Revista Philomatica

quinta-feira, 30 de março de 2017

Best Sellers na Era do Caos

La barbe! Hiperbólicas, as manchetes dos jornais e sites de notícias, às vezes, não produzem o efeito desejado e cansam o leitor. Polêmica, a personagem que protagonizou o obituário da semana polariza opiniões, embota os espíritos e me faz tomar o ensaio de Adorno por Evangelho.
“Vigiai pois” alertava o profeta; contudo, o filósofo nos recomenda vigilância aos conceitos já corrompidos pelo uso. A crítica, no caso, deve apontar o malogro daquela ideologia que precisamos para viver, visto que toda ela - ou todas elas - é inverdade, falsa consciência e mentira. Talvez esteja aí a razão de eu não mais me surpreender com a intelligentsia silenciosa aos feitos heroicos de grandes líderes, sobretudo quando estes envolvem paredões e valas comuns. Digo isso por dizer, mas, lá no fundo, o ruído desse silêncio continua a me incomodar.
Folheando livros, vejo a página mas não enxergo a escrita. Dependo da memória que, providencial, traz-me ao espírito Giambattista Vico. Profeta, Vico postulou um ciclo composto por três fases: teocrática, aristocrática e democrática; após esta última predisse o caos. Vivemos o caos, meu amigo. Contudo, manso leitor, se deitares os olhos em direção à capital, viverás a dúvida, porque verás que tua alma hesitará entre o circo e o presídio à espera de que alguém escolha a lona ou a grade.
Perdoem-me a escorregadela pela politicalha. Ocupemo-nos de livros. Há tempos participei de uma palestra com Pierre Rivas. A conversa girava em torno da decadência da cultura francesa, o que foi prontamente negado por Rivas. Não bastasse isso, o professor disparou contra o provincianismo americano e questionou a ousadia de eles levarem tal discussão às páginas da Time. Conversa vai, conversa vem, Rivas reitera o que todo mundo já sabia: para a crítica francesa, escritor que vende é maldito, é algo suspeito. A prosa continua, certo farisaísmo vem à tona, e Rivas o credita aos yankees. Tupiniquim: ouvi, refleti, ponderei.
Tudo isso porque hoje não me escapou uma arraia-miúda trazida por um site páginas e páginas em scroll-down (acho que antes dizíamos rodapé ou rez-de-chaussée): “Clássico da literatura, ‘O Pequeno Príncipe”, inspira aniversário de 1 ano”. É certo que ao dizer aquilo Rivas jamais pensara em Exupéry. Daí o risco das generalizações, haja vista o diabo morar não só nos detalhes, mas também nas exceções.
Também houve um tempo em que a obra de Exupéry era o livro de cabeceira das misses. Sim, aquelas que, entrevistadas, não só diziam almejar a paz mundial, mas declaravam ser O Pequeno Príncipe seu livro preferido. Face a essa predileção, parte da crítica e do grande público relativizou a obra de Exupéry.
Lançado em 1943, O Pequeno Príncipe é ainda o segundo livro mais traduzido no mundo - só perde para a Bíblia. Há pouco, em domínio público, tornou-se a iguaria das editoras. Traduções de traduções apareceram às tantas. Mas isso é coisa do mercado livreiro. O mercado da literatura quase sempre independe - ou ignora - a intelligentsia. Magoada, talvez, esta sempre o rotulou O Pequeno como autoajuda. Mas o fato é que a obra é plena de robustas metáforas. Tome-se o diálogo entre o menino e a serpente e eis que intertextualmente mergulhamos no Novo Testamento.
A crítica estrangeira, contudo, tratou-o respeitosamente. Em resenha para o New York Harold Tribune, em 1943, P. L. Travers, autora de Mary Poppins, talvez tenha sido uma das primeiras a reconhecer o valor literário da obra. A crítica também se ateve à qualidade e à delicadeza das aquarelas, outro talento do autor. Muitos chegaram à conclusão de que não se tratava de uma obra destinada à crianças, mas a adultos, tal a sua complexidade.
Na Europa, a obra foi vista como alegoria da guerra que a consumia. Remando contra a maré, Heidegger, ao referir-se ao livro, tratou-o como o seu “livro favorito”. Ainda, outros críticos viram nele traços existencialistas ao justapô-lo ao Estrangeiro, de Camus.
O universo de Exupéry, quando transposto a uma festa de criança, deve funcionar muito bem, senão não o fariam, mas isso só prova duas coisas: Rivas estava errado ao menosprezar os best-sellers e o dito de Harold Bloom se faz ainda mais atual: “tornou-se cada vez mais difícil ler em profundidade à medida que este século envelhece”.


Publicado originalmente em http://z1portal.com.br/category/miscellanea/


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