Revista Philomatica

sábado, 9 de dezembro de 2017

Hipocrisia quotidiana

“Amo Platão, mas amo muito mais a verdade.” A fala é de uma personagem e são duas as razões pelas quais dela me aproprio: primeiro, porque não acredito em absolutos, seja no sentido aristotélico, seja no sentido pragmático, que traduz tudo aquilo que não se deixa falsear; depois, porque a hipocrisia ronda o quotidiano, está sempre à espreita e nos fustiga, também diariamente.

A ética, dizem, é fazer o correto quando não se tem uma câmera a registrar suas ações. Ora, evoluímos muito e sequer trazemos à definição a intenção, o caráter. Desse modo, o caráter é relativo, tudo depende do grau de exposição. O complicador maior, creio, é que em nossos dias, mesmo sob os holofotes a hipocrisia e a falta de ética ganham foro privilegiado e de verdade.

Tomemos alguns exemplos aos quais já nos habituamos: o presidente da república indica o novo diretor da polícia federal (isso mesmo, tudo em minúsculas!); pois bem, na tal da nomeação do novo ‘servidor’ (e o nome vem bem a calhar), o recém nomeado orbita em torno do presidente e seus asseclas, todos investigados por corrupção. Em seu discurso, o mais novo servidor presidencial, digo, da polícia federal, diz pretender combater a corrupção com unhas e dentes.

A plateia, composta por outros servidores ilibados e pela imprensa, participa do ritual como se estivesse diante de um absoluto pragmático, o que não deixa de ser irônico. Discurso feito, essa mesma imprensa, tão absoluta quanto o novo diretor, passa a entrevistá-lo; e é nesse exato momento que o servidor corrompe sua imparcialidade irônica, afirmando que uma malinha ou outra de dinheiro não quer dizer absolutamente nada! No mais, um cidadão qualquer que tenha lá no fundo da alma um resquício de bom-caratismo, sentir-se-á ultrajado face a exponencial hipocrisia.

A hipocrisia é uma senhora idosa. E está aí uma ex-presidente que não me deixa mentir, também ela partidária do absoluto e da ética, razão de seus discursos memoráveis. O fato é que a hipocrisia não só divide o prato que comemos, como, às vezes, faz uso do nosso próprio garfo, tornando hipócritas a nós mesmos. Nas relações de trabalho isso é matéria comum. A amizade muito comumente tem seus dois lados, o particular e o público. Nessa lógica, vale o velho adágio de confiar desconfiando.

A hipocrisia, como visto no início dessa nossa prosa, não só está presente nas altas esferas públicas, moldando sua estrutura, mas serve de arcabouço para a sustentação dos pequenos poderes. Nas universidades, por exemplo, comumente se confunde o público e o particular. Funcionários reinando há algum tempo em determinado território, apropriam-se do público em proveito de seus próprios interesses e dos interesses de seus amigos e protegidos. A vida acadêmica, relativizada, resume-se a ‘panelas’, estas, digamos, nem sempre pautadas pelo intelectual, se é que me entendem.

Os concursos públicos são o exemplo mais claro e evidente de como as estruturas espúrias se articulam. Tudo é feito e arquitetado dentro de uma clara e evidente transparência, contudo, nas arrrières boutiques, como dizia Montaigne, os resultados são publicados em ‘secreto’ antes mesmo de os editais virem à luz. Funcionários e servidores agem hipocritamente, atuam, às vezes, porcamente, e acreditam que as demais almas sequer desconfiam dos ardis que se tramam à vista de todos.

Diante disso tudo o que fazer? Não sei, caro leitor. Definitivamente, não sei. Mas há sempre duas saídas: nos acostumarmos, e assim nos tornamos a cada dia um pouco mais hipócritas, ou fazermos como Rousseau, retirarmo-nos para as montanhas, tal um promeneur solitaire. Mas, como dizem os mais aquiescentes, o conhecimento só vem com lágrimas, agonia e dor, sempre temperadas com alguma pitada de decepção.



quarta-feira, 15 de novembro de 2017

Sapiens ignaros

“Há um momento em que a gente simplesmente se cansa disso tudo.” A frase, ouvia-a de minha avô pouco antes de partir há quase duas décadas, e, depois de uma semana difícil e de perdas, não há como não entabular uma reflexão, visitar os subterrâneos da alma, emergir, olhar ao redor e pesar os sobressaltos, as alegrias e as tristezas e, por que não, a ignorância que nos assola. Vale a pena tudo isso?
“A ignorância traz uma felicidade extremada.” Hoje estou para lembranças, embora não me recorde do autor desta uma pérola, que continuo preservando sempre que me deparo com disparates publicados na imprensa e afins, alterados, evidentemente, ao sabor dos interesses dos grandes, dos corruptos e seus asseclas.
Fala-se muito em ideologia, na tentativa de atribuir certa erudição à verborragia e à inépcia, contudo, a intelligentsia que povoa as redações, parece-me, não lê. Se o faz é via blogs, facebook e otras mierdas más, reproduzindo falas de pseudolíderes ágeis em preparar uma ratatouille, colhendo ideias aqui e acolá e misturando-as ao sabor dos próprios interesses, esquecendo de que toda ideologia é falsa consciência, mentira, portanto, instrumento de alienação, venha de que lado vier.  
Não à toa, ouvi ontem um desses pseudolíderes descomendo ideias pela boca depois de tê-las digerido em ácido estomacal fétido e interesseiro; a tal dizia ‘sincerona’ que “utopia concreta são as possibilidades reais que estão latentes na realidade”. O nonsense é extremado!
Não bastasse isso, o homo sapiens (e nada aqui me faz esquecer discurso recente em que a canaille creditou a evolução do homem à bola. Esta, teria nos transformado em homens e mulheres sapiens). Feliz por não mais pertencer à espécie dos neandertais ou australopitecos, fecho as cortinas da memória e passo a refletir sobre um vídeo realizado em Portugal, por um jornalista.
Nele, o jornalista indagava pessoas nas ruas sobre o que achavam de casamentos entre homo sapiens, em clara analogia ao casamento homossexual. Opositores e partidários da legalização do tal casamento, responderam às questões ingenuamente, demonstrando um arrazoado desprovido de qualquer informação, contrário não só ao bom senso, mas propenso à ignorância, bastião de toda intolerância. 
Geograficamente, volto-me ao sul sem, contudo, sugerir qualquer ascendência da ex-metrópole sobre o caráter ignaro dos tupiniquins, mas tocado pela hipocrisia e ao mau-caratismo da septuagenária dos direitos humanos, a Sra. Luislinda Valois, que incarna a fraude em pessoa: não é Luís, não é linda e nada vale, pois, até agora, a única ação de destaque em seu ministério foi pleitear acúmulo de pensão e salário totalizando míseros R$ 61.000,00. Valois desconhece o preço e a qualidade dos brioches comidos pelo povo; julga-se escravizada por perceber tão mísero salário – a metade do que pleiteia.
Afora isso, somos tão hipócritas que a verdade, quando dita, nos fere a alma. A mentira, esta nos enleva, rende letras de música, samba nos pés e algum valor. Não por outra razão, no Rio de Janeiro, território do tráfico, o senhor Pezão e autoridades policiais sentiram-se extremamente ofendidos ao ouvir o óbvio do ministro da justiça. Porém, obtusos somos todos, afinal vendemos o carnaval como uma grande festa popular da arrière-boutique, como diria Montaigne. E, só para provocar, uma perguntinha tola: naquela terra de ninguém, e em muitos outros rincões do Brasil, quem financia políticos, que indica comandantes da polícia e dirigentes em muitos outros cargos, quem banca a festa? Os antigos diziam que quem paga a música escolhe a dança. Parece-me óbvio!
Por fim, fico com Eco, meu padre-santo, por ter um dia afirmado que o homem é de fato uma criatura literalmente extraordinária: descobriu o fogo, criou cidades, escreveu poemas, mas não cessou de guerrear seus semelhantes, enganá-los e destruir o meio ambiente. Assino embaixo quando diz que o equilíbrio entre a alta virtude intelectual e a baixa idiotice dá um resultado neutro. E diria mais: nessa toada em que estamos, hora ou outra mudamos o astral e nos tornamos bem mais opitecos.

