Revista Philomatica

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Ligações Perigosas

É indiscutível que a história das artes mantém inúmeras correspondências com a literatura. O estudo dessas relações estende a leitura e compreensão das obras literárias exatamente porque oferece abordagens específicas sobre movimentos literários, funções, formas e gêneros das obras, o que permite não só a compreensão de ecos intertextuais, mas também o entendimento da circulação das obras entre diferentes sistemas literários e seu deslocamento no tempo, de um século a outro, por exemplo. O ensino da história das artes, que sempre se articula ao redor de grandes temas ou movimentos artísticos e as questões que constituem a intersecção e convergência entre as várias disciplinas, mostra-se muito proveitoso para a compreensão da literatura.
É nesse contexto que, ao tentar entender melhor o siècle des Lumières, deparei-me, novamente, com Laclos e seu formidável Les Liaisons dangereuses. Pierre-Ambroise-François Choderlos de Laclos, homem do Ancien Régime, nascido à época de Louis XV é, de fato, um filho do século das Luzes. Embora tivesse saído de uma pequena noblesse de robe, despede-se do Ancien Régime, atravessa a Revolução Francesa e vê Bonaparte cônsul vitalício, sem qualquer acidente ao longo do percurso. Entra para o exército e é nomeado subtenente, aos 20 anos, em 1791; ainda que não seja a caserna o que mais o atraia, lá permanece até o ano de 1778, deslocando-se com o exército por várias cidades francesas. E é provavelmente em Besançon que este admirador explícito de Rousseau e particularmente de La Nouvelle Héloise, que considera "le plus beau des ouvrages produits sous le titre de roman" - citada com frequência nas Liaisons, começa a redação daquela que vai ser considerada sua obra-prima: Les Liaisons dangereuses, talvez para aliviar o tédio da vida cotidiana, nem sempre bem-humorada.
Em 1781 pede permissão para publicar seu romance. Logo, em 1782, assina um contrato para publicação 2.000 exemplares de Ligações Perigosas. O livro é um sucesso absoluto, em parte devido ao escândalo e, imediadamente, uma nova edição é impressa. Laclos, em seguida, começa uma correspondência com a Mme Riccoboni, onde discute sobre suas escolhas estéticas e moralidade do seu trabalho. Ao mesmo tempo, conhece Marie-Soulanges Duperré com quem terá um filho; casa-se em 1786, legalizando então uma união iniciada em 1784. Da união entre o autor e sua esposa restará farta e importante correspondência.
As mulheres e a reflexão sobre a educação feminina são temas caros a Laclos. Em 1783, ele responde a uma questão colocada pela Academia de Châlons-sur-Marne, sobre formas de melhorar a educação feminina. Seu discurso permanecerá inacabado, mas ele voltará ao tema e publicará um conjunto de três ensaios: Des femmes ou De l'éducation.
A importância do tema, é claro, está presente em Ligações Perigosas, seja na jovem Cécile Volanges, que nada aprendeu no convento, exceto ser presa fácil para os libertinos, digamos, de mentes muito mais fortes, seja a Marquise de Merteuil - mulher de tête, forjada a partir do estreito contato com a leitura e da observação do mundo.
"Le roman le plus intelligent"; "le plus effroyablement pervers de tous les livres": são vários os superlativos para definir o livro de Choderlos de Laclos, desde sua publicação, um sucesso inegável devido ao escândalo e sua má reputação ou, mais precisamente, à sua maestria incrível, sua terrível atualidade, como tem demonstrado sucessivas adaptações e transposições para o cinema.
Considerando-se que os escritos anteriores de Laclos não tinham nada de propriamente marcante, as Liaisons, são um sucesso retumbante. Sucesso, quanto a forma: Laclos tira proveito de todos os truques do romance epistolar para fazer de sua obra uma maravilha do maquiavelismo, num estilo em que a perfídia das personagens é enleada de boa dose de sensibilidade. Ainda que não recorra a qualquer narrador, domina magistralmente a arte do arranjo e cria interessante polifonia através de eficiente estratagema de escrita. Laclos prende o leitor durante todo o desenrolar da narrativa.
