Revista Philomatica

sexta-feira, 26 de maio de 2017

A farsa da liberdade de expressão

Monica Iozzi, novata na arte da interpretação, seja por seus trabalhos como atriz, seja pela destreza exibida nas vezes em que, arremedo de jornalista, meteu-se a comentarista e repórter de programas B, há muito frequenta o noticiário das celebridades.
Monica sentiu-se tão à vontade com as perguntas diretas que lançava às subcelebridades que ao referir-se ao ignaro e peripatético ministro Gilmar Mendes em sua conta do Instagram, tratou-o como devia ser tratado: um cidadão como qualquer outro que, não se sabe bem o porquê, deu asas à liberdade ao médico monstro. Nós cidadãos não entendemos, Monica não entendeu e deu no que deu. Monica foi punida por fazer um comentário, aliás, nada que qualquer uma das cidadãs abusadas pelo tal médico não tivesse engasgado na garganta.
Gilmar Mendes também não entendeu o comentário da Monica, e, achando-se acima da lei, por um momento esqueceu-se de seu lado histriônico e exibicionista, valeu-se do poder do cargo, disse ter se sentido moralmente ofendido (o que não questiono) e colocou a maquineta da república em andamento no intuito de penalizar Monica, aumentando ainda mais seus caraminguás, juntando estes àqueles de Furnas. Monica pagou caro por seu engano, qual seja, acreditar que vivemos em uma democracia em que há a tão sonora liberdade de expressão. Não há, Monica!
Há pouco li sobre uma esportista que retrucou comentários de um apresentador. Segundo o bom moço, quem não pensa exatamente como ele, bom sujeito não é, ou é ruim da cabeça ou doente do pé, valendo-me aqui de um verso da célebre canção. Ocorre que o samba do rapaz deixa a gente mole e quando se canta nem todo mundo bole; é samba de uma nota só, que exclui toda e qualquer pluralidade de ideias. Não é música, não se combinam sons e ritmos, não há sequer organização de tempo, não há polifonia. Tudo ali é do jeito dele, uma ladainha cuja invocação tem sempre o mesmo santo e faz uso da mesma reza.
Esses moços, pobres moços... deixam o céu por ser escuro e vão ao inferno à procura luz! E Ave Lupicínio! Este sim, santo, poeta e músico!
O fato é que a ideologia emburrece até mesmo as mentes que se acreditam pensantes. Hoje, em tempos bicudos em que a polaridade atinge seu ápice, dividindo o país em duas bandas, as ideias andam bem embaralhadas. O povo se deixa levar e as instituições aproveitam de certo vácuo para impor suas estripulias.
Se nas redes sociais uns execram outros, em que pautar o caráter e a moralidade (não a cristã, falo daquela característica de um observador, um analista, enfim, um moralista) já parece um lugar comum reflexivo, quando instituições como a Procuradoria Geral da República infringe as leis, isto é realmente algo com que o cidadão deve se preocupar.
Leitor, veja você que nesta semana a Procuradoria deixou vazar uma conversa do jornalista Reinaldo Azevedo com uma de suas fontes, no caso, a irmã do senador presidenciável afastado por corrupção. Ocorre que senador e jornalista são declaradamente de direita (considere, leitor, que posicionamentos políticos como esquerda e direita são relativos no Brasil, país em que a canaille se agrupa para surrupiar o erário).
Dito isto, não é preciso dizer que o lado oponente vibrou com a divulgação das gravações da dita conversa, ainda que a mesma Procuradoria afirmasse que nada ali houvesse que constrangesse jornalista e fonte. O fato é que ao fazê-lo, o oponente esqueceu-se de que a sonora liberdade de expressão foi ferida na alma.
Afora os comentários comumente irascíveis e repudiáveis do jornalista, que defendia a Lava Jato enquanto seus oponentes políticos eram investigados, e, agora que suas fontes passam pelo mesmo processo, coloca-se radicalmente contra a investigação, o que está em jogo é a liberdade de expressão e, de arrasto, a pluralidade das ideias.
O que os oponentes de Azevedo não se deram conta é que o Estado começou a interceptar conversas particulares, no caso, para punir um jornalista por suas posições, seus pontos de vista. Vale lembrar que Azevedo já fez duras críticas aos procuradores, à Procuradoria.
O que não se pode é ignorar ataques à privacidade, sobretudo em questões que envolvem pluralidade de ideias, desacordo de visões de mundo. Festejar isto é muito pior; é esquecer-se de que ao fazê-lo, tornamos impossível ataques similares àqueles que expressam nossos pontos de vista.
Por fim, em tempos em que arremedos de comentaristas e filósofos abundam nas redes sociais, cada um mais certo de sua verdade que qualquer outro, vale recordar Luciano de Samosata, que coloca tais filósofos como parte de uma “raça preguiçosa, rixenta, vaidosa, irascível, gulosa, desmiolada e orgulhosa”, por isso, nada melhor a fazer que sacar um espelho qualquer, olhar-se por um bom tempo e refletir um pouco sobre o que nele vemos.


