Revista Philomatica

quarta-feira, 12 de abril de 2017

Bandeiras particulares e bandeiras públicas

“Não sabemos de época em que não fossemos como agora.” Eis o dito do Satanás shakespeariano de Milton. Depois de correr os olhos por algumas notícias da semana, achei-o conveniente para animar a prosa e preencher o vazio da página. O que levou a Milton não foi a canalha de Brasília. Esta, é uma questão de estômago – dizeres do meu sacrossanto Valéry -, até mesmo porque, em se tratando de surrupiar o erário, é sempre original.
            Lembrei-me do bardo depois de ler sobre um estudo feito pela Universidade de Stanford; nele, estudiosos definem como lamentável a capacidade de os jovens - habituados a toda a parafernália tecnológica de comunicação - distinguir as notícias, qual seja, diferenciar as produzidas por fontes confiáveis das informações falsas disseminadas na internet.
            A relevância do estudo ganha importância na medida em que se discute o impacto que as notícias falsas têm sobre a opinião pública. Nesse ponto, discordo de Satanás. Até mesmo quem pouco leu sobre o período pré-Revolução na França, algo há de ter ouvido a respeito dos libelos, panfletos e da imprensa clandestina - os gazetiers frondeurs -, que fizeram de Maria Antonieta, por exemplo, a figura pública mais vilipendiada da história - levando-se em conta as considerações de Évelyne Lever. Portanto, já fomos sim como agora.
            Contudo, ainda que discorde de Satanás, dobro-me a Valéry. Raros são os sites de notícia e jornais em que grande parte do conteúdo não seja, de fato, estomáquico. Não falo de originalidade, é claro, mas de sensaborias que embrulham o estômago e são reproduzidas nas redes sociais travestidas de certo ineditismo, afinal, toda surpresa é efeito da novidade sobre a ignorância, com os devidos créditos ao reverenciado Johnson.
            À espera do carro das ideias penso na monomania que consome o cérebro do leitor contumaz fazendo com que qualquer arraia-miúda seja pretexto para relembrar leituras, personagens e fragmentos de histórias inesquecíveis. Desta feita, a patuleia das notícias sequer trazia um texto, mas a foto de um estudante acendendo o cigarro em um ônibus em chamas. Os protestos foram exponencialmente ignorados, mas a foto viralizou.
            De pronto, lembrei-me de um capítulo de Quincas Borba, a meu ver, o mais cinematográfico dos livros machadianos. Eis o contozinho:

A história do casamento de Maria Benedita é curta; e, posto Sofia a ache vulgar, vale a pena dizê-la. Fique desde já admitido que, se não fosse a epidemia das Alagoas, talvez não chegasse a haver casamento; donde se conclui que as catástrofes são úteis, e até necessárias. Sobejam exemplos; mas basta um contozinho que ouvi em criança, e que aqui lhes dou em duas linhas. Era uma vez uma choupana que ardia nas estrada; a dona – um triste molambo de mulher, -chorava o seu desastre, a poucos passos, sentada no chão. Senão quando, indo a passar um homem ébrio, viu o incêndio, viu a mulher, perguntou-lhe se a casa era dela.
– É minha, sim, meu senhor; é tudo o que eu possuía neste mundo.
– Dá-me então licença que acenda ali o meu charuto?
O padre que me contou isto certamente emendou o texto original; não é preciso estar embriagado, para acender um charuto nas misérias alheias. Bom padre Chagas! – Chamava-se Chagas. – Padre mais que bom, que assim me incutiste por muitos anos essa ideia consoladora, de que ninguém, em seu juízo, faz render o mal dos outros; não contando, esta outra: – o respeito que aquele bêbado tinha ao princípio da propriedade, – a ponto de não acender o charuto sem pedir licença à dona das ruínas. Tudo ideias consoladoras. Bom padre Chagas!

Ficção e realidade parecem às voltas com o mesmo assunto, mas entre elas não entrevejo vizinhança maior que vá além do cigarro ou charuto; para o fumante, algo equivalente ao óbolo para se chegar até Caronte.
Machado de Assis, contudo, ao reproduzir o contozinho nas páginas de Quincas Borba, volta a tratar das ‘bandeiras particulares’ (em muitos de seus escritos justapõe as bandeiras públicas às particulares). Sob fina ironia, vemos o homem acender seu cigarro na calamidade particular, ainda que demonstre certo respeito ao princípio de propriedade.
O estudante, no caso, do particular adentra as bandeiras públicas. Tratava-se de mais um protesto contra o governo, porém, neles tem-se aplicado o mesmo estratagema da malta política: é público? é de ninguém, portanto é de todos. Não existe dinheiro do contribuinte, mas dinheiro público e, sendo público, apropriam-se dele sem o menor constrangimento como sê-lhes pertencesse (falo dos eleitos).
O estudante, afirma o fotógrafo da Reuters, não fazia parte do grupo que relativizou o conceito de propriedade; o que fez foi aproximar-se calmamente, retirar o cigarro do bolso e acendê-lo. Fotografado no instante preciso, alçou-se celebridade. Entrevistado, ato e discurso divergem: alheio às reivindicações, firmou a desobrigação de portar um isqueiro; célebre, disse que o foco deveria ser nos protestos - no que concordo.
Concordo sobretudo porque pouco se falou da utilidade das catástrofes. A violência presente nas recentes manifestações não só tem desviado da caçapa as inocentes bolinhas de gude, mas também feito alvo cabeças de jornalistas e transeuntes que se arriscam à frente do furacão. Ato justo, democrático e tolerante, afinal, é preciso desobstruir o caminho; e, o sangue alheio, ainda que pouco, matiza cenas e é sempre necessário.
Dentro da Câmara, em outra foto, participantes de um coquetel, próximos a uma das janelas, indiferentes à explosão de bombas, às bolinhas de gude e à correria dos manifestantes, deliciavam-se em meio a quitutes, canapés e champagne, prova de que ambos, povo e malta, continuam a confundir bandeiras particulares e públicas.
 
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Crédito foto: Adriano Machado/Reuters

Publicado originalmente em http://z1portal.com.br/category/miscellanea/

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