quarta-feira, 1 de novembro de 2017

Caetaneando o que há de bom - no 13

Caro leitor, leãozinho... estou certo de que assim como dois e dois são cinco, um dia ou outro nessa sua vida poética, você talvez tenha tido alguns quereres e sentiu lá no fundo da alma uma força estranha, uns desejos de ir para tão longe, que o fizeram vislumbrar Londres. Mas esse seu coração vagabundo com mania de antecipar as coisas já começara a bater em inglês sem que você mesmo se desse conta, e a old smoke surgiu assim, repetida: London London.
Não bastasse esses devaneios, ao ver a luz do sol você descobriu seu dom de iludir, sussurrou a si mesmo um estou triste, aprofundou a queixa, pois já não sabia mais se a ilusão era sua ou dos outros. Em meio a tanto bafafá, sozinho, saiu caetaneando o que há de bom. Pois é isso, leitor, são tantas as canções que, malgrado a hashtag nos trending topics, você não quis se dar ao trabalho de criar mais uma, afinal depois do mexeu com uma, mexeu com todas o melhor mesmo é sair cantarolando odara, feliz e despreocupado.
Abro um parêntese e volto no tempo em busca de alguma prudência: lá pelos idos de 1862, Machado de Assis, perspicaz, buscou conselho junto a sua pena que o aconselhou: “Não te envolvas em polêmicas de nenhum gênero, nem políticas, nem literárias, nem quaisquer outras, de outro modo verás que passas de honrada a desonesta, de modesta a pretensiosa, e em um abrir e fechar de olhos perdes o que tinhas e o que eu te fiz ganhar.”
Fecho o parênteses, reflito, e chego à conclusão de que os tempos são outros. Polêmicas hoje duram vinte e quatro horas, quando muito uma semana, sempre em consonância aos interesses da imprensa. Nós, indiferentes à mnemônica, apoiamo-nos na mídia, e, ocupados com a vida quotidiana, ignoramos os interesses e deixamo-nos levar. Manipulados como bonecos, esquecemos tudo no dia seguinte.
Portanto, contribuo com o bafafá não só porque sou anterior às hashtags, mas também porque tenho a malfadada mania de me lembrar de coisas, correspondências, similitudes...  E não é que vi Roman Polanski dando uma piscadela irônica a Caetano Veloso, num assim dizer “conheço bem essa história, meu caro”!? A despeito da genialidade artística, num cassino qualquer, ambos foram para a roleta e apostaram na mesma casa, o 13!
Roman Polanski, cineasta francês (memorável O Baile dos Vampiros, com a deslumbrante e trágica Sharon Tate!), em 1977 foi acusado de manter relações sexuais com uma garota de 13 anos. Polanski cumpriu quarenta e cinco dias de prisão e depois de saber que o juiz encarregado do caso pretendia condená-lo a uma pena de cinquenta anos, fugiu dos Estados Unidos e se instalou na França. Em 2009, é novamente preso nas Suíça, os Estados Unidos solicitam a extradição; dois meses depois é colocado em prisão domiciliar em Gstaad. Em 2010, a Suíça decide pela não extradição; em 2015, a Polônia, país no qual também tem cidadania, recusa a extradição; a vítima o perdoa publicamente e pede que interrompam o processo contra ele. Mas ele é o que chamam pedófilo, portanto os americanos estão como cão a ranger os dentes, prontos a atacá-lo. E olha que já se foram 38 anos!
No Brasil, como há gente que tem o hábito de folhear revistas velhas, acharam uma Playboy, de 1998, em que Paula Lavigne, mulher de Caetano revela que foi deflorada pelo tropicalista, aos 13 anos! Em outra, a Maire Claire, esta de 2016, a Senhora Veloso afirma que à época, quando foi desvirginada, era apenas uma menina. Um movimento inominável da direita resolveu exumar a notícia e meter lá uma cerquilha antes do nome do cantor, seguido da palavra pedófilo. Estava montada o que alguns chamam de guerra cultural.
O que vejo ao comparar os dois episódios, semelhantes na raiz, é um dos traços constitutivos da nossa cultura: o hábito que temos de amenizar, relativizar, não dar importância a crimes de qualquer natureza se o protagonista é alguém de nossa empatia. Quando isso ocorre, inventamos histórias, higienizamos a biografia, criamos mil explicações, torcemos a lei, fingimos cegueira, fazemos ouvidos mouco, não sabemos de nada, não estamos nem aí!
A Folha de São Paulo, por exemplo, chegou a legislar a questão absolvendo o cantor, mostrando-se totalmente incoerente se comparado o fato ao episódio José Mayer, cujas reportagens sucessivas diziam mais do mesmo.
Tony Goes, colunista especializado em celebridades, no site UOL, do mesmo grupo, ao demonstrar habilidades de pesquisa, informa seu leitor de que a lei vigente de 1982 (Código Penal ainda de 1940) absolve o cantor, e ao enumerar os lances posteriores de seu romance, conclui o parágrafo sentencioso: “Chamar pedofilia o que aconteceu há 35 anos é ignorar todo esse contexto.”
Ora, eu, de minha parte, não estou a pedir a condenação de Caetano. Se a vítima de Polanski o perdoou, Caetano, por sua vez, fez da ninfeta sua mulher e a mãe de seus filhos. Por que eu o julgaria? O que questiono são as tentativas de apagamento do passado empreendidas pela imprensa e o uso de pesos e medidas díspares no trato de casos similares.
Goes, esquecendo ser colunista, aventou-se juiz e fundamentou a sentença: “Além do mais, o estupro só foi redefinido por lei em 2009, e a lei não retroage. Dado o histórico do casal, é duvidoso que algum juiz considere Caetano Veloso culpado (inclusive porque o suposto crime já prescreveu).”
Dada a sentença, Goes questiona o fato de celebridades e artistas serem atacados nas redes sociais por militarem na extrema esquerda ou por enriquecerem via lei Rouanet. O colunista não aprofunda a questão, o que poderia lhe render um bom contra-argumento, mas perde-se e, redundante, explica a lei de incentivo à cultura. Ao fazê-lo, exemplifica trazendo Danilo Gentili, crítico da lei e que dela recebeu benefícios
Por fim, antes de vislumbrar uma teoria da conspiração nesses tempos, confesso, sombrios em que vivemos, cai numa esparrela argumentativa: afirma que desconfia serem os artistas tão execrados pura e simplesmente por “inveja”, pois alguns deles “são ricos e desfrutam de uma série de vantagens”.
Concordo com Goes quando afirma haver um esforço para criminalizar a expressão artística e promover a censura, mas veja, leitor, ao querer fazer-se ator, celebridade, e interpretar o juiz, esqueceu-se de que era colunista, de modo que ficou o dito pelo não dito. Na tentativa de apagar o óbvio, não disse coisa alguma. A mim, não me restou nada além daquela pequena prosa com meus botões. Também a opinião deles é divergente, mas lá há um que considero o mais sensato e que sempre me adverte. Desta vez, não foi diferente: olhou-me em direção ao queixo que trazia reclinado e disse-me: “estão confusos, uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa”.