 Publicado originalmente em http://z1portal.com.br/category/miscellanea/

segunda-feira, 22 de maio de 2017

Imprensa folhetinesca

Inventado pelo jornal - e para o jornal - o que no início chamava-se feuilleton-roman, tornou-se folhetim e, em muitos casos, a razão de existência do próprio jornal. Essa nova forma de literatura, cujos capítulos seriados eram publicados no rodapé da primeira página dos jornais, brotou de uma simples necessidade jornalística: aumentar o público leitor. Ponson du Terrail, Eugène Sue e Alexandre Dumas, por exemplo, garantiram a fidelidade de milhares de assinantes e, de quebra, a venda de zilhões de edições.
Assim como esses pães de liquidificador, que dispensam aquele trabalho de mergulhar a bolinha de massa crua em um copo d’água, esperar que ela flutue para, só então, levá-los ao forno, o folhetim tem uma receita simples. Eis os ingredientes: tome uma mocinha infeliz e perseguida, coloque-a no caminho de um tirano brutal e sanguinário, faça-a tornar-se amiga de um pajem sensível e virtuoso e, de quebra, dê um jeito para que ela revele seus segredos mais íntimos a um confidente dissimulado e pérfido.
Personagens delineados, tome da pena, misture todos rapidamente e produza sete, oito, dez, vinte folhetins e sirva-os quente! Porém, como bem esclarece Reybaud, é preciso ter a máxima atenção ao corte, porque é isso que define o bom folhetinista. É preciso que um episódio esteja amarrado ao outro, que desperte o desejo, a curiosidade, a impaciência de ler a continuação.
Esta curiosidade, claro, é o que vai determinar o grau de erotização do texto. Explico-me: depende de o autor manipular com destreza a estética do desejo e do obstáculo, de modo que o leitor, seduzido pela narrativa, fique preso pela periodicidade e à espera daquilo que o autor escolheu não dizer.
Sendo essa uma das habilidades requeridas ao autor do folhetim, tratando-se da imprensa, cuja notícias são apresentadas por meio de títulos chamativos - quando não falsos -, também à procura do maior número de leitores e à moda de fait-divers, o que vemos não é algo diverso, muito pelo contrário: seletiva e nada imparcial, escolhe fatos e situações, mistura-os a outros contextos, apimenta-se o enredo, destaca-se uma frase qualquer tornando-a dúbia, junta-se ao texto uma imagem também ambígua, acrescenta-se um gráfico, distorce e/ou relativiza-se os dados da célebre estatística de modo a confundir o leitor e voilà - eis a receita da imprensa folhetinesca. Sob alcunhas de Folha, Gazeta, Diário, Estado, Correio disso ou daquilo, e nomes sonoros como colunistas, articulistas, especialistas, jornalistas, etc, diariamente o leitor dá de cara com muito Aqui Agora e Datena impressos.
Tratando-se da política, não raro me pergunto quais pudores levam essa imprensa do espetáculo a dividir o noticiário político do policial, cujas imbricações nem mesmo leigos e ingênuos ignoram. Hipócrita, a imprensa não é afeita à imparcialidades. Parti pris? Não creio. A resposta talvez esteja no vil metal, que jorra para dentro da burra via anúncios de instituições públicas e, de forma indireta, por meio de partidos-quadrilhas devidamente registrados no Superior Tribunal Eleitoral.
E tudo isso é algo genuinamente brasileiro? Não, infelizmente não, caro leitor. Países como a França já passaram pelo que passamos hoje, embora, aparentemente, tenham conseguido expurgar a parte espúria e infecta. Extinguir a imprensa? Não, melhor tê-la a nos contentarmos com um sistema sozinho e soberano a nos dizer o que e qual é a verdade.
O que incomoda é a imprensa e a política comerem do mesmo prato, às vezes, fazendo uso até do mesmo garfo. Isso faz com que as bactérias transferiram de uma boca a outra, confundindo o pobre do leitor, obrigando-o a uma vigilância cansativa.
Não bastasse isso, é comum os jornais apresentarem as notícias sob viés literário: a ação se desloca de protagonistas a coadjuvantes à medida que os interesses mudam; quando não, a canaille surge dissimulada e bandidos-políticos viram celebridades. Até mesmo as críticas ao cascateamento da infração em todos os níveis de poder, esfera em que o crime tornou-se um de seus constitutivos maiores, é relativizada visando poupar uns e outros.  
Abaixo, reproduzo um extrato de Bel Ami, de Guy de Maupassant. O folhetim, de 1885, conta a ascensão social de Georges Duroy, homem ambicioso, sedutor e sem escrúpulos, que chega ao topo da pirâmide social parisiense graças às suas amantes e seu conluio entre finanças, política e imprensa. Neste trecho, Duroy, ao passear pelo Bois de Boulogne, reconhece os homens e mulheres mais influentes de sua época, demonstra conhecer seus segredos, a história de suas vidas e de suas fortunas. Cabe a você leitor fazer as atualizações: os nomes, escolha-os a seu critério; o local e a situação, relembre algumas das últimas aparições em que políticos e empresários vestiram-se uniformes de estatais, inauguraram projetos e exibiram-se para uma imprensa que, na manhã seguinte, publicou o show com ares de grandes realizações.