É evidente que, nesse caso, o grande sucesso da obra não é creditado somente à escrita, mas também devido à força das personagens e a profundidade dos temas abordados. Ainda hoje, Ligações Perigosas continua a despertar debates, suscita admiração, espanto e surpresa. Profundamente enraizado no contexto filosófico e intelectual do Iluminismo, o livro mergulha no coração das relações de poder, nas relações entre razão, emoção e sentimento, que ainda fascinam o leitor moderno.
A riqueza e a complexidade de Ligações Perigosas fazem da obra objeto de estudo fascinante. O estudo da estratégia epistolar é um dos mais marcantes: partindo do modelo tradicional das lettres trouvées, o escrito elabora-se a partir do estilo e construção do caráter de cada uma das personagens; tal é a precisão desses retratos que a escrita torna-se, ela mesma, um armadilha, mecanismo de ruína, passível de destruição. O jogo polifônico (veja-se, por exemplo, as apresentações contrastantes entre si - Tourvel, por exemplo, sucessivamente descrita por Valmont e a Marquise, cartas 5 e 6) e a justaposição dessas vozes e pontos de vista é que fazem da obra objeto de uma deliciosa e perigosa perversão, que incitam o prazer do leitor - e por que não?, da leitura.
A obra comporta uma variedade de tons: veja-se a ingenuidade da jovem Cécile frente aos sutis e controlados jogos dos amantes maquiavélicos, algo tão comentado por toda a crítica e também estudado e discutido pelos protagonistas do romance; isso, porque a arte de escrever, assim como a arte de raciocinar e agir taticamente com vistas a uma vitória era uma das grandes preocupações dos libertinos. Eles próprios são objeto de estudo, e, em geral, a história literária, cultural e filosófica interessa-se pelos libertinos de Ligações Perigosas: esses livres pensadores em pleno exercício da razão, visam o poder e liberdade. A Marquise de Merteuil, diz: "Je ne désirais pas de jouir, je voulais savoir".
Essa busca por conhecimento e liberdade é inseparável do Iluminismo e Rousseau é particularmente elogiado pelo casal libertino. As Ligações Perigosas mostram a falha entre os ideais postulados pelo Iluminismo e a utilização perniciosa que a Marquise de Merteuil e o Visconde de Valmont fazem da razão, da educação e da capacidade de julgar. Ao observar as atitudes dessas personagens, o pressuposto da bondade inata do homem é posto à dura prova.
As questões morais, é claro, aparecem como o mote principal da obra, já evidenciadas no inteligente préface du rédacteur, em uma delicadeza de estilo que revela as luzes e as sombras com os todos os questionamentos que isso pode despertar. Cada uma das personagens, que as cartas revelam de forma fina e singular, merece particular interesse: La Marquise de Merteuil, o Vicomte de Valmont (o casal), e a Présidente de Tourvel são personagens indispensáveis. Em geral, a questão feminina é fundamental em Laclos, e as figuras que aparecem no livro, até mesmo Mme Rosamond, são passíveis de análise sob um conhecimento histórico da condição das mulheres no século XVIII. As questões relativas à educação das mulheres vêm à luz e figuras como a viúva ou a virtuosa são delinedas com tal grau de profundidade que passam de personagens à condição de tipos literários. Os discursos da Marquise são, avant la lettre, a mais brilhante argumentação em prol da libertação das mulheres e, assim, prefiguram as batalhas feministas. Até mesmo a Présidente, com sua maneira de se entregar sem retorno, sem remorso, não é menos importante, pois, ainda assim, é uma mulher que assume suas escolhas. A diferença entre as duas mulheres reside principalmente na escolha entre o coração e a razão, dicotomia que percorre ao longo de todo o texto e em acordo com a presença das personagens libertinas. Este duelo lê-se igualmente nos grandes lances de hipocrisia e de manipulação, no jogo de máscaras que vem à luz e acontece no texto.
No cinema, a ruptura entre a realidade e as aparências do sentimento é particularmente destacada na adaptação cinematográfica de Stephen Frears, através dos motivos do espelho - lugar de verificação, de introspecção e de reflexos - e da ópera, onde se vê e onde se é visto.
Mas vale a pena ir à fonte: trata-se de um grande livro, um grande duelo du coeur - do coração - e de l'esprit - do espírito.



Imagens: Cartaz do filme de 1988 com John Malkovich, Glenn Close e Michelle Pfeiffer; Ballroon Scenne Illustration from Les Liaisons dangereuses, de Georges Barbier e Laclos. Todas disponíveis no Google Images.

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