Publicado originalmente em http://z1portal.com.br/category/miscellanea/

sábado, 28 de outubro de 2017

Juventude sem escola

Quem já leu Machado de Assis e especulou suas opiniões sobre a crônica, conhece de cor e salteado o bordão de que o gênero é a reunião do útil e do fútil. Ora, Machado afirmava ter o folhetim (a crônica) nascido do jornal, donde a união agradável dos adjetivos supracitados. Lesse em nossos dias, o Bruxo do Cosme Velho certamente se depararia com a degenerescência da agradável futilidade.

Hoje, por exemplo, dou de olhos com as notícias mais lidas no site da autointitulada maior empresa de notícias do país: “Exausta e sem ‘perereca’: Luciana Gimenez explica 5 fotos do Instagram”, “Flávia Alessandra sobre sexo na piscina: ‘Uma delícia!’”, “Cláudia Raia lembra primeira vez com o namorado da irmã”, “Herdeiros do Maksoud Plaza brigam por causa de comida e roupa lavada’. Agora, diga-me você leitor: o fútil, o que é? Está bem, entendi! Não é preciso repetir!

O superficial, o leviano, o frívolo, a conversa de botequim... ora, isso é para encaixar uma ironia, um riso qualquer entre a empáfia da manchete da primeira página e a seriedade da notícia, não subjugá-la! Por que razão, pergunto, o leitor resolveu fazer do superficial, do pueril e sem importância o prato principal de sua refeição?

Lá embaixo, perdida no espaço antes reservado ao folhetim, eis que encontro uma noticiazinha de cara amarrada e apertada ao lado do depoimento de uma médica que largou a medicina tradicional e aderiu à ginecologia natural. Ali, encontro minha resposta sisuda. Trata-se de uma matéria sobre a evasão escolar, e, segundo tal estudo, o país, no ritmo de cágado que caminha, demoraria cerca de 200 anos para incluir os jovens no sistema educacional.

De pronto, o instituto responsável pela avaliação apresenta números, e contra números, sabemos, não há conversa: dados de 2015 (estamos em 2017!) revelam que 22% dos jovens entre 15 e 17 anos estão fora da escola. Também de acordo com os números, temos hoje (2015) cerca de 10,3 milhões de jovens nessa faixa etária. Do total, 1,5 milhão sequer se matricularam em uma escola e outros 1,9 milhão abandonaram a escola antes mesmo de completar o ano e/ou foram reprovados.

O que me consola é que 6,9 milhões frequentaram a escola por um tempo e lá aprenderam a ler algumas garatujas, razão pela qual a maior empresa de notícias do país consegue elencar diariamente as matérias de preferência de seus leitores; o que me assusta é que esses leitores preferem ler e comentar a ‘perereca’ da Luciana Gimenez e a primeira orgia da Cláudia Raia enquanto o país literalmente afunda pelo ralo.

Outro dado curioso que gostaria de comentar com você leitor é o fato de que o tal instituto aponta como a principal causa de evasão escolar o trabalho. O trabalho, sim, o trabalho surge nas entrelinhas como o vilão da história. Para isso, a jornalista exemplifica a matéria com o caso singular do jovem Jonathan, que, aos 18 anos, no segundo ano do ensino médio, descobre que a namorada está grávida e é obrigado a deixar a escola para se tornar chefe de família.

Ora, casos como esse acontece e são frequentes, mas não explicam tamanha evasão e nem se pode creditar ao trabalho a vilania da prosa. Vejam: ao pesquisar, encontrei várias outras matérias (mais atualizadas) sobre o desempregado entre os jovens entre os 14 e 24 anos (lembrem-se que trabalhar aos 14, 15 e 16 é crime perante a lei!) que trazem o índice nada louvável de 28,8%. 

Façamos as contas: 10,3 milhões de jovens x 28,7% significa que temos cerca de 3,0 milhões (2,9664 para ser mais preciso) de jovens desempregados. De modo que, considerados os 3,4 milhões de jovens evadidos das escolas, resta um saldo de 400 mil alunos prejudicados pelo malfadado hábito de trabalhar.

O estudo aponta ainda outros culpados: a infraestrutura, a carência de professores, a qualidade de ensino, o clima escolar. Dei o braço a torcer, afinal, educação só é quesito na pauta de políticos às vésperas de eleição...

Por fim, o estudo também aponta como causa de evasão escolar a baixa resiliência emocional entre os jovens. Flexionei o pescoço, olhei para baixo e entabulei um curto diálogo com meus botões: “O que acham? Lembram-se do maus bocados pelos quais passamos? Levantávamos às 5 da manhã, trabalhávamos o dia todo, estudávamos à noite; os sábados, bem, aos sábados sequer saíamos... tínhamos trabalhos a fazer. Os botões, levados por meus movimentos, desviaram-se à direita, depois à esquerda. Um deles, teso e carrancudo, sussurrou: “Acho que temos uma geração de fracotes.” Reaprumei o pescoço, ergui a cabeça e fingi não ter ouvido aquela outra sinonímia de ‘falta de resiliência’. 

Publicado originalmente em http://z1portal.com.br/category/miscellanea/

quarta-feira, 25 de outubro de 2017

Che, um logo pop

Nascido na década de 1950, o conceito de Pop Art representa mais a atitude do artista em relação ao trabalho, que a obra de arte em si. O conceito desafiou a tradição ao afirmar que elementos da cultura popular produzidos em séries seriam equivalentes às Belas Artes, uma vez que o pop remove o material do seu contexto e isola o objeto e/ou combina-o com outros objetos também populares, para a contemplação. Algo como botar a Mona Lisa dançando funk em um morro carioca, arrisco. O ecletismo cultural leva ao delírio os especialistas modernosos e todos replicam o novo à exaustão.
Falo o que falo só para provocar a militância e a combatividade movidas à Che Guevara, aquela estampa que vende bonés, camisetas, bolsas, canecas, chaveiros e, acreditem, acessórios sexuais! Ao comemorar 50 anos da morte de Che, a imprensa decidiu escarafunchar um pouco desse logo que vende de tudo. Anaïs Dubois, do Le Point, aproveitou sua estadia em Buenos Aires e visitou Juan Martins Guevara, irmão do logo.  

