Revista Philomatica

sexta-feira, 21 de abril de 2017

Lapsus memoriae

Um cidadão cuja memória não se estende por mais de quinze dias sofre de amnésia ou está em avançado estado de demência; o Alzheimer não só corrompeu sua memória de curto prazo, como também deteriorou - e muito - a de longo prazo.
Intencional, a memória seletiva é algo um pouco pior, pois envolve certa hipocrisia, ainda que a intenção seja a autopreservação. Nessa lógica, preservar-se aventa não só alguma superioridade, mas também alçar as próprias opiniões a um patamar em que os pares jamais alcançariam, conferindo a si próprio um direito à crítica nunca permitido aos confrades. Não foi à toa que o evangelista aconselhou tirar primeiro a trave dos próprios olhos para, só então, tirar o argueiro dos olhos de vosso irmão.
Digo o que digo referindo-me às bandeiras particulares; porém, tratando-se das bandeiras públicas, somos um povo difícil de entender. Vamos lá! Pergunte a um aficionado qualquer em futebol quais eram os jogadores da Copa da Suécia de 1958. É certo que os nomes de Pelé, Garrincha, Didi, Gilmar, Bellini e tantos outros explodem de lábios entusiastas em segundos.
Agora, pergunte você a este mesmo cidadão em qual larápio votou nas últimas eleições, ou melhor, pergunte a ele se tem algum conhecimento das tramoias em que esse larápio esteve envolvido, e que não constam em seu Lattes. Amnésia total!
Em 1979, o filho do ministro Golbery do Couto e Silva envolveu-se em negócios suspeitos de terra em Goiás. O então repórter Alexandre Garcia pergunta ao ministro se ele responderia às acusações que estavam estampadas nos jornais do dia, ao que o ministro respondeu: “Aqui no Brasil levam quinze dias para esquecer. Eu não vou contribuir para levarem 16.”
A resposta do ministro sintetiza muito da esculhambação moral que vivemos nos dias de hoje, em que a canaille reina absoluta. Nunca antes na história desse país (plágio!) roubou-se tanto e tão descaradamente! E para que isso tenha chegado ao ponto em que chegou, contaram sempre com a memória curta do brasileiro.
Talvez, desde o início, tenhamos alguma molécula de nosso DNA deteriorada. Em nossa certidão de nascimento, lá pelo final, Vaz Caminha tasca uma boa dose de nepotismo: “E pois que, Senhor, é certo que tanto neste cargo que levo como em outra qualquer coisa que de Vosso serviço for, Vossa Alteza há de ser de mim muito bem servida, a Ela peço que, por me fazer singular mercê, mande vir da ilha de São Tomé a Jorge de Osório, meu genro – o que d’Ela receberei em muita mercê.” Como se vê, um trocazinha de favor, hoje algo tão usual que sequer prestamos muita atenção.
Algum tempo passa, a família real já instalada no Rio de Janeiro e a necessidade de que alguém administrasse a Ucharia e as Cozinhas Reais. Joaquim José de Azevedo era o responsável pela área de compras e os estoques da casa real e Bento Maria Targini, do erário real. As maracutaias foram tantas e a corrupção tão deslavada que, quando D. João VI volta para Portugal, ambos foram proibidos de embarcar. Mas como o Brasil sempre foi o Brasil, aqui ambos foram promovidos de barão a visconde. Azevedo tornou-se o visconde do Rio Seco e Targini, o visconde de São Lourenço.
Vai a monarquia, vem república, e nada muda! Na ditadura Vargas é célebre a célebre fortuna de Gregório Fortunato, o chefe da guarda pessoal do ditador. Iniciados os trabalhos da nova capital, sob a égide de Juscelino Kubitschek, a pressa foi a grande responsável pela onda de corrupção, dando origem a não menos célebre vassourinha de Jânio Quadros.
À medida que se trocam os políticos, os escândalos se multiplicam: Coroa Brastel, Sudene, Escândalos dos precatórios, Anões do orçamento ... e a lista entre os anos 60 e agora ultrapassa duas centenas (procure por “lista de escândalos políticos no Brasil” no Google!).
Tão vergonhoso quanto os escândalos é a posição adotada pela canaille. Se nos Estados Unidos Donald Trump cunhou o neologismo ‘fatos alternativos’, aqui na república tupiniquim saiu-se com ‘acusações virtuais’. E mais: culpa-se hoje o judiciário, colocando-o como ameaça à democracia. Para a canaille roubar pode, investigar não!
Como os próprios cientistas afirmam que 90% do DNA humano não serve para nada, nós brasileiros resolvemos dar um jeitinho, usando o excedente inútil para fins ilícitos e particulares.
E eu que pensava em falar de livros...


Publicado originalmente em http://z1portal.com.br/category/miscellanea/


Nenhum comentário:

Postar um comentário