Revista Philomatica

quarta-feira, 5 de abril de 2017

Romance: o amigo genial

A semana foi de obituários - assim como a anterior. Tânato, cioso de sua reputação, terminou o que havia começado. Não que eu acredite na finitude de seu trabalho, mas, quando se vai um poeta, pensamos que nada mais resta além de nós e a página em branco à espera de versos, estrofes, rimas, sonetos...
Ágil, a foice ceifou almas. A mídia ignorou o poeta, fez heróis outros e embalou-nos a todos com o espetáculo da morte. Jornalistas e apresentadores de televisão narraram o deslocamento de caixões, o choro do populacho e, voz embargada, apagaram o drama dos vivos levando-nos à cova. Esquecemos Brasília e fizemos de Chapecó a capital da “sofrência”, uma vez que nos obrigaram a uma carência imerecida, ao menos para a parte do país não afeita aos gramados.
Mas falemos de livros. Há pouco foram anunciados os vencedores do Prêmio Jabuti. Hoje, talvez, o mais importante no cenário brasileiro. Dos três primeiros vencedores, não li nenhum. Vi que Julián Fuks levou o primeiro lugar com A Resistência. Penso que deve ser um bom autor, pois anteriormente já emplacara dois outros títulos como finalistas do Prêmio.
Desde 2012, o Jabuti me traz à memória o jurado “C”. Sim, aquele que, corajoso, peitou a intelligentsia e disse que o sistema literário brasileiro está doente. Na época, depois do chororô de uma autora, Rodrigo Gurgel concedeu uma entrevista bastante elucidativa à Folha de São Paulo, em que comentava um pouco da estrutura literário-editorial vigente no país.  
Curioseei os finalistas do Jabuti com base nos comentários de Gurgel, o jurado “C”, sobretudo quando este ressalta que hoje tem-se escritos livros bastante retóricos, cuja principal preocupação é a forma. “C” divide, portanto, os autores em duas tribos: os estruturalistas e os desconstrucionistas. Assim, afirma, hoje não se escreve para leitores, mas para agradar amigos, professores de teoria literária e críticos.
Por essas e outras, gosto de histórias. Gosto de ler a obra antes da crítica. Gosto de ouvir, contar e ler histórias. Ao rabiscar essas garatujas, corri os olhos pela estante e dei de cara com A Amiga genial, de Elena Ferrante. A identidade da autora em si já é uma boa história para se contar.
Elena Ferrante é o pseudônimo de uma escritora italiana. Ferrante concede poucas entrevistas e nunca se mostrou em público. O que diz é através de sua editora e por e-mails. Neles, explica que optou pelo anonimato para que o público não seja influenciado por sua imagem e, principalmente, para que possa escrever com liberdade.
Especula-se que tenha nascido em Nápoles, por volta de 1943, dadas as pistas colhidas em suas obras. O que se sabe - também a partir de suas obras -, é que conhece bem os clássicos gregos e latinos. Isso é tudo!
Para o leitor, contudo, esse mistério pouco importa! O que vale são as deliciosas trezentas e poucas páginas de A Amiga genial, primeiro livro da chamada série napolitana (no total: 4 volumes). A história de Ferrante dialoga com a realidade, é harmônica, vigorosa, e traz certo lirismo que encanta o leitor. A mesmice e o discurso politicamente correto, muitas vezes nada convincente, passa ao largo da obra de Ferrante.
O que você vai ler é a história de duas meninas - Lila Cerullo e Elena Greco - que nascem e crescem no subúrbio de Nápoles, ainda sob os resquícios da segunda Grande Guerra. No bairro em que moram o trabalho parece definir os moradores, de modo a constituir-se num microcosmo da sociedade. A modernidade pulsante do pós-guerra define essa Nápoles em movimento, onde o velho e o novo, o local e o universal, o grego e o latino se acotovelam quotidianamente.
Nesse cenário, a vida das duas amigas ganha em densidade e, tal como nos colocamos defronte a um espelho, uma olha para a outra e se depara com a oscilação inapreensível e incômoda de fragilidade e força que se deslocam entre esses dois seres amigos. Postas à prova à medida que os anos passam, inteligência, beleza e sexualidade são submetidas a um duelo constante, misto de admiração, afeto, repulsa, inveja, intimidação e outras emoções sumamente humanas.
A escrita robusta, crua e visceral de Elena Ferrante é uma daquelas razões que nos levam a ler romances. Afinal, para se ler um romance é preciso se dispor a um ritual, dedicar-lhe horas de leitura, pois o que se acha ali não se encontra em filmes ou mesmo nas quinquilharias eletrônicas.
Por fim - e como já disse antes -, ler é sonhar pelas mãos de outrem. Por isso sugiro que você, leitor, deixe-se levar pelas mãos de Ferrante, que nos propõe uma leitura plural sobre a vida, desobrigada das ideologias sub-reptícias nas entrelinhas. A Amiga genial é sim uma história apaixonante que faz jus ao gênero romance, essa metamorfose ambulante em constante mutação, cujos saberes insistem em trazer o menos científico dos discursos, por mais que a ele queiram atribuir pensadas e impensadas ambições científicas. A Amiga genial é daquelas obras que enlevam o espírito, ainda que efemeramente, visto que a realidade, providencial, nos desperta - sempre.

Publicado originalmente em http://z1portal.com.br/category/miscellanea/



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