas e o nosso mal maior, a segurança? Bem, isso já tivemos o gostinho de experimentar; não falo das balas perdidas, os assaltos e os sequestros, mas a sensação célica que impera no firmamento. Virtude tais já andaram por aqui. Quer uma prova, leitor? Pois vá lá, um relato de Machado de Assis em crônica de 10.10.1864[1]: "Casta filha do céu, que vês tu na planície? perguntei-lhe como no poema de Ossian[2]. A infeliz desceu com ar desconsolado e disse-me que nada vira, nem a sombra de um acontecimento, nem o reflexo de uma virtude. Perdão, viu uma virtude.Não sei em que lugarejo da Bahia reuniu-se o júri no prazo marcado e teve de dissolver-se logo, porque o promotor de justiça não apresentou um só processo. Ó Éden baiano![3] dar-se-á o caso que no intervalo que mediou entre a última sessão do júri e esta, nem um só crime fôsse cometido dentro dos vossos muros? Nem um furto, nem um roubo, nem uma morte, nem um adultério, nem um ferimento, nem uma falsificação? O pecado sacudiu as sandálias às vossas portas e jurou não voltar aos vossos lares? O caso não é novo; lembra-me ter visto mais de uma vez notícias de fenômenos semelhantes. O Éden, antes do pecado de Eva, não era mais feliz do que essas vilas brasileiras onde o código vai-se tornando letra morta, e os juízes verdadeiras inutilidades. Onde está o segrêdo de tanta moralidade? Como é que se provê tão eficazmente à higiene da alma? Há nisto matéria para as averiguações dos sábios. ___ Mas, __ juste retour des choses d’ici-bas[4], __ talvez que na próxima sessão do júri, a vila que desta vez subiu tanto aos olhos da moralidade, apresente um quadro desconsolador de crimes e delitos, de modo a desvanecer a impressão deixada pelo estado anterior".
Como acaba de constatar, leitor, ainda que vivamos no Paraíso que nos prometem, ainda assim haveremos de desejar certa desestabilização porque, afinal, nem tudo é perfeito, sequer o Paraíso. Algo deve agitar a bem-aventurança. No Éden, o próprio criador plantou a árvore da sabedoria e, logo depois, veio a serpente, astuciosa como sempre. No paraíso mitológico havia os sátiros, essas divindades menores da natureza, criaturas meio homem meio animal, com cauda e orelhas de asno ou cabrito, pequenos chifres na testa, narizes achatados, lábios grossos, barbas longas e órgãos sexuais de dimensões bem acima da média - muito frequentemente mostrados em estado de ereção. Viviam nos campos e bosques e tinham frequentes relações sexuais com as ninfas, além de copularem com mulheres e rapazes humanos, cabras e ovelhas. Uma festa!
Veja você, leitor, há paraísos e paraísos, uns mais movimentados que outros; e, se a serpente desestabilizou o Éden e os sátiros excitaram as ninfas, o que poderia comprometer a segurança de nosso paradisíaco torrão? Talvez a tiririca, aquela erva que insiste em tomar conta do canteiro, uma das piores plantas daninhas do mundo, devido à alta nocividade, agressividade e larga amplitude ecológica. É isso aí, talvez venhamos a padecer com uma invasão de tiriricas.


[1] ASSIS, Machado de. Obra Completa de Machado de Assis - Crônicas - Vol. 2 (1862-1867). Rio de Janeiro: W. M. Jackson Inc. Editores, 1957, p. 178-1835.
[2] Trata-se do bardo celta Oisín ou Ossian que teria vivido na Escócia no século III. Na verdade, constatou-se no final do século XIX tratar-se de uma fraude literária, embora exemplo precursor do romantismo. James Macpherson (1763-1796) teria coletado o original da obra em sua pesquisa de campo pelo noroeste da Escócia por volta do ano de 1760, na tentativa de recuperar um antigo poema épico escocês. Em 1762 publica Temora e Fingal, dois poemas épicos. No entanto, os poemas são criações do próprio Macpherson baseadas nas baladas gaélicas; verificou-se mais tarde que os habitantes daquelas paragens desconheciam as baladas cantadas por Macpherson e supostamente originadas ali.
[3] Pura ironia machadiana! O Éden parecia bem mais agitado. O Diário do Rio de Janeiro de 7.10.1864, p. 1, publica notícias vindas das províncias do nordeste entre outras: “... jazem dous infelizes, presos na villa de Tapera há 64 dias, sem que lhes tenha feito nem interrogatorio, nem processo, nem cousa alguma,...”, “A polícia dorme, e apenas acorda para ir a missa estriptosamente na igreja da Piedade, sendo as patrulhas da cidade dadas sem necessidade pela tropa de linha!’, “Agora para Itaparica foi nomeado um contrabandista...” (sobre nomeações e demissões de cargos policiais após a eleição).
[4] Le Tartuffe – Ato V, cena III: Mme Pernelle, mãe de Orgon, não acredita no caráter hipócrita de Tartuffe, como pensa seu filho. Este, acabara de presenciar a cena em que o impostor tenta seduzir sua esposa. Quando a mãe insiste em que é preciso provas para acusar alguém, Orgon não se contém e esbraveja todo seu rancor em uma cena de diálogo contundente, quando Dorine intervém: “Juste retour, monsieur, des choses d’ici bas: Vous ne voulez point croire, et l’on ne vous croit pas.”


Imagens: Nymphs and Satyr (1873), de William-Adolphe Bouguereau 91825-1905); urna eleitoral de 1893 e a erva daninha tiririca.

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