Este jogo o divertia muito, como se estivesse constatando, sob as severas aparências, a eterna e profunda infâmia do homem... E pôs-se a procurar os cavaleiros sobre os quais corriam as histórias mais salgadas.
Avistou bastantes homens suspeitos de roubar no jogo, cujos únicos recursos vinham da jogatina.
Outros, muito célebres, que viviam unicamente dos rendimentos de suas esposas; outros, das rendas de suas amantes... Muitos haviam pago suas dívidas - coisa muito honrosa -, sem que no entanto ninguém tivesse adivinhado de onde lhes tinha vindo o dinheiro (mistério muito suspeito). Viu homens de finanças, cuja imensa fortuna tivera origem num roubo e que nem por isso deixavam de ser recebidos por todos, nas mais nobres casas; e viu homens tão respeitados que os pequenos burgueses tiravam o chapéu à sua passagem, mas cujas trapaças descaradas nas grandes empresas do Estado não constituíam mistério para nenhum que conhecesse os avessos do mundo.
E todos tinham um ar altivo, o lábio orgulhoso, o olhar insolente, os de suíças e o de bigode...  (1959: 135)


Quem dera, leitor, a imprensa folhetinesca e imparcial nos apresentasse a canaille política como Georges Duroy a via... O que fazer? Conselho de tio velho em porta de sacristia:  observe e desconfie, ao menos saberá de fato quem é o lobo na história da carochinha reproduzida todos os dias nas páginas do folhetim que entregam à sua porta. 

 Publicado originalmente em http://z1portal.com.br/category/miscellanea/

sexta-feira, 19 de maio de 2017

Pop-mortem: Antonio Candido

O existencialismo, corrente da qual fizeram parte Jean-Paul Sartre, Simone de Beauvoir e Albert Camus, defende que o homem constitui sua essência ao longo de sua existência, de maneira que não existe uma essência que o determine. A atitude existencial, algo como um estalo ou um escangalho das sinapses, ao mesmo tempo em que provoca no homem uma sensação de desorientação e certa confusão face à aparente falta de sentido e o absurdo do mundo, determina os sentimentos, as ações e a vivência do indivíduo. A grosso modo, é como se ao longo de nossa existência fossemos colecionando experiências, criando a nós mesmos, de modo que só com a morte atingimos nossa completude. Não à toa, a ênfase do existencialismo está na responsabilidade do homem sobre seu destino e no seu livre arbítrio.
Mas deixemos a nesga de erudição para lá: falemos de Antonio Candido! Ontem completou-se uma semana da morte do grande ensaísta e crítico literário brasileiro. Candido atingiu sua completude; escreveu as últimas páginas de seu livro. Cabe a nós, agora, a leitura de sua obra, a inveja de sua essência.
Até aí, nada demais! Contudo, o curioso mesmo foi tê-lo encontrado em meio aos entretenimentos e fofocas de celebridades em um site de notícias. Talvez um provável descuido; desses que fugiram às exceções e tornaram-se regra na malfadada indústria da informação.
Singular ou não, o fato é que me lembrei de Machado e por fim achei que talvez tudo não passasse de uma predestinação irônica, dessas que hora ou outra acometem seres supostamente alheios às futilidades efêmeras.
Explico-me: há tempos escrevi sobre a indignação póstuma de Machado. Ocorre-me agora que Brás Cubas, figura culta e refinada, porém voluntariosa, não só daria um piparotes em seu criador, mas também usaria de muita ironia ao vê-lo em meio a Madonna e a Mulher Melancia (ambas já recolhidas ao esquecimento) em uma banca de jornal.
Melancia, na capa de uma publicação especializada em estimular carpos, metacarpos e falantes de marmanjos, exibia o derrière e pernas em V invertido. Cubas não faria por menos! É certo que tripudiaria da página leve em que Machado traz de arrasto a Eneida e assola o verso virgiliano de modo a fazer com que virumque ignore a arma, degenerando-se em Vir, no intuito de sugestionar seu pai, que decide apresentá-lo a Virgília (Perdeu-se leitor? Eis pura provocação para que voltes às páginas de Memórias Póstumas!).
Na época, lembro-me que ao contemplar Machado exposto entre os exuberantes seios de Madona e o buzanfã da Mulher Melancia, a válvula de escape ao risível e ao ridículo veio-me de alguns versos de Baby grafados na capa de uma outra revista: lá vem o Brasil descendo a ladeira. À época Baby ainda não era do Brasil e este descia a ladeira na bola, no samba, na sola e ainda não lançava o salto em direção aos nossos sacrossantos traseiros!
Enfim, com Candido deu-se algo parecido: colocaram-no entre uma ‘bbb’ (com minúsculas mesmo!) que reclamara do reclinar de uma poltrona de avião e uma reportagem que versava sobre característica constitutiva do homem: o fingimento; no caso, homens que fingiam orgasmos. Vá lá, é certo que Candido tenha dado algumas remexidas post-mortem.
O fato é que Candido tornou-se pop; em vida, referência, admirado nos meios acadêmico e intelectual, morto, adentrou as revistas de celebridades e ao longo da semana disputou espaço com as fofocas. Contudo, nas redes sociais trouxe algum respiro para o universo facebookiano, lugar-comum de comentários repletos de clichês, preconceitos e uma boa dose de iracúndia.
Enquanto escrevo dou uma olhadela nas últimas notícias: figuras do meio político-policial de Brasília vêm a público afirmar que possíveis delações hão de marcar o fim da República, o que só prova que vivem em um mundo de fantasia, à parte. A lama é tanta que não vejo outra alternativa a não ser recolher-me também em meu mundo. Por fim, plagiando Cícero, se ao lado da biblioteca houver um jardim, nada me faltará! 

