Revista Philomatica

segunda-feira, 10 de abril de 2017

Após a visita da Velha Senhora: a desesperança

Há pouco, uma conhecida senhora, referindo-se à corrupção, tratou-a por uma velha senhora. Familiaridade ou não, não cabe a mim julgá-la. O fato é que a conhecida senhora, parece-me, tinha razão, haja vista a semana decorrida, rica para os articulistas políticos, porém, moralmente dissoluta para a quase totalidade do país. A lama que emana da Ilha da Fantasia relativizou a que verteu nos arredores de Mariana. Diferentes? Muito provável: nas Alterosas, ceifou vidas e trouxe a miséria; na capital, acostumada, a politicalha nela chafurda em braçadas, alheia à desgraça quotidianamente imposta ao povo.
Desde que soube do dito da conhecida senhora, não pude dissociá-lo da obra A Visita da Velha Senhora, de profundo pessimismo. Dürrenmatt não é desses autores cujas personagens são psicologicamente densas, tal Hamlet, Lady Macbeth, Emma Bovary, Albertine, Julien Sorel, Brás Cubas, etc., mas de seres que se movem quase na superfície.
E é sob a epiderme que ele revela as hipocrisias dissimuladas, porém, meio à vista de todos. Para enxergá-las basta um olhar de míope. Dürrenmatt diz o que diz no espaço reservado ao leitor, as entrelinhas. O encoberto está ali para ser decodificado - e de maneira simples. Não à toa, suas personagens são mais importantes por conta de suas ações que por suas personalidades. Assim, o leitor tem a impressão de que pode encontrá-las a qualquer instante, tal a familiaridade com que se mostram.
Na peça teatral A Visita da Velha Senhora temos como cenário uma cidade arruinada pela corrupção. Nela, a população tem pouco o que fazer para escapar da miséria, tal a crise econômica provocada em razão do fechamento das indústrias e dos desmandos administrativos. O anúncio da visita de uma velha e rica senhora, injustamente expulsa quando jovem, movimenta o vulgacho e a alta-roda.
À chegada da velha dama, o alvoroço é total. Em massa, o povo ruma para a decadente estação de trens. Discursos, banda de música, tudo fora previamente preparado para recebê-la e, agora, próximo à sua chegada, pululam os encontros afetuosos, os sorrisos e as alegrias daqueles que a expulsaram. Afinal, pensavam, ela traria dinheiro o bastante para salvar a cidade da ruína.
Como disse há pouco, atento leitor, a familiaridade das personagens de Dürrenmatt é tamanha que temos a impressão de que já as conhecemos. Como prova, mire a malta que habita a Ilha da Fantasia, justapondo-a àqueles que expulsaram a milionária Zachanassian; interprete você mesmo no papel do povo, porque esse é o quinhão que lhe foi reservado (aqui, um breve arremedo de Leibniz, seja lá o que for, a essa altura); pense na fortuna da velha senhora como pensa a canalha política sempre afeita a idealizar projetos e reformas constitucionais e pronto: você terá um roteiro completo, todo seu, porém, real e sofrível, afinal uma PEC é uma PEC, e com aposentadoria não se brinca - tortura-se!
A ficção, nesses casos, é mais atraente: o que toda a cidade ignorava é que a velha senhora voltava com a intenção de se vingar daqueles que a haviam expulsado. No jantar oferecido após sua chegada, disse estar disposta a doar a quantia de 1 bilhão, metade para a cidade e metade entre seus habitantes, contanto que matassem o responsável pela injustiça que sofrera no passado.
Indignação e espanto pouco duraram. O que antes foi visto com pasmo e repulsa, aos poucos tornou-se compreensível e bastante aceitável. A expectativa de reativação dos negócios com a expansão do consumo e a circulação do dinheiro fez com que vislumbrassem uma vida melhor. No final, a velha senhora consuma sua vingança e deixa a cidade. Justapondo ficção e realidade, ouso dizer que dependemos do desaparecimento daquele torpe senhor que deu as costas a um certo oficial de justiça. Mas a realidade é dura e penosa; exterminá-lo não é o bastante, uma vez que seus comparsas se assemelham às saúvas de Lima Barreto. Exterminá-los todos? Ah, leitor, isso é utopia e catarse, e, ao fazê-lo nos tornaríamos iguais a eles. Eis aí um naco da densidade psicológica deixada de lado por Dürrenmatt.
As sinapses continuam e ao refletir a vingança de Zachanassian, penso que a autora do artigo acadêmico que acabo de revisar a veria com bons olhos, circunscrevendo seu conflito a uma questão de gênero em que teríamos de um lado a mulher antes fragilizada, e de outro, o homem vil e opressor (não que ela não tenha razão e eu não torça por ela). Mas é que quase sempre, nessa toada, a Escola do Ressentimento faz com que Beatriz, Laura, Dulcineia, Proserpina e até mesmo Capitu percam toda a dimensão estética. Mas isso é história para uma outra prosa. Por enquanto, ausento-me desse problema de memória cruzada que me leva a Dante.
Na arrumação que faz do Inferno, Dante nos coloca no nível oito abaixo do oitavo círculo, ali não muito distante de Satanás. Talvez por isso não devamos nos surpreender com as trapaças nossas de todos os dias. O mais sábio talvez seja empreendermos uma viagem, tornarmos peregrinos na vida, exilarmo-nos de Florença, partirmos em direção a Ítaca ou Pasárgada.
Talvez assim, como Dante, possamos um dia voltar de nossa viagem ao Inferno. Viagem, às vezes, sequer planejada porque, afinal, o poema não é verdade nem ficção, mas conhecimento. Por fim, antes de decidirmos se o lodo que vem da capital é verdade ou ficção, o mais importante talvez seja descobrimos que o conhecimento é de fato nosso, ainda que a um alto preço, o da desesperança. 


Publicado originalmente em http://z1portal.com.br/category/miscellanea/

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