Revista Philomatica

segunda-feira, 22 de maio de 2017

Imprensa folhetinesca

Inventado pelo jornal - e para o jornal - o que no início chamava-se feuilleton-roman, tornou-se folhetim e, em muitos casos, a razão de existência do próprio jornal. Essa nova forma de literatura, cujos capítulos seriados eram publicados no rodapé da primeira página dos jornais, brotou de uma simples necessidade jornalística: aumentar o público leitor. Ponson du Terrail, Eugène Sue e Alexandre Dumas, por exemplo, garantiram a fidelidade de milhares de assinantes e, de quebra, a venda de zilhões de edições.
Assim como esses pães de liquidificador, que dispensam aquele trabalho de mergulhar a bolinha de massa crua em um copo d’água, esperar que ela flutue para, só então, levá-los ao forno, o folhetim tem uma receita simples. Eis os ingredientes: tome uma mocinha infeliz e perseguida, coloque-a no caminho de um tirano brutal e sanguinário, faça-a tornar-se amiga de um pajem sensível e virtuoso e, de quebra, dê um jeito para que ela revele seus segredos mais íntimos a um confidente dissimulado e pérfido.
Personagens delineados, tome da pena, misture todos rapidamente e produza sete, oito, dez, vinte folhetins e sirva-os quente! Porém, como bem esclarece Reybaud, é preciso ter a máxima atenção ao corte, porque é isso que define o bom folhetinista. É preciso que um episódio esteja amarrado ao outro, que desperte o desejo, a curiosidade, a impaciência de ler a continuação.
Esta curiosidade, claro, é o que vai determinar o grau de erotização do texto. Explico-me: depende de o autor manipular com destreza a estética do desejo e do obstáculo, de modo que o leitor, seduzido pela narrativa, fique preso pela periodicidade e à espera daquilo que o autor escolheu não dizer.
Sendo essa uma das habilidades requeridas ao autor do folhetim, tratando-se da imprensa, cuja notícias são apresentadas por meio de títulos chamativos - quando não falsos -, também à procura do maior número de leitores e à moda de fait-divers, o que vemos não é algo diverso, muito pelo contrário: seletiva e nada imparcial, escolhe fatos e situações, mistura-os a outros contextos, apimenta-se o enredo, destaca-se uma frase qualquer tornando-a dúbia, junta-se ao texto uma imagem também ambígua, acrescenta-se um gráfico, distorce e/ou relativiza-se os dados da célebre estatística de modo a confundir o leitor e voilà - eis a receita da imprensa folhetinesca. Sob alcunhas de Folha, Gazeta, Diário, Estado, Correio disso ou daquilo, e nomes sonoros como colunistas, articulistas, especialistas, jornalistas, etc, diariamente o leitor dá de cara com muito Aqui Agora e Datena impressos.
Tratando-se da política, não raro me pergunto quais pudores levam essa imprensa do espetáculo a dividir o noticiário político do policial, cujas imbricações nem mesmo leigos e ingênuos ignoram. Hipócrita, a imprensa não é afeita à imparcialidades. Parti pris? Não creio. A resposta talvez esteja no vil metal, que jorra para dentro da burra via anúncios de instituições públicas e, de forma indireta, por meio de partidos-quadrilhas devidamente registrados no Superior Tribunal Eleitoral.
E tudo isso é algo genuinamente brasileiro? Não, infelizmente não, caro leitor. Países como a França já passaram pelo que passamos hoje, embora, aparentemente, tenham conseguido expurgar a parte espúria e infecta. Extinguir a imprensa? Não, melhor tê-la a nos contentarmos com um sistema sozinho e soberano a nos dizer o que e qual é a verdade.
O que incomoda é a imprensa e a política comerem do mesmo prato, às vezes, fazendo uso até do mesmo garfo. Isso faz com que as bactérias transferiram de uma boca a outra, confundindo o pobre do leitor, obrigando-o a uma vigilância cansativa.
Não bastasse isso, é comum os jornais apresentarem as notícias sob viés literário: a ação se desloca de protagonistas a coadjuvantes à medida que os interesses mudam; quando não, a canaille surge dissimulada e bandidos-políticos viram celebridades. Até mesmo as críticas ao cascateamento da infração em todos os níveis de poder, esfera em que o crime tornou-se um de seus constitutivos maiores, é relativizada visando poupar uns e outros.  
Abaixo, reproduzo um extrato de Bel Ami, de Guy de Maupassant. O folhetim, de 1885, conta a ascensão social de Georges Duroy, homem ambicioso, sedutor e sem escrúpulos, que chega ao topo da pirâmide social parisiense graças às suas amantes e seu conluio entre finanças, política e imprensa. Neste trecho, Duroy, ao passear pelo Bois de Boulogne, reconhece os homens e mulheres mais influentes de sua época, demonstra conhecer seus segredos, a história de suas vidas e de suas fortunas. Cabe a você leitor fazer as atualizações: os nomes, escolha-os a seu critério; o local e a situação, relembre algumas das últimas aparições em que políticos e empresários vestiram-se uniformes de estatais, inauguraram projetos e exibiram-se para uma imprensa que, na manhã seguinte, publicou o show com ares de grandes realizações.

Este jogo o divertia muito, como se estivesse constatando, sob as severas aparências, a eterna e profunda infâmia do homem... E pôs-se a procurar os cavaleiros sobre os quais corriam as histórias mais salgadas.
Avistou bastantes homens suspeitos de roubar no jogo, cujos únicos recursos vinham da jogatina.
Outros, muito célebres, que viviam unicamente dos rendimentos de suas esposas; outros, das rendas de suas amantes... Muitos haviam pago suas dívidas - coisa muito honrosa -, sem que no entanto ninguém tivesse adivinhado de onde lhes tinha vindo o dinheiro (mistério muito suspeito). Viu homens de finanças, cuja imensa fortuna tivera origem num roubo e que nem por isso deixavam de ser recebidos por todos, nas mais nobres casas; e viu homens tão respeitados que os pequenos burgueses tiravam o chapéu à sua passagem, mas cujas trapaças descaradas nas grandes empresas do Estado não constituíam mistério para nenhum que conhecesse os avessos do mundo.
E todos tinham um ar altivo, o lábio orgulhoso, o olhar insolente, os de suíças e o de bigode...  (1959: 135)


Quem dera, leitor, a imprensa folhetinesca e imparcial nos apresentasse a canaille política como Georges Duroy a via... O que fazer? Conselho de tio velho em porta de sacristia:  observe e desconfie, ao menos saberá de fato quem é o lobo na história da carochinha reproduzida todos os dias nas páginas do folhetim que entregam à sua porta. 

 Publicado originalmente em http://z1portal.com.br/category/miscellanea/

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