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quarta-feira, 17 de maio de 2017

Fatos, opiniões e pós-verdade


À época das ideias positivistas, teorias e argumentos, uma vez submetidos a métodos científicos válidos, tornavam-se irrefutáveis. Até mesmo a cultura surgia impositiva, considerando-se que havia freios à arbitrariedade de ações e crenças. Tudo isso perdeu-se na poeira dos tempos.
Vivemos tempos de extremado relativismo, tudo pode e não pode ser, enfim, a marca de nossa existência holográfica. O que você vê não é real. O que você lê não tem lastro. Fatos não existem mais, foram extintos pelo poder da opinião. São Tomé, insurreto em sua fé, jamais tocaria as chagas do Mestre; quando muito, viveria da exponencial dúvida que é a existência, obrigando-se a beliscar a própria carne para provar da sua materialidade.
Antes, a virtù visiva dava alguma garantia do real, ou da representação dele, seja lá o que isso for; hoje, vemos o que inexiste e, se existe, quando pode ser tocado - ou lido -, foi criado com o simples propósito da trapaça, do engano, para nos desviar daquilo que intencionalmente não querem - ou querem - que vejamos.
Vou a Pasárgada com a alma leve, mas não vou a Brasília, recuso-me. Caso me atrevesse comentar a estripulias das canalhas legitimadas que lá habitam, me embrenharia por um pessimismo que sequer o filósofo de Dantzig suportaria. Mas esqueça o preâmbulo, caro leitor, e vamos ao título.
Não sou expert em jornalismo, como também duvido que o seja a maioria que opina nos periódicos atuais. Tento ler a obra antes da crítica, e vá lá, às vezes sinto-me credenciado a dar meus pitacos.
Vamos aos fatos e opiniões: um fato é algo que aconteceu na realidade, e opinião, o que se pensa a respeito, uma interpretação. Eis a liçãozinha básica. Ocorre que nem todos recontam o fato do mesmo modo e é aí que, de modo sorrateiro, a opinião mete o bedelho; seja pela organização das ideias, seja pelo modo seletivo com que a informação vem à luz, priorizando a opinião do autor.
Fato e opinião se embrenham de tal modo que, relativizados, entram em conflito. Hoje, é comum ver a opinião galgar degraus, pisotear os fatos. Não que se deva priorizar um em detrimento do outro, mas é fato que não se condena um assassino, por exemplo, pela antipatia que o dispunha contra a sua vítima, mas pelo fato de tê-la mandado sem um reles óbolo, visitar Caronte.
E não é que a memória me traz de arrasto aquela senhora acriana, cujo marido fez fortuna à custa de umas poucas toras de mogno (mais um caso, dizem, em que confundiram fato e opinião)? Lá pelas tantas, antes da tragédia de Mariana, gozando da alcunha de ambientalista, bradou contra a arrogância e a esperteza dos fatos objetivos, derivados de um positivismo rudimentar, afirmou ela, que se julgam superiores à opinião, esta, vista como mera suposição subjetiva. Diz ela que os fatos, seletivos, surgem para sustentar opiniões baseadas em interesses próprios e objetivos.  
Nessa toada, o que se vê é a opinião maculada pelo objetivismo dos interesses, e o fato, outrora objetivo, ganhar subjetividade em consonância com o discurso e os interesses nele impressos. Alienados, os fatos tornaram-se massa de manobra, tanto é que hoje podem ser mesmo alternativos, virtuais; já a opinião vestiu-se de certa nobreza, em conformidade à relevância da posição de seu enunciador (na política, quase sempre pautada pela mediocridade, inexplicavelmente move multidões).
Parece-me que nós, o populacho, hora ou outra dependemos desse maná para sobrevivermos no deserto. Ao longo da travessia, olhos e mentes turvados pela areia, guiamo-nos pelo vulto da opinião, na qual acreditamos piamente, investindo-a de verdade. Isto posto, agimos como aquela personagem de Ponson du Terrail, o sr. Williams, para quem os homens deixam de acreditar nas verdades que afirmam em demasia.
Assim, chegamos à pós-verdade, comportamento que faz com que o homem se recuse a acreditar naquilo que está diante dos seus olhos, no que já foi provado por A mais B. Na era da pós-verdade, acredita-se naquilo em que se quer acreditar. O resultado, creio, é nefasto: políticos já não são mais políticos, mas gestores; quando investigados pelo desvio de milhões, se dizem inocentes; condenados pelos mesmos crimes, se dizem injustiçados, perseguidos; tratando-se da ineficiente máquina pública, os responsáveis, quando entrevistados, garantem sua excelência e plena funcionabilidade;  a população, de um lado, morrendo à míngua, reclama da ausência da polícia, do outro, a polícia afirma sua onipresença e eficiência; ministros cujas obras são referências, são pegos por plágios, mas continuam referências; doutores se dizem doutores, mas desconhecem o conteúdo de suas teses, pois jamais as escreveram; candidatos comemoram vitórias em concursos públicos, mas seus nomes já haviam sido escolhidos à socapa antes mesmo da realização das provas e così via. E acreditamos!
Hoje, desconfiei dos céus: as nuvens espessas prometiam chuva, porém, o sol rompeu-se abruptamente, rasgou o enorme aglomerado de gotas em suspensão, mostrou-se atrevido; ainda assim, acreditei que chovia, senti as gotas d’água que escorriam pelo meu rosto, gotejavam dos lábios e deslizavam até meu peito gotículas de pós-verdade.