Sorridente, ele a recebeu em um pequeno apartamento cujas paredes estão repletas de fotos do guerrilheiro. Entre elas, destaca-se o célebre clique de Alberto Korda, fotógrafo de Fidel Castro, que foi batizado de ‘guerrilheiro heroico’. E é aí que entra a pop art com sua genialidade: Andy Warhol surrupiou o clichê de Korda e foi só um pulinho até que Che estampasse propagandas de vodcas, lavanderias e carros, dando lá sua inestimável ajudazinha à máquina capitalista.
Fizeram dele, Che, um desconhecido? Que nada! Juan Martim, o irmão, é taxativo ao dizer: “Eu acho que é a foto que mais se parece com ele. Quando ele ri, sim, há esse olhar malicioso, é aí que eu reconheço meu irmão Ernesto.” Embora Juan Martim afirme que seu irmão foi de fato um provocador e não um ‘guerrilheiro heroico’, não pude ignorar o tal olhar malicioso, vá lá, isto é o mesmo que ir de Cuba a Nova York, ou vice-versa.
Quando foi clicado, o Che sério da foto, com um olhar negro e profundo, assistia a um tributo às vítimas de sabotagem do La Courbe, navio belga que transportava armas e munições para a ilha, e cujo trágico destino, é claro, foi imputado ao Tio Sam por Fidel Castro.

Korda estava encarregado, assim como vários outros fotógrafos, de cobrir o acontecimento. Sobre a prancha do fotógrafo, vê-se inúmeras outras fotos de Fidel Castro na tribuna, além de Simone de Beauvoir e Jean-Paul Sartre, presentes ao acontecimento, e para os quais a revolução cubana tinha um alto significado.

Esta foto romântica não teve muito sucesso no início; Korda, em uma primeira seleção, separou-a, deixando-a de lado por um tempo até publicá-la, em 1961, no jornal La Revolution, antes que caísse no esquecimento até a morte de Che, em 1967. O editor italiano Giangiacomo Feltrinelli, que detém uma cópia do clichê de Korda, imprime então um milhão de cópias da foto, que vende por cinco dólares. É o nascimento do mito, lucrativo para muitos, menos para Korda, que não leva um centavo pelo clique.

Por outro lado, Korda não tinha lá do que reclamar, afinal, a propriedade intelectual era um conceito burguês que Cuba só abraçaria em 1997, quando aderiu à Convenção de Berna, portanto, nenhum problema em socializar a foto.
No entanto, no final da vida, nos anos 2000, Korda sentiu-se meio incomodado com a campanha da vodka Smirnoff que usava sua foto. “Como defensor dos ideias pelos quais Che morreu, não me oponho à reprodução [da foto] por aqueles que desejam propagar sua memória e a causa da justiça social em todo o mundo, mas sou categoricamente contra a exploração da imagem do Che para a promoção de produtos como o álcool, ou qualquer outro produto que denigra sua imagem”, diz Korda. Respeito o movimento de Korda: afinal, por que criticá-lo por torcer um pouco a corda ao tentar faturar uns míseros 50.000 dólares?
Afora isso, hora ou outra a corda estoura: a filha de Korda que, parece-me, não é o engajamento em pessoa, iniciou uma luta quixotesca contra todos aqueles que usam o clichê de forma abusiva - e abusivo para ela é tudo -, publicidade ou usos comerciais, restaurantes, editores e mesmo partidos políticos. É claro que à época não fazia ideia da extensão dos tentáculos da internet.

Em 2008, uma decisão judicial entre Diaz-Lopez, a filha, e o Front national, partido de extrema-direita francês, que lançou mão da foto, provocou controvérsia entre os profissionais de direitos autorais. Segundo a lei cubana, a fotografia seria domínio público em 1987, mas a justiça francesa, preferiu legislar a partir de uma lei da época em que Cuba era ainda colônia espanhola, afinal, como perder a oportunidade de um pontapé legal em Marine Le Pen?  

A canetada satisfez Diaz-Lopez, mas, se para os franceses a foto só estará em domínio público em 2082, para o resto de todo um mundo mercantil em que o social é ficção de herói, a despeito da legislação, Che é garantia de dividendos e de bons produtos!


Publicado originalmente em http://z1portal.com.br/category/miscellanea/

segunda-feira, 23 de outubro de 2017

Quando os Vautrins adentram a política


Ao longo da semana, em conversa informal com um amigo, discutíamos sobre a tolerância generalizada à corrupção, sobretudo casos em que os envolvidos estão associados a alguma causa social. Teríamos algo como: “rouba, mas faz”, ou ainda, “o fim justifica os meios”. A prosa, é preciso que eu diga, veio à tona em razão do suicídio do reitor da Universidade Federal de Santa Catarina, em Florianópolis. Rimos – acreditem! – com a generalização do crime; culpa, é claro, de uma carnavalização que só a oralidade permite.

O assunto é espinhoso, por isso, melhor procurar abrigo na ficção, já que a ideia é falar de ladrões. Até mesmo os menos afeitos à leitura sabem que o Romantismo elevou a um outro plano a apologia da subversão, cuja correspondência na literatura francesa do século XVIII, por exemplo, era o desenvolvimento extremado das filosofias libertinas e naturalistas. No XIX, portanto, o malfeitor, o gangster, o bandido, o pirata e outros, tornam-se heróis de uma nova mitologia.

Basta uma olhadela para a memória trazer de arrasto exemplos pródigos: na Alemanha, o Karl Morr, de Schiller; na Inglaterra, o corsário de Byron, o Falkland, de Godwin, o Cleveland, de Walter Scott; nos Estados Unidos, ainda que com certo desvio, os Indígenas de Fenimore Cooper. A lista continua; é só uma questão de exílio numa biblioteca qualquer para você descobrir muitos outros.

Entre essas personagens, algumas obedecem aos seus próprios instintos, a maioria justifica suas atitudes por meio de considerações de ordem metafísica e/ou moral, tais nossos “representantes” na classe política, cujo Papa, a crítica, felizmente não mitifica, mas o chama de “fator”. E, seja qual for o “fator”, na maioria das vezes o que mais importa observar não é o fato de que ele concorre a algo, mas sim o poder que tem para desestabilizar o jogo e mover as cartas em proveito próprio.

Mas voltemos à ficção: os heróis bandidos acima, todos, irmanavam-se no espírito de aventura, ao contrário de nossos “políticos bandidos”, cuja especialidade, parece-me, é nos excluir da aventura, surrupiando-nos o final feliz. No século XIX, sobretudo entre os anos de 1820-1830, disseminou-se na França a voga das histórias de ladrões, cujos episódios, quase sempre ingênuos, caíram na graça de um público popular. Talvez venha daí nosso gosto em amar e idealizar corruptos, reelegendo-os ad infinitum

É sob o signo da literatura popular que Balzac faz sua estreia. Por essa razão, encontramos em suas obras de juventude criminosos fascinantes, ainda que sumariamente desenvolvidos. Estes, mesmo que de longe, já nos anunciam o maior e mais sedutor: Vautrin. Mas não adentremos à análise, falemos antes de um livrinho escrito por Balzac (1826): Code des Gens honnêtes.

