Revista Philomatica

quinta-feira, 23 de março de 2017

O agente laranja, Balzac e o jornalismo

A imprensa ainda continua a ser o grande veículo do espírito moderno. O dito tornou-se um dos aforismos machadianos; citá-lo não tem outro objetivo que o de evitar interpretação errônea para o que trago nas entrelinhas.
Ainda que a semana tenha sido turbulenta, o agente laranja presente no título não surge como sinonímia do arremedo de maná lançado pelos americanos no reino de Saigon, mas sim da Sarah Palin de calças. O resultado talvez seja o mesmo; caberá ao futuro a cura das chagas. Por sua vez, Balzac e jornalismo, para quem já leu ao menos Ilusões perdidas, têm parentesco. Quanto a uma crônica que se dispõe leve, confesso, venho com assuntos árduos, mas vá lá, não resisto a uns pitacos.
Eis os fatos: até a meia-noite da última terça-feira, as previsões apontavam vitória da candidata liberal, porém, somados os votos, quem levou a melhor foi o representante dos conservadores, ainda que muitos dentre eles o tenham abjurado. Terminado o grande show, vieram os porquês.
Criaram-se variadas teorias: da insatisfação com a globalização, ao desaparecimento da classe média, o voto dos envergonhados... A imprensa, porém, tal como o candidato eleito, recusou-se a desviar os olhos do próprio umbigo.
Nesse ponto, volto a Machado que um dia também disse ser os jornalistas os maiores mágicos, uma vez que iludem o público de maneira singular. Cadquê? Ora, há muito, não só nos Estados Unidos, mas sobretudo em terras tupiniquins, trava-se verdadeira luta entre a informação e a opinião.
Não há como negar que a história da imprensa está ligada à própria história do desenvolvimento da sociedade capitalista. Não por outra razão, Balzac, usa o termo máquina ao referir-se à imprensa (“Vous avez vu les rouages de la machine” - Vocês viram a engrenagem desta máquina)1. Ao desmontar as peças que a compõem, nota-se, de pronto, uma instância onde reina clara divisão de trabalho; a hierarquia sobrepondo-se ao pessoal, estrutura que reproduz o habitat urbano da época.
A imprensa é o reino da impostura e seu poder é deletério. Polêmico e contundente, não? Pois é dessa forma que, em Monographie de la presse parisienne (1843), o romancista se refere à imprensa. Escarafunchando ainda mais os pinos e parafusos desse mecanismo, não há como não lhe dar razão. Tome a Monographie, deslize os olhos linhas abaixo e veja Balzac traçar um julgamento severo sobre uma máquina que, longe de pretender informar e educar – como ela o aspira -, atua para ganhar dinheiro e poder.
Isso explica muito das previsões eleitorais (brasileiras e americanas) do último mês. Até mesmo porque, afirma Balzac, “para o jornalista, tudo o que é provável, é verdadeiro”. Desse modo, videntes-visionários vislumbram em que mãos estará o poder, mas não desconfiam é que talvez não passem de meros reprodutores de desejos e interesses, em consonância à hierarquia.
Nessa lógica, vale contrapor a figura mítica do jornalista (com uma significação antiga, é claro) ao moderno homem de imprensa. Antes, orbitando uma imprensa ainda artesanal, de tecnologia e distribuição rudimentares, vivia da opinião - sua e de seus leitores -, a quem buscava servir.
Hoje, com o arrefecimento do intermediário especializado (escritório ou agências de notícias, de proporções gigantescas) que produz, organiza e distribui a notícia, o jornalista viu-se relativizado, papagueando interesses de grandes grupos corporativos (na maioria, pertencentes a famílias proprietárias de jornal, revista, rádio, TV, portais, sites, etc.).
Nem só de críticas à imprensa vivia Balzac, mas de certa ambivalência e simpatia, como se pode depreender nas lições de Blondet, em Ilusões perdidas: « [...] cada ideia tem seu verso e reverso [...] Tudo é bilateral no domínio do pensamento. »
Hoje, enquanto jornalistas de bancadas mostram-se boquiabertos e esboçam teorias conspiratórias diante da vitória de Trump, talvez devessem se perguntar o porquê de a imprensa não mais se ater a noticiar fatos e interpretá-los, mas sim dedicar-se à venda de ideias e produtos - como afirma um amigo. Balzac, lá nos idos do XIX já mostrava o dinheiro por trás da ideologia lisonjeira de fachada. George Soros está aí e não me deixa mentir.
Nessa lógica, levando-se em conta a análise que o grande romancista deita sobre a imprensa, confirma-se o universo mental do jornal como o reino da verdade relativa, do falso jornalístico e da mentira industrial e política. Mas trabalhemos com as exceções, até mesmo porque elas só são odiosas aos outros.
Por fim, as previsões eleitorais não confirmadas pouco importam, afinal, muita gente sã creu em Mãe Dinah e deu no que deu.


Publicado originalmente em http://z1portal.com.br/category/miscellanea/



1. La Grande Ville. Nouveau Tableau de Paris, comique, critique et philosophique, par H. de Balzac, Alex. Dumas, Frédéric Soulié, Eugène Briffault, Eugène de Mirecourt, Édouard Ourliac, Marc Fournier, L. Couillhac, Albert Cler, Charles Ballard, le comte Charles de Villedot. Paris : au Bureau des publications nouvelles, 1843.


Nenhum comentário:

Postar um comentário