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sexta-feira, 12 de maio de 2017

Ruínas, crônicas e lembranças


O céu exibe uma lua cheia e brilhante cujo ápice da visibilidade será daqui a dois dias. Contudo, não se dá o mesmo com as notícias, pois à medida que o tempo avança, a impressão que se tem é que elas tornam-se cada vez mais obscuras. Tem sido difícil desvendar as entrelinhas, descobrir o que está por trás, enfim, os interesses de uns e de outros ou de todos em conluio.
Parece-me que temos lido as mesmas notícias há dias, tal a assiduidade com que o modus operandi da canaille é desvendado nas páginas dos jornais, sempre de modo seletivo, é claro, e em consonância com os próprios interesses da imprensa. Mas vá lá, deixemos a política torva e sanhuda de lado!
Roma, que é feita de escultura e arquitetura, à sombra de grandes árvores imensas (se não me falha a memória, foi exatamente assim que Rubem Braga a descreveu), surpreendeu mais uma vez, a despeito dos arqueólogos alemães, ingleses, americanos e de tantos outros ciosos de uma boa pilhagem. Explico-me: hoje li em um site italiano dedicado à história romana, que as escavações na tomba del gladiatore ainda continuam a fascinar.
De pronto, foi-me impossível não traçar sinapses intertextuais, uma vez que acabara de ler o Manifesto Antropófago (ou Antropofágico) de Oswald de Andrade; ali, Oswald tasca que nesse paiz da cobra grande “nunca tivemos grammaticas, nem colecções de velhos vegetaes. E nunca soubemos o que era urbano, suburbano, fronteiriço e continental”.
Nessa toada, no encontro de culturas dissimétricas, a antropofagia surge como um conceito que atribui papel ativo à cultura ‘subjugada’. Aliás, não era outra a vontade do Bruxo do Cosme Velho. Machado de Assis se ressente do pays féerique proferido por Sarah Bernhardt, ignorando aspectos da cultura brasileira. Mas, como disse Oswald décadas depois, “nunca soubemos o que era urbano”, e aí, permita-me o leitor um pequeno retoque: “nunca soubemos o que eram ruínas”.
Hoje, achamos hora ou outra um vidrinho aqui, um caquinho de vaso acolá. No XIX, o máximo que fazíamos era tentar exumar uma ou outra ossada, tal aquela há muito sepultada no Castelo e creditada a Estácio de Sá, que Machado comenta em uma de suas crônicas. Machado desconfiava dos tais ossos e, ironicamente, resgata uma historieta em que coloca Méry em Roma a presenciar dois sujeitos cavando os flancos da Cidade Eterna.
Animados por dois lords ingleses, os trabalhadores exumaram fragmentos de uma estátua que aparentava nada mais nada menos que mil anos de idade. Apaixonado por antiguidade e ruínas como Chateaubriand, Méry não se contém e humildemente pede aos ingleses para ajudá-los a transportar as preciosidades. Mais à noite, em uma reunião, Méry descobre que os fragmentos achados haviam sido preparados na véspera para parecerem que datavam de longe. Eis as ilusões do espírito deixando-se iludir pelas ruínas, que, embora falsas, impressionavam e exibiam volumes e massas.
Mas não parece ser esse o caso da tomba del gladiatore: descoberta em 2008 ao longo da Via Flaminia, na periferia de Roma, a sete metros de profundidade, sob vias férreas e em escavações preliminares para a construção de edifícios, surgiu da noite dos tempos não só a tumba, mas também o traçado de uma antiga via romana e um monumento incrivelmente preservado. Descobriu-se que pedaços do mausoléu traziam o nome de uma personagem célebre da história romana, o general Marcus Nonius Macrinus, do exército de Marco Aurélio e desaparecido em 161 d.C.
Como alguns anos antes Ridley Scott havia realizado Gladiator, não demorou muito para que a imprensa ligasse o fictício Massimo Decimo Meridio a Marcus Macrimus; daí por diante, o general romano tornou-se gladiador e seu mausoléu a tumba do gladiador, de modo que a história, mais uma vez, curvou-se à ficção.
Em 2010, veio à luz a estátua da esposa do Gladiador e, como sempre acontece na história de Roma, quanto mais se cava, mas surpresas emergem da terra. O sítio arqueológico em que jaz o mausoléu do Gladiador, dada a sua riqueza, já foi apelidado de “Fórum Romano em miniatura”. As escavações prosseguem, infelizmente visível aos olhos de alguns poucos privilegiados, de modo que Chateaubriand seria impedido de meditar sobre tais ruínas.
Como não sou Chateaubriand nem nada, cá com os meus botões, conto os dias para novamente vislumbrar a ruinaria da Città Eterna.