Nele, Balzac esboça a fisionomia do mundo dos ladrões, sempre por meio de observações cínicas, herdadas do Século da Razão, e que serão retomadas por Rastignac, célebre personagem arrivista. Com a palavra, Balzac:

“Os ladrões formam uma república, que tem suas leis e costumes; eles não se roubam, religiosamente prestam seus juramentos... Aprendemos assim a admirar esses ‘homens raros’, que são ladrões de grande envergadura, esses psicólogos profundos que sabem mentir com extrema habilidade, prever eventos, julgar o futuro. Esses perfeitos comediantes podem usar qualquer disfarce e interpretar todos os papéis; esses seres inspirados igualam-se ‘aos Homeros, aos Aristóteles, ao autor trágico, ao poeta cômico, graças às virtudes da imaginação, a brilhante, a divina imaginação’.  Acredita-se que, se ele empregasse para o bem o requinte e a perfeição com as quais faz seus cúmplices, o ladrão seria um ser extraordinário”

Voilà, talvez resida aí a razão pela qual grande parte do eleitorado insiste em incensar bandidos, tomando-os por heróis; isto, até que submerjamos todos nas águas profundas da corrupção ou que nos tornemos heróis – ou bandidos! Tudo depende da banda em que você toca!
________________

P.S.: Qualquer semelhança com seu candidato é mera coincidência.

Publicado originalmente em http://z1portal.com.br/category/miscellanea/

sábado, 21 de outubro de 2017

Asfixia cultural e de ideias

Tem sido cada vez mais difícil seguir a parábola à risca, digo, separar o joio do trigo. Não à toa, hoje, na dita pós-modernidade, quando até mesmo os ideais iluministas surgem comprometidos com os jogos do poder, é frequente que você, leitor, encontre nas páginas sociais de seus amigos a profecia de Aldous Huxley, que vaticinou dias em que a ditadura teria a aparência perfeita de uma democracia, constituindo-se numa prisão da qual os prisioneiros jamais experimentariam o desejo da fuga. Nesse sistema, afirma Huxley, os escravos teriam amor à escravidão, tal o grau de amor pelo consumo e o divertimento.

Por essa razão, desconfio de tudo o que leio e estou sempre à espreita das intenções por trás das palavras, sobretudo quando estas se fazem dissimuladas, surrupiando-nos qualquer entendimento das entrelinhas. Quando tudo é pautado pela ausência de clareza, de imparcialidade e de posicionamentos, até mesmo aqueles que militam por uma causa, desconfio, alienam-se palavra após palavra.

Vejam: há bem pouco tempo as mulheres foram levadas a alisar seus cabelos; negras e brancas saíram às compras e, ávidas por possuírem aqueles aparelhinhos que esticam até os fios mais rebeldes, empregaram ali todo o seu dinheiro. Esgotado o interesse, o mercado veio à cena e passou a dizer que o chique são os cabelos cacheados; a mulherada saiu em fúria à busca de shampoos que encaracolam os fios, a ponto de os cabelos surgirem como sinonímia do orgulho da raça.

Com os obesos não é diferente: a indústria descobriu que eles significam cifrões em montante superior àqueles ganhos pela indústria farmacêutica ou médica com as tais cirurgias de redução de estômago. A indústria sub-repticiamente incensou o repúdio à gordofobia, neologismo que descortinou a possibilidade da moda plus size, e as marcas faturaram ainda mais com obesos orgulhosos da ausência de suas cinturas. A imprensa, dizendo-se politicamente correta, hoje afirma que é legal ser gordo e que o must é ostentar logo abaixo do abdômen um singelo pneu de bicicleta - ou de moto.

O mesmo acontece com os gays. De fato, quem mais luta contra o preconceito contra gays e lésbicas, e outros quotidianamente discriminados e segregados, é a indústria. Esta senhora descobriu que gays e lésbicas, por não terem a preocupação com a prole, tem lá seus caraminguás para gastar, por isso, e só por isso, o gay merece respeito. Observem as propagandas: as marcas envolvem-se em tais questões visando sempre o vil metal. Agora, enquanto escrevo, não me ocorre o nome de uma grande empresa que invista seu nome e dinheiro em socorro ao terceiro sexo, quando este é vilipendiado e ultrajado nas ruas, por meio de suporte às delegacias e organizações que se ocupam disso.

E a imprensa? Como age? De que modo você é alienado por ela? Você tem controle sobre o que gosta ou deixa de gostar? Sobre as pessoas que admira ou não nutre qualquer empatia? A arte que você aprecia, você a admira porque emocionalmente você compreende, sente, respira, inspira o objeto, ou porque o crítico do jornal com o qual você ideologicamente se identifica diz que aquilo é uma arte comprometida, combativa, humanista ou sei lá o quê?

Formas e limites são constantemente superados e a imprensa vale-se disso até mesmo para vender seus jornais, ter o seu like, e, quanto mais longa a lista de comentários medíocres, mais tem-se a prova de que o convencimento foi efetivo do ponto de vista mercadológico.  

Nessa lógica, o marketing todo poderoso é que guia e manipula seus gostos e seus prazeres. Este senhor faz com que, por exemplo, você opte por esta ou aquela música, direcione sua atenção para aquele site específico que se anuncia como a maior empresa de comunicação do país e que, neste site, você tenha “o embate do século” como uma das notícias mais lidas. O “embate” no caso é a troca de tiros entre uma policial e uma traficante, personagens de um folhetim; ou, ainda, que você vibre com a nota sobre um certo roqueiro que “embarangou”.

Você, leitor, é convidado a reverenciar isto ou aquilo, este ou aquele, em consonância aos desejos da publicidade. Não é fácil escapar deste processo de asfixia. Quando se tenta debater contra este estado de coisas, muitas vezes, a comunicação não funciona e há excessos de mal entendidos. Recusar-se a engolir o que a publicidade lhe oferece, gera, quase sempre, o pensamento de que você é contra o genuinamente popular, que brota das massas, que é a vida como ela é, tudo, é claro, porque você deve ser um, sei lá, elitista. Não à toa, professores e críticos literários são relativizados por escreverem sobre o cânone, a chamada alta literatura.

Hoje produzimos poemas e versos sobre mundos flutuantes e sem significado. Pensando nisso, lembrei-me de “A obra aberta” (1965), texto de meu padre santo Umberto Eco. Hoje, não se tem mais obras prontas à apreciação, mas conceitos. Tudo pode ser lido e treslido à maneira daquele que aprecia, é claro, mas o complicador é que o Grande Irmão direciona o olhar, coloca cabrestos e anula a visão periférica.

Perdido o foco, sua opinião é esfacelada, instaura-se então a dispersão e o fragmentário, de modo que surgem quotidianamente especialistas sobre tudo; muitos são os artigos que preenchem páginas e mais páginas, que, uma vez torcidas, não são capazes de mantê-lo em reflexão por mais de uma ou duas horas. Tudo é efêmero e, quanto mais volátil, mais a senhora publicidade funciona no intuito de fazê-lo crer na próxima ideia, levando-o a lutar por ela, indispor-se por ela, enfim, vibrar com ela junto dos seus caros amigos.

