Revista Philomatica

sexta-feira, 14 de abril de 2017

2016 d.C.

Divido-me entre duas ideias: uma sacra e a outra profana, a religião e a política. Há pouco li sobre o embaraço que a data do nascimento de Jesus Cristo impõe a religiosos e estudiosos. Na ânsia pela procura de dados, inscrições e afrescos, a razão contradiz a fé, números contradizem números e eu fico com Machado, que disse ser a lenda melhor que a história autêntica.
O dificuldade toda refere-se ao nosso calendário, pois Jesus, afirmam alguns estudiosos, nasceu “antes de Cristo”, em razão de um erro de cálculo no início da Idade Média. Assim, a era Cristã começa ao menos quatro anos depois do que deveria. Explico-me: segundo os Evangelhos, Jesus nasceu no final do reinado de Herodes, o Grande, cuja morte deu-se no ano 4 a.C. Depois disso, dados e informações criam um imbróglio que envolve um recenseamento, Quirino, governador da Síria, Galileia e Herodes Antipas... Mas isso é prosa para os amantes da história bíblica. Fiquemos com a lenda que nos sustenta a fé!
Alguns, no entanto, são indiferentes a isso tudo; aí está o Sr. Mercado, cuja preocupação não é outra que o tilintar da caixa registradora. Um rasgo de ideia me faz pensar naquele que expulsou os mercadores do templo. Estou certo de que jamais imaginou caminhar sob neves artificiais e em meio ao brilho de milhares de luzes piscantes, ou mesmo cruzar o com o bom velhinho e suas renas voadoras...
É certo que o grande Mestre se surpreenderia com toda a simbologia atribuída ao seu nascimento, mas o homem é homem, e, em meio às misérias da vida, busca razões para enlevar o espírito e alimentar a esperança de um futuro melhor, ainda que o rotor da máquina religiosa seja o vil metal. E, nessa toada, chego ao profano.
O site francês de informações Boulevard Voltaire publicou a higienização dos símbolos cristãos empreendida pela municipalidade socialista de Avignon, antiga cidade dos Papas.
Hoje, sob a égide do verniz civilizatório, o Estado, opressor, não destrói mais igrejas e frontispícios de edifícios religiosos como à época da Revolução. Dessa vez o alvo são os presépios e mercados de Natal - lugares comumente visitados pela população alheia a credos e ideologias -, que foram completamente varridos da cidade tradicionalmente cristã.
Resultado das ideias do século da audácia crítica? Não me parece. Afinal, Voltaire, um de seus maiores bastiões, tido por muitos como ateu, mas de fato, deísta, em seu Dictionnaire philosophique, questiona: “O que é a fé? É acreditarmos naquilo que parece evidente? Não: é evidente que há um Ser necessário, eterno, supremo, inteligente; mas isso não é artigo de fé, mas, sim, de razão. Não tenho mérito nenhum em pensar que este Ser, eterno, infinito, que conheço como a virtude, a própria bondade, queira que eu seja bom e virtuoso. A fé consiste em acreditarmos, não naquilo que nos parece verdadeiro, mas naquilo que se apresenta como errado e falso ao nosso entendimento.”
Ora pois, considerando a assertiva voltairiana, quer então a municipalidade avignonnaise impor uma querela da razão contra a razão. Desse modo, nota-se que por mais racionais e ‘civilizadas’ que se mostram as ideologias, sempre há uma nesga contrária à pluralidade de ideias. Se a fé exige o errado e o falso, por que considera-se o Estado o responsável por extrair a fruta de dentro da casca?
Isso tudo, creio, não passam de tentativas de apagar um passado que, consideram, opõe-se ao presente. Nas vezes em que contemplo ruínas ou leio a respeito de civilizações perdidas, pergunto-me sobre o porquê de tudo aquilo haver desaparecido, esquecendo-me dos exemplos que pululam à minha volta: o estado islâmico que destrói a história milenar do oriente, a Rússia que despeja bombas, os terroristas que se tornam bombas, o ódio que grassa entre nós em razão da raça, da crença, do sexo...
Devo concluir que as ideias destroem? Não, recuso-me a acreditar nisso, as ideias estão aí para iluminar, inspirar, conduzir - assim como a fé -, afinal, há muito “Rome n’est plus en Rome. Elle est partout où je suis.” Por isso, enquanto estamos à procura da razão, imploro aos que têm fé – orem por Alepo! Oremos por Alepo!

Publicado originalmente em http://z1portal.com.br/category/miscellanea/

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