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quarta-feira, 10 de maio de 2017

O homem é o lobo do homem

Homo homini lupus est. A expressão vem de longe; apareceu pela primeira vez na comédia Asinaria (c. 195 a.C.), de Plauto. Ao longo da circulação das ideias foi retomada por Plínio, o Velho, Erasmo, Bacon, Schopenhauer, Montaigne, Hobbes e mais uma porção de homens - e lobos.
Há pouco, li um artigo sobre a violência entre os primatas. No mundo animal, os suricatos ganham em disparada. Nada afeitos à competição, sacrificam os recém-nascidos. Contudo, na vida adulta, sequer os suricatos superam os humanos - assim chamados porque são pretensamente dotados de razão -, cujos espécimes matam sem qualquer motivo aparente. Eis, em parte, o significado da expressão.
A compreensão total, no mais das vezes, vem do fato de o homo sapiens não se contentar com uma mortezinha e pronto acabou. É preciso requintes de crueldade e submissão, enfim, apreciar a espinha dorsal do adversário curvar-se ao chão, humilhá-lo, destruí-lo em vida, fazê-lo rastejar-se, vê-lo mendigar o pão de cada dia - e só. A morte é a cereja do bolo. Alteridade, tolerância, respeito e tantos outros atributos fazem parte de seu discurso diário. Nas vezes em que se pretende amigo do homem, saca sua cartilha de humanidades e clama pela razão. Mas isso é discurso, na prática, bem a prática...
Mas vá lá, a memória é fraca e a cartilha é logo deixada de lado; os que estão à sua volta tornam-se invisíveis, acha-se o escolhido, e, quando acredita-se desrespeitado, lança mão da famosa carteirada: Você sabe com quem está falando? Se brasileiro, julgando-se especial, recorre ao famoso jeitinho, fazendo valer o dito do velho cronista de que a exceção só é odiosa para os outros; em si mesmo é necessária. Tratando-se de política, democracia é quando ele manda e os outros obedecem; dando-se o contrário, é ditadura. E la nave va!
Ave Schopenhauer! Vê-se leitor, que hoje estou para generalizações. Quando isso ocorre, sabe-se, lá vem verborreia... Voltando aos lobos, a razão pela qual me veio à memória o aforismo de Plauto nem foi a individualidade extremada de nossos dias e o fato de que nos tornarmos o maior dos predadores da natureza, mas a saga do lobo, o canis lupus.
E não é que antes de ser odiado pelos homens, o pobre do lobo era objeto de adoração? Buffon, já contaminado, referindo-se ao animal, disse: “Desagradável em tudo, estatura baixa, aspecto selvagem, voz assustadora, odor insuportável, natureza perversa, modos ferozes, ele é odioso, prejudicial enquanto vivo, inútil após sua morte.” Misto de repulsa e atração, este canidae percorreu o folclore, histórias e lendas; ainda hoje, atrai e assusta.
O fato é que bem antes de assustar as criancinhas nas fábulas de La Fontaine ou Charles Perrault, o lobo era objeto de admiração por parte do homem. Etnozoologistas afirmam que nos locais em que viveram os lobos, havia grupos de caçadores para os quais ele era um modelo absoluto; a ele creditavam a fundação de linhagens reais e de chefes e até mesmo a fertilidade. Nessas sociedades que viviam da guerra e da caça, o lobo era muito bem-vindo, o modelo a imitar.
Diz-se, contudo, que o homem sempre odiou o lobo porque se parece muito com ele. Talvez, por isso, Plauto, ao demorar-se nas semelhanças, viu que a mesma astúcia e força empregada pelo lobo no exercício da caça, o homem aplica para subjugar seu semelhante. Quando se admira alguém, o que fazer? Imitá-lo e perpetuá-lo como exemplo a seguir. Disso, por exemplo, as inúmeras estelas com imagens de lobos encontradas por historiadores e arqueólogos em escavações, a lenda de Rômulo e Rêmulo, alimentados por uma loba e così via.
Como o lobo tornou-se um animal diabólico? A religião! Deixo a palavra com a etnozoóloga Genéviève Carbone: “Descobrimos uma nova religião inteiramente diferente que diz que há um Deus sobre Terra, que ele está ao lado do cordeiro, da luz, e que ele vai banir o inverno, a morte e o frio. O problema é que o lobo está do lado do inverno, da morte e do frio e é ele quem vem para comer os cordeiros quando esquecem de vigiá-los. Para continuar a integrar um lobo, que é um dos elementos mais importantes do folclore ocidental com o urso, é preciso encontrar uma razão de ser, e esta é o diabo. Assim, acomodam o lobo do lado da noite e da feitiçaria.” E que venham os lobisomens!
Hoje, o dito de Plauto e as historietas modernizaram-se: para mim, Chamfort é o que mais se aproxima do italiano ao afirmar que a sociedade não é outra coisa que um grupo de que uma parte devora a outra; por sua vez, o lobo acomoda-se perfeitamente à figura do homem que oprime e subjuga a mulher - e que Deus proteja vovó e a Chapeuzinho! -, ou, numa exegese marxista, ao capitalista bem sucedido que, também opressor, explora o proletariado, de modo que tudo fica a gosto do freguês, até mesmo porque já não há mais lobos que façam mingau de criancinhas e as exéquias, assunto que tomou a semana, encheu os picuás! 