Tudo é indeterminação e a arte, por exemplo, parece saída de uma linha de produção, tal a similaridade com que se expõe. É certo que um ou outro artista zombe da efemeridade e tente imprimir sua digital na linha do tempo, procurando continuar de onde a arte parou. Mas são aqueles poucos que clamam no deserto do marketing. Ocorre-me agora que estão fadados ao desaparecimento, haja vista não haver mais mecenas e tudo depender da boa venda do produto.
É isto o contemporâneo; um diálogo em que as obras dos artistas modernos conversam com aquelas que fizeram história, tal a Mona Lisa, exaustivamente recriada em função das polêmicas multiculturais?

Disperso, à espera da próxima moda, da próxima música, da próxima arte ou da próxima literatura que a imprensa me fará amar, encerro essas garatujas, ao menos satisfeito pelo fato de a indústria tornar alguns assuntos mais palatáveis aos preconceituosos, permitindo que minorias continuem a respirar.


Publicado originalmente em http://z1portal.com.br/category/miscellanea/

quarta-feira, 4 de outubro de 2017

Da cura gay: ou sobre legisladores de rabicós

A historieta abaixo, leitor, não obedece à cronologia alguma. Por isso personagens e dados, aleatoriamente, ora avançam no tempo, ora regridem e misturam-se em proveito das personagens.
Tudo passou-se em um país distante, mas veja, pode ser que tudo esteja a acontecer agora, no instante mesmo em que você lê essas garatujas. O país fazia - ou faz - fronteira com o pays de oreillons, da também célebre historieta de autoria daquele senhor de quem se dizia que quando pretendia atacar o diabo do homem, acabava-se por ferir a virtude.
Pois bem, na primavera de 1207, ou 2017, que seja, reuniram-se os sábios para deliberarem sobre questão de extrema importância para o futuro do país. Dela dependiam a educação, a segurança, a saúde e até mesmo a economia, porque a esta última, os habitantes do país, digo, a aristocracia, creditava máxima importância, fazendo vista grossa até mesmo à corrupção que se alastrava por todas as castas e hierarquias, dos mais simplórios à intelligentsia.
Os sábios, também chamados de magistrados, decidiram naquela primavera que parte da população era doente. A razão nunca fora muito bem explicada, mas o fato é que toda a questão girava em torno do rabicó. Não o rabicó em si, se é que me entendem, mas ao que os habitantes do país decidiam fazer com ele. Insuflados por alguns barões levitas que bradavam versos de um manual, na impossibilidade de exterminar todos os que se diziam donos de seus rabicós, decidiram pela cura.
Propositadamente - ou não -, levitas e magistrados, ainda que soubessem que legislar sobre o rabicó de outrem não lhes dizia respeito, tornaram-se cada vez mais imperativos e ditaram leis. De fato, não se preocupavam com as questões fisiológicas e de saúde, pois, o que queriam mesmo era controlar o que pensava esse grupo que se achava dono de seus rabicós e que, portanto, dizia às desbragadas que faria o que quisesse com eles, os rabicós, algo, claro, inconcebível para levitas e magistrados.
A ideia da doença, e consequentemente da cura, talvez tenha mesmo se originado entre os levitas, pois há registros de alguns que, nas horas mortas, liberavam seus rabicós em boates e becos da cidade. Depois, fatigados, decidiram receber visitas pela porta da frente, proclamando-se curados. Mas, há quem diga que tudo isso é lorota e que eles continuam a lacrar (neologismo que para sua exata compreensão deve ser lido como antonímia). Inspirada com os episódios de cura, a família tradicional, hipócrita e em busca da perfeição, começou a procurar por shamans que diziam prescrever terapias capazes de mudar radicalmente as escolhas de seus filhos; a maioria dos shamans, diga-se, eram na verdade oportunistas ávidos pelo lucro patrocinado pela intolerância familiar.
De fato, o que incomodava mesmo levitas e magistrados era a escolha em si, a liberdade de decidir o que fazer, como fazer, com quem fazer, quando fazer. Receber visitas, seja pela porta da frente, seja pela dos fundos, não fazia dos habitantes detentores de melhor ou pior caráter, muito pelo contrário, mas, eles, os legisladores de rabicós, não concebiam a ideia de liberdade implícita na escolha; e não falo só da liberdade de expressão, fazer tudo o que der na veneta, como dizia minha vozinha, mas sobretudo da liberdade de fazer o que quiser com seu corpo. Ah, isso era demais para os levitas e magistrados! Diziam eles que tamanha liberdade poderia contaminar outros habitantes, esquecendo-se de que escolhas são escolhas - e pessoais.
Decretada a cura, o ministério da verdade terá que se ver com questões menores, tais como: a regulamentação da doença no código internacional de saúde, uma vez que a anomalia é tupiniquim e só atinge país; o grupo dos rabicós livres podem, por pirraça, decidir faltar ao trabalho alegando a tal doença, e aí, como fazer? Os atestados médicos, como preenchê-los? As perícias no malfadado sistema de saúde, como organizá-las? Chamadas de socorro ao SAMU: qual a prioridade, um atropelamento ou um rabicó sedento por aventura? Uma vez instalada a doença, como proceder com a aposentadoria em casos de doentes terminais, aqueles acostumados a pôr o rabicó na roda?
Apreensivos, os considerados “doentes” temem que práticas ainda anteriores a 1207 sejam colocadas em uso. À humilhação diária, bom que se diga, nunca deixaram de expor sua insatisfação, pois conheciam seus direitos, mas isso incomodava muito levitas e magistrados.
Por fim, o povo desse país, que um dia o chamou de ‘país do futuro, perdeu-se totalmente no calendário. Uns acreditavam estar em 2017, outros em 1207, outros ainda, mais desesperançados, acreditavam que estavam ainda antes no tempo. Mas nem tudo estava perdido: tinham rádio e, para localizarem-se no tempo, habitualmente, não só o povo, mas também levitas e magistrados ligavam seus aparelhos. Hora ou outra, depois de alguma notícia, a música soava forte e, para desespero de uns e alegria de outros, que não se continham, as ondas sonoras tornavam-se palavras e, dizem, até mesmo magistrados e levitas punham-se a cantarolar Dancing Queen e It’s raining men.


