Revista Philomatica

terça-feira, 4 de julho de 2017

Baudelaire e as "quenga"

Vá lá, caro leitor, o título é para dar uma aclimatada, torná-lo mais tupiniquim. Ler notícias sobre Brasília e não fazer remissão a um prostíbulo qualquer, convenhamos, beira à ingenuidade. E não falo de cabaré com letreiro em francês, refiro-me àquele puteiro de beira de estrada em que as meretrizes jamais provaram de um champanhe francês pago com o erário. Acredite, até mesmo nesse buraco ética e respeito imperam! E não aponte o dedo ao enunciador, tratando-o conservador e fascista! Ele, ainda que retoricamente, prega a liberdade do corpo, a delícia e a luxúria da orgia e os encantos do serralho! Só não vai da ideia ao fato por pura falta de contexto!
Mas deixemos de lado a casa da mãe Joana - que você financia - e adentremos as antinomias; sim, porque as ‘meninas’ na literatura e na poesia tornam-se santas, sacrossantas! Falemos de Baudelaire e de sua obra Le Spleen de Paris, que veio à luz em 1869.
Até certo ponto, pode-se afirmar que Le Spleen de Paris é um ‘tratado’ sobre a prostituição, o que inscreve Baudelaire em uma tradição literária, cujo mais insigne representante é Rétif de la Bretonne, com suas Nuits de Paris. As páginas de Spleen estão repletas de figuras femininas, solícitas como Mademoiselle Lancet, “levemente maquiada, com os cabelos flutuando ao vento”, e que convidam o narrador a segui-la até seus aposentos para, depois, envolvê-lo em seus braços; ou ainda como a ‘pequena amante’ com toda a sua licenciosidade, e que faz parte das personagens femininas de ‘Portraits de maîtresses”, que compõem uma coletânea de poemas em prosa, cujas alusões ao corpo, à nudez, à sensualidade, às roupas apertadas e aos pedidos de dinheiro - que evidenciam que a mulher exerce a profissão de prostituta -, parecem traçar um panorama do exercício da profissão.
Contudo, se a palavra “prostituta” não é explícita, sobram sinônimos como “lorette” (a meninas que, em Paris, ‘batiam calçada’ ao lado da igreja Notre-Dame-de-Lorette), “criatura” e outros; todos sem qualquer conotação violenta, pois, se a mulher não é poupada por Baudelaire, a mulher de vida fácil nunca é menos irritante que a esposa legítima.
Em Spleen de Paris, a prostituta faz parte de um sistema composto de clientes “veteranos da alegria” - aqueles que conheceram (no sentido bíblico, assim como Abraão conheceu Sara) dezenas de filles de joie - e os cafetões ou mantenedores. A provocação vem nas entrelinhas: o marido que exibe a mulher arredia e misantropa em uma feira é algo diferente de um cafetão?
Sem afirmar que a prostituta é a norma do padrão feminino, nota-se em Spleen que muitas são as mulheres que exercem a prostituição ou situam-se numa fronteira, cuja representação exclui o julgamento, a obscenidade e a miséria. Esta prostituição não é condenável.
O universo de Spleen de Paris é a prostituição. Mesmo o “filantropo” com seu élan em direção ao outro é suspeito. Aspirando ser um homem da multidão, ironicamente torna-se um pretendente do gênero humano, tal o Don Juan, de Molière. O peso das relações humanas é insustentável e inevitavelmente leva a compromissos, compelindo-nos à prostituição social. Nessa toada, o vermos o mundo, perdemo-nos a nós mesmos e a nossa dignidade e corremos o risco de nos tornamos o “último dos homens”, pois nos diluímos nos “vapores corruptíveis do mundo”.
Desse modo, a prostituição engendra um risco ontológico grave em que vislumbramos - sempre - a promessa de uma punição. Se a prostituição ameaça sempre, é ainda mais presente quando existe entre os homens relações falsas, dissimuladas e distorcidas. Tome-se, por exemplo, o poema “La femme sauvage et la petite maîtresse”, que mostra o inferno que pode tornar-se a união de um homem com uma mulher exasperante e irritante. Em poemas como este, a convivência é regada a certa dose de sadismo.
Por fim, para Baudelaire, o homem sempre pode cair na prostituição, uma vez que está habituado ao desejo de agradar; temeroso de ser tratado com indiferença, ignorado, prende-se a relações espúrias e falsas, ou ainda, a amizades animadas por mera compaixão. O perigo ronda todos os homens e ameaça sobretudo o artista.
Mas falamos de poesia; no puteiro da canaille, ética e suscetibilidades não existem, pois, destituídos de qualquer código criminal, em que bandidos respeitam bandidos, em Brasília, só há comparsas indignos até mesmo dos puteiros de beira de estrada.


Foto: Filme “Apollonide, souvenirs de la maison close”; dirigido por Bertrand Bonello (França, 2011). 

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