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sexta-feira, 5 de maio de 2017

Ítaca ou Pasárgada?

Ítaca ou Pasárgada? As notícias da semana, em grande parte protagonizadas pela canaille, não nos deixam dúvida: devemos fugir. Antes que escolha entre Ítaca ou Pasárgada, as sinapses me trazem aos ouvidos a canção de G. Gil. Ocorre que a canção é de um lúdico rasteiro, nem mesmo serve para alentar qualquer espírito já turvo e lesionado por falta de oxigênio. A canaille nos rouba o ar e não temos herói que nos liberte ou louco que nos traga à sanidade.
Fugir? Para onde? Ítaca é um longo caminho de volta. Não à toa Penélope ali esperou por Ulisses por mais de uma década. A viagem até Ítaca é repleta de aventuras; encontramos ciclopes pelo caminho. Porém, não ligamos, pois a poeira dos tempos encarregou-se de apagar de nossa memória Polifermo e tantos outros que, com Hefesto, forjavam os raios usados por Zeus.
Perdemos toda e qualquer nobreza mítico-literária, já não há mais deuses e semideuses, somos todos iguais em nossa utópica república do politicamente correto. Incoerentes, vivemos em meio a uma violência moral, em que a notícia e o fato cruento surgem implacáveis e impiedosos. Hoje, forjam-se raios em mãos moral e profundamente comprometidas. Nossos ciclopes continuam a ser divididos entre os de primeira e os da nova geração, contudo, travestidos de vampiros, sugam-nos o sangue e a alma, tratando-nos com extrema indiferença.
A estrada, sabemos, é longa: mais ou menos setenta, oitenta anos, e atravessamo-la a trancos e barrancos. As manhãs de verão são muitas, mas a alegria de ver novos portos é sempre uma incógnita. Por mais que conheçamos outras paragens, não devemos perder Ítaca de vista, pois nosso destino será nosso alento. Como dizia o poeta, ainda que Ítaca não nos dê muitas riquezas, ela nos dará uma bela viagem, ademais, sem ela não teríamos partido.
Seja a pé, seja de trem, mesmo se Ítaca nos parecer pobre, ela nos terá feito sábios, e, por causa dela, teremos vivido uma vida plena e intensa. O mesmo ocorrerá se decidirmos por Pasárgada, esse país de delícias imaginado pelo poeta.
Contudo, só vamos para Pasárgada porque aqui não somos felizes e também porque lá somos amigos do rei. Por isso importa a viagem. “E quando eu estiver mais triste/ Mas triste de não ter jeito/ Quando de noite me der/ Vontade de me matar”... Ah, Bandeira! Se tivesses lido o que li hoje... Ficarias mesmo muito triste ao ver que chegamos onde nunca imaginaste...
Veja você leitor: em Luiziana, um pequeno vilarejo no centro-oeste do Paraná, o ex-prefeito José Claudio Pol, também conhecido por Claudião tornou-se réu por homicídio e peculato em uma ação criminal. Até aí nada de novo, afinal, políticos tornarem-se réus já é lugar-comum no noticiário nacional. O estranhamento, no caso, vem da própria imprensa ao relatar tais peripécias nas páginas de política e não nas páginas de polícia.
Bem, o vilarejo em que Claudião reinava possuía um só cilindro de oxigênio móvel da unidade de saúde, e não é que Claudião, também cachaceiro, tomou emprestado o tal do cilindro da unidade de saúde para bombear chope em sua festinha particular? Tudo passaria desapercebido não fosse uma paciente inoportuna que resolvera passar mal justamente enquanto Claudião e sua prole sorviam do chope bombeado com o oxigênio que, surrupiado da paciente, obrigou-a a apressar sua visita ao Hades.
O irônico é que na foto publicada pelo familiares de Claudião, o cilindro está logo abaixo de um quadro que exibe o rosto do Cristo entalhado em madeira. Ainda que de muito mal gosto, a representação do Mestre não deixa de ressaltar a nulidade de seus conselhos, ao menos para Claudião, o fariseu, que, pelo menos por enquanto, não se encaixa bem na historieta do filho pródigo, pois antes terá que se ver com a justiça.
Como vês, leitor, a saída é fugir: seja voltar a Ítaca, de onde nunca deveríamos ter saído, seja para Pasárgada, onde somos amigos do rei. Deixemos a pátria mãe gentil; distraída, se Claudião lançar nova candidatura em 2018, ela o receberá de braços abertos. Hipócritas, bradamos alguma dose de moralidade, mas gostamos mesmo é de uma boa patifaria. O STF está aí e não me deixa mentir. 2018 está às portas!
Mas não nos condenemos! Não somos muito diferentes de outros povos, afinal, há mais de dois mil anos libertaram Barrabás!


Imagem: Vers Ithaque, de Henry Pou

Publicado originalmente em http://z1portal.com.br/category/miscellanea/

terça-feira, 2 de maio de 2017

1984: um cânone?