 Publicado originalmente em http://z1portal.com.br/category/miscellanea/

sábado, 16 de setembro de 2017

Queermuseu: alarido por uma omelete


Vivemos tempos imperativos em que os discursos devem ser pautados pela diferença. Contudo, há diferenças e diferenças, e, parece-me, as diferenças de uns são mais robustas que as de outros. Esquerda e direita digladiam-se ao tentar impor suas opiniões. Aquela história de que cada um deve ocupar o seu quadrado é deixada de lado, e a tal ponto que uns e outros só consideram um quadrado quando este lhe convém, caso contrário, o quadrado torna-se esfera. E é justamente aí que as ideias não se afinam. Um quadrado nasceu para ser quadrado, dizem, por que de um momento para outro decide ser esfera? Leitor, quadrados reproduzem quadradinhos, jamais esferas, dizem outros. Pensando assim, muitos decidem pelo extermínio de toda quadroesfera que teima banhar-se em purpurina!
Tolerância e intolerância são seletivas! Por isso, creio, nada mais oportuno que relembrar o aforismo apócrifo atribuído a Voltaire, algo que pode ser a pá de cal para enterrar de vez qualquer contradito àquilo que não defendo. Trata-se da célebre frase “não estou de acordo com o que você diz, mas lutarei até o fim para que você tenha o direito de dizê-lo”. Creditada a Voltaire, foi cunhada por Evelyn Beatrice Hall, em 1906, na sua obra The Friends of Voltaire, muito provavelmente por ter ele defendido Helvétius, ainda que tenha deplorado De l’esprit.
Veja, Voltaire defendeu o direito de Helvétius expressar-se, ainda que não estivesse inteiramente de acordo com seu pensamento empirista-materialista. Lembrei-me disto depois da polêmica em torno da exposição Queermuseu, cancelada pelo Banco Santander, instituição que ora cito sem ganhar um mísero caraminguá!
Houve exageros de ambas as partes: um jornal sair com a manchete de que a intolerância voltou a assombrar a arte pareceu-me um exagero. Afinal, penso, Voltaire teria repetido o que disse à época em relação à polêmica em torno da obra de Helvétius: “Que alarido por causa de uma omelete!” Não tivesse um grupelho lançado mão de armadura e espada, e saído em cruzada contra o que afirmam atentar à moral e aos bons costumes, só uma meia dúzia de gatos pingados é que iriam até ao Santander (de novo - e a contragosto!) conferir traços rudimentares e garatujas borradas sobre imagens artisticamente ainda infantilizadas.
A gritaria fica mais incompreensível se tomarmos exemplos anteriores. Relembrem o ocorrido com Flaubert e Laurent Pichat, ou até mesmo o próprio Baudelaire, face ao procurador Pinard, que também clamou à decência pública, à moral e aos bons costumes e etc etc... E o que Pinard ganhou com isso? Nada! Já Flaubert e Baudelaire asseguraram cadeira no Olimpo literário. Mas atenção! Não exageremos! Não estou a comparar Madame Bovary e As Flores do Mal com os desenhinhos de Bia Leite e o ménage à trois no papel de pão gozado de Adriana Varejão. Mas gostei do JC Deusa Shiva, de Fernando Baril!
Não entendi até agora o porquê da gritaria toda; os contrários acabaram por avalizar o que repudiavam, garantindo-lhe visibilidade. Ora, a exposição não generaliza nada, não impõe nada, não induz a nada, até mesmo porque se alguma reflexão poderia ser tirada dali, após todo esse bate-boca, nada sobrou além de uma intolerância polarizada. A vida é assim como ela é: Auerbach já dizia que “o histórico contém em cada indivíduo uma pletora de motivos contraditórios”. Povos, por mais identificáveis que possam parecer, são ambíguos, vacilantes, plurais, diferentes.
Por fim, creio que uns e outros tentam nos impor uma certa univocidade, e não somos assim! Somos feitos de camadas, slogans diferentes. Nós, brasileiros, só somos unívocos quando nos dispomos a uma grosseira simplificação, numa Copa do Mundo, por exemplo, chorando uma derrota de 7 a 1. Há univocidade também na guerra. Toda essa exasperação, para quê? É guerra que queremos? Sequer avaliamos a qualidade dos nossos canhões e, ademais, jamais empunharíamos uma espingarda de dois canos como a do filósofo de Ferney.



Imagem: Casa Vogue, de Cibele Bastos; foto Santander Cultural/Divulgação. 
Publicado originalmente em http://z1portal.com.br/category/miscellanea/

segunda-feira, 11 de setembro de 2017

Especialistas e malandros literários


Eu bem que poderia, mas não vou mencionar o célebre caso de ejaculação pública que monopolizou o noticiário, notadamente depois de o juiz soltar o estuprador, num evidente caso de leitura positivista da lei. Prefiro a crônica machadiana de 1861, que, à época, já dava conta dos pífios discursos no senado. Vá lá, não é de hoje que em matéria de mediocridade atingimos a profundeza dos mares, o que explica muito da tristeza que sentimos. Pois bem, Machado referia-se aos “discursos notáveis” ejaculados pelo senador Penna, donde o pedigree da casta política.
Também não faço qualquer referência à cerimônia conduzida pela ministra do Supremo Cármen Lúcia, em que apresenta a justiça em números. Os números, pautados por certa transparência - e aí, acho, eis um pequeno inconveniente para a justiça -, não deixam mentir e revelam que míseros 30% - ou quase - dos processos que chegam à justiça são efetivamente julgados. Eis a razão, acredito, de certo matiz de nossa sociedade, pautada pela impunidade. Sou indiferente, ainda, à fala territorialista do ministro Luiz Fux, aplaudido por uma plateia corporativista ao ressaltar que se deve proteger a justiça contra as críticas recentes, nas quais os números surgem como resultado da ineficiência jurídica.
Não falo de nada disso. Decidi-me, pelo contrário, falar dos especialistas da internet, sobretudo porque o episódio ejaculatório despertou ânimos e todos opinaram com conhecimento de causa. Falar sobre tudo como se tivesse ampla sabedoria do todo não é prática recente. Há muito que não só a retórica alimenta-se do pseudoconhecimento, mas também professores, palestrantes, escritores e especialistas que têm opinião formada sobre tudo.  
A obra de Pierre Bayard, publicada há mais de uma década, coloca luz sobre essa prática corrente e surge como um pequeno manual de malandragem. Tratando-se da leitura, ainda que vivêssemos um milênio, dificilmente leríamos todos os livros publicados, sobretudo porque, dizem os especialistas, por volta de três mil deles aparecem todos os dias.
O leitor contumaz conhece o território que adentro: trata-se daquele em que, na melhor das ocasiões, sofremos uma censura silenciosa. Para isso, basta nos deslocarmos entre as prateleiras de uma biblioteca. A despeito da cobrança social (Nossa, você não leu Dostoievski??!!!), esse sentimentozinho que nos recrimina e nos compele a pensar que devemos ler tudo, sugere ainda que devemos nos envergonhar por não ter lido este ou aquele autor.
Mentir, nesses casos é uma das alternativas, mas isto pode nos trazer complicações; tudo depende de nosso interlocutor, que, vá lá, pode ser alguém versado no autor em questão.  Há ainda a possibilidade de conhecer a obra por vias indiretas: resumos, crítica, amigos, a posição que o livro ocupa em catálogos, comentários de especialistas na internet, a Wikipédia...
Podemos ainda seguir à risca o que disse Schopenhauer: “Para ler o bom, uma condição é não ler o ruim: porque a vida é curta, e o tempo e a energia, escassos.” Donde, pressupomos que é imperativo certa seleção e recorte na grande biblioteca, caso queiramos constituir uma coletânea pessoal.
Como falar dos livros que não lemos, do francês que mencionei logo acima, maliciosamente nos fornece alguns truques de sobrevivência no mundo dos especialistas, além de algumas formas de apreciar um livro. Os afeitos à malandragem, bem, estes não vão extrair dali nada mais que um incentivo à fraude intelectual, tais os alunos experts em control C-control V.  
Bayard, especialista em literatura francesa, fornece algumas técnicas para o bom malandro e também ao especialista em falar sobre livros que nunca leu: 1) não tenha vergonha: quem não tem lá certa lacuna de conhecimento em sua formação? Não se envergonhe se o sujeito ao seu lado começar a falar de uma obra que você não conhece; isso não quer dizer que ele seja mais especialista que você; 2) imponha suas opiniões: afinal, opiniões são subjetivas, arbitrárias. Fale bem ou fale mal de um livro, mas fale com convicção! Ninguém há de desconfiar de você; 3) invente livros: há coisa mais falível que a memória? Quem já não foi traído por ela? Você pode falar com tranquilidade sobre personagens, criar episódios, reproduzir comentários de críticos sobre a obra e até mesmo falar de autores que não existem. Caso dê de cara com um especialista, diga que sua memória o confundiu; 4) fale de si mesmo: fale do significado que o livro ou o autor tem para você, mesmo que não os tenha lido. Oscar Wilde disse que a crítica literária é uma forma de biografia, leve isto a sério!
Por fim, tranquilize-se: a exigência de ler todos os livros da grande biblioteca é irreal. As quase-leituras, para Bayard, são tão produtivas quanto uma leitura total. Afinal, que cabeça a nossa! Ler um livro em sua completude é algo impossível, uma vez que somos traídos por nossas limitações; não por outra razão os especialistas afirmam que o esquecimento entra em ação logo após a leitura de uma página, de modo que ao ler a seguinte, já teremos esquecido a anterior. Com o tempo, embaralhamos obras, autores, personagens e episódios, isto quando não os esquecemos totalmente! Assim, falamos não deste ou daquele livro, mas de uma lembrança imprecisa, imperfeita e tortuosa que guardamos das obras. Portanto, leitor, tranquilize-se!
Eu bem que poderia, mas também não vou mencionar a célebre fortuna encontrada no apartamento do Geddel, o escroto bandido republicano!