“Um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer.” O incipit, leitor, extraí-o de Por que ler os clássicos, de Italo Calvino, e é uma das quatorze razões apresentadas pelo autor para se ler aqueles livros sobre os quais sempre ouvimos falar, mas jamais nos permitimos uma leitura integral. Na maioria das vezes, resenhas, entrechos comentados, filmes e séries de TV foram os meios pelos quais tivemos algum contato com tais obras.
Em todos esses casos o texto foi modificado por leituras anteriores, muitas vezes com o objetivo de sustentar argumentos externos à obra. É certo que o “eu” que se aproxima do texto já é uma pluralidade de outros textos, mas, às vezes, somos levados para bem longe do pensamento do autor, de modo a nos extraviarmos do espírito da obra.  
E, parece-me, foi o que aconteceu semana passada com 1984, de George Orwell, quando se pretendeu explicar o neologismo criado pela equipe do doidivanas e arrogante (perdoem-me, os adjetivos são necessários) presidente americano. Trata-se, em novilíngua, do termo “fatos alternativos”. A expressão, classificada por especialistas como orwelliana, dá-se em razão de o fato em si não ter realidade objetiva. Ou seja, nada muito diferente do que os diferentes Miniver (Ministério da Verdade) de nossos últimos governos já não tenham feito, sob verniz democrático, é claro, incensando liberdades, mas, de fato, acreditando piamente que a Ignorância é força (sempre para o Grande Irmão, é claro!).
Contextualizando: após o uso da expressão pelos assessores de Trump, as vendas do chamado romance distópico de George Orwell disparou. À informação que se publicou aqui no Brasil - eco da que viera à luz nos jornais americanos e europeus do dia anterior -, em terras tupiniquins, acresceu-se opinião, de modo a propalar ainda mais a guerra entre os Azeredos e os Benevides, localizando a distopia entre as diferentes correntes de pensamento da politicalha. Incautos, muitos internautas deixaram-se guiar pela animosidade, esquecendo-se da fala da velha: “Calma, tem bosta prá todos!”, tal a polarização vista nas redes sociais, onde o ódio se alastra.
Mas voltemos a 1984, que você, leitor, se não leu, deve ler! Publicado em 1949, a obra retrata o quotidiano de um regime político totalitário de modelo comunista. Na época, a palavra democracia não era ainda um arcaísmo tão relativizado e ambíguo a ponto de se aplicar à ditaduras, portanto, não oferecia confusão ao leitor, que sabia dar nome aos bois. O romance mostra como uma sociedade oligárquica reprime qualquer um que se opuser a ela e, de forma magistral, como um regime coletivista-socialista intenta contra a vida dos cidadãos, invadindo os direitos do indivíduo.
1984 é de fato uma metáfora sobre o poder e a atuação de regimes comunistas e, por extensão, de alguns ditos socialistas e/ou capitalistas. Orwell, que foi um dos primeiros simpatizantes ocidentais da esquerda, também foi um dos primeiros a se dar conta de para onde o estalinismo caminhava. Na obra orwelliana, escrita em regime de urgência, haja vista sua luta contra a tuberculose que o levaria à morte, o Grande Irmão é ninguém menos que Stalin e seu arqui-inimigo Goldstein, não é outro senão Trotsky. Hoje, a lista de nomes traria certa dificuldade ao leitor.
Já nos primeiros parágrafos de 1984 o leitor tem a sensação de que partes foram extraídas de notícias recentes; e nem é preciso deitar os olhos para além de nossas fronteiras e vislumbrar um vizinho qualquer que sociabiliza a fome e a miséria em proveito de princípios ideológicos. Não que se não deva tê-los, mas, bem alimentados, cérebros funcionam melhor e, parece-me, não é esse o desejo de todo Grande Irmão.
Em nossos dias, dividimos os cidadãos em duas classes: os ideocriminosos, que contestam a imprensa oficial e o partido, e os entusiastas, tão seletivos quanto os primeiros, mas tão entorpecidos quanto foram os seguidos de Jim Jones.
Orwell, ilustra de forma genial o comportamento dos cidadãos durante os Dois Minutos de ódio (hoje o tempo foi distendido; dispomos de redes sociais!): “O horrível dos Dois Minutos de ódio era que embora ninguém fosse obrigado a participar, era impossível deixar de se reunir aos outros. Em trinta segundos deixava de ser preciso fingir. [o ódio] Parecia percorrer todo o grupo, como uma corrente elétrica, um horrível êxtase de medo e vindita, um desejo de matar, de torturar, de amassar rostos com um malho, transformando o indivíduo contra a sua vontade, num lunático a uivar e fazer caretas. E no entanto, a fúria que se sentia era uma emoção abstrata, não dirigida, que podia passar de um alvo a outro como a chama de um maçarico.” 
Eis porque 1984 não só é um clássico que ainda não terminou o que tinha a dizer, mas também um cânone, sobretudo porque é um daqueles livros que nos trazem uma estranheza que jamais assimilamos inteiramente; seja porque apresenta um tipo de originalidade que ou não pode ser assimilada, seja porque nos assimila de tal modo que deixamos de vê-la como estranha - com os devidos créditos a Bloom -, e a despeito da Escola do Ressentimento.



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