 Publicado originalmente em http://z1portal.com.br/category/miscellanea/

sexta-feira, 1 de setembro de 2017

Produto: prostitutas made in Brazil

Lá pelos idos de 1893 não tínhamos as modernidades tecnológicas que hoje nos sufocam com imagens exuberantes de lugares longínquos, que nos acham até mesmo no mais recôndito dos trous aux rats, que nos fazem clientes vinte e quatro horas por dia...
Basta um clique e lá estamos nós a conferir mercadorias a quilômetros de distância, regateando preços, avaliando a qualidade, apreciando a estética do produto. Sabemos que boa parte da quinquilharia vendida no Brasil vem da China, via Paraguai, e é produzida por mão de obra escrava, mas, ainda assim, não nos furtamos de botar as mãos em um pacote de chave-de-fendas ching ling; é só dar um pulinho ali, na esquina. A despeito da qualidade e de quem as produziu, lá vamos nós! E voltamos, é claro, à mesma esquina, depois de apertar o primeiro parafuso que, resistente, retorceu as chaves. Através de historietas como esta, repetidas infinitamente, é que se constroem os clichês.
Em 1893 ainda não tínhamos um produto nacional, como hoje o tem os chineses - aos milhares; só tínhamos florestas, árvores e mais árvores, papagaios e mais papagaios... e, vá lá, alguma cana e algum café. Muitos dos viajantes europeus que por aqui aportavam ressentiam a falta de um verniz cultural, tal era a modorra em que se vivia na capital; e falo de 1893! Mas não se assuste, leitor! Saia das grandes capitais, pegue a estrada e pare sorrateiramente em uma pequena cidade do interior de um estado brasileiro qualquer. Procure uma livraria, um teatro, um cinema, um café; sinto dizer, mas estará de volta em 1893!
Pois bem, em 1893, Machado de Assis publica uma crônica nas páginas da Gazeta de Notícias em que replica o dito de Sarah Bernhardt desmentindo uma folha argentina que publicara suas opiniões sobre o Brasil, país que deixara há pouco. Sarah, teria dito então: Ce pays féerique... (este país de contos de fadas). Machado não titubeia, ressente-se com a opinião da atriz, diz sentir-se afogar pelo banal e o vulgar, afirma que Sarah está a reproduzir a “velha chapa” de todo viajante que por aqui passa, e, hiperbólico, afirma que ela lhe arrancou sem piedade a ilusão do outono.
O ressentimento de Machado vem do fato de que todos os viajantes limitavam-se a comentar a exuberância da natureza, permanecendo indiferentes ao homem e suas obras. E aqui, dou-lhe a palavra: “Quando me louvam a casaca, louvam-me antes a mim que ao alfaiate. Ao menos, é o sentimento com que fico; a casaca é minha; se não a fiz, mandei fazê-la. Mas eu não fiz, nem mandei fazer o céu e as montanhas, as matas e os rios. Já os achei prontos, e não vejo que sejam admiráveis; mas há outras coisas que ver.”
Ah, Machado, se soubesses o que veem hoje; estou certo de que acrescentarias um bom parágrafo àquelas garatujas!!!
A notícia é velha, mas na última semana replicaram-na exaustivamente nas redes sociais. Trata-se de uma reportagem sobre um levantamento a respeito dos produtos que, na cultura popular, são estereotipicamente associados a certos países. Algo como pensarmos no Japão e vermos uma porção de produtos eletrônicos dançando em frente aos olhos, ou ainda, falarmos da Turquia e sentirmos uma vontade irresistível de pegar carona no tapete de Aladim, cruzarmos os ares, provarmos da liberdade plena!
Isto feito, produziram mapas de todos os continentes associados às buscas que os internautas fazem na rede, os produtos que procuram, seus interesses e curiosidades sobre este ou aquele país, e, adivinhem...
Sinto dizer, Machado, nada mudou! Quando procuram pelo Brasil na rede não estão em busca de sua produção cultural e/ou intelectual, mas da cor local - ainda. Basta olhar o mapa para vermos que há bem poucos lugares no mundo em que o produto local é a prostituta. Isto não é exclusividade nossa, é claro, mas, no caso, o produto prostituta associado à produção brasileira choca, sobretudo a nós, brasileiros, por mais acostumados que estejamos às estripulias do agronegócio e ao aço e o ferro que sangram no coração das antigas florestas. Ao dar de olhos com o mapa, confesso, por mais que chame de canaille a corja que habita o pináculo do poder em Brasília e me refira à Assembleia e ao Senado como prostíbulos, ver a palavra “Brasil” substituída por “Prostitute” foi lá um soco no estômago.
A situação em que nos encontramos não nos anima a ressentimentos, como ocorreu com Machado, principalmente porque logo ali ao lado jaz o Paraguai como lugar procurado para se viver. Num certo revanchismo, penso, talvez sejam foragidos da lei em seus países à procura de abrigo, mas isto só não me deixa mais otimista.
O fato é que compram a cerveja na Argentina e vêm ao Brasil bebê-la em companhia das nossas prostitutas.
Penso também nas escolas, na falta delas!
Olho para Brasília e não me animo! De onde me virá o socorro?

Publicado originalmente em http://z1portal.com.br/category/miscellanea/