Revista Philomatica

quinta-feira, 31 de agosto de 2017

Uma carta de amor de Franz Kafka

Uma carta é o que deixo para você leitor, porque viajar é preciso; e quando se viaja o tempo é outro, não se deve manter a rotina de entregar o texto toda quarta ou quinta-feira. É preciso algum desprendimento, atrasar a ampulheta ao sabor das descobertas. Por isso, traduzi a carta que lerá abaixo, deixada por Franz Kafka a Milena Jesenská, que extraí do site “Des Lettres”.
Franz Kafka (1883-1924) um dia escreveu que “a facilidade em escrever cartas deve ter introduzido no mundo uma terrível bagunça de almas: é um comércio com fantasmas.” Este comércio manteve-se da forma mais intensa com Milena, que inicialmente foi sua tradutora, e depois, um dos grandes amores de sua vida. Eles só se viram em duas ocasiões, mas a correspondência entre eles constitui por si mesma uma estrutura de sofrimento e vazios, um monumento literário de uma paixão e força raras. Esta carta ilustra um amor alimentado pela falta e pela ausência, um irresistível jogo de fantasias.

Quinta-feira, 3 de junho de 1920.

Sim, Milena, esta manhã eu estava nu em meu sofá, metade no sol e metade na sombra, depois de uma noite quase em claro; como eu poderia dormir quando, desperto demais, ficava voando ao seu redor, realmente apavorado, exatamente como você mesma escreveu em sua carta esta manhã: “aquilo que havia caído sobre mim”; assustado no sentido da palavra quando se diz dos profetas que sendo (ainda? ou já? pouco importa), que sendo então frágeis crianças pequenas, esperando apenas por uma voz chamá-las, sentiam-se assustados, não queriam, e fincavam os pés ao chão e sentiam uma angústia rasgando seus cérebros, porque tendo ouvido vozes antes, eles não podiam entender de onde vinha o som que os aterrorizava - era esta a fraqueza de seus ouvidos? era esta a força da voz? - e não sabiam mais porque eram crianças, porque a voz os havia vencido e se instalado neles em virtude precisamente desse medo, dessa apreensão divinatória que tinham dela, que por outro lado não provava nada quanto à sua missão profética, porque muitos ouvem a voz, mas são eles verdadeiramente dignos dela? É muito duvidoso e é melhor dizer não de imediato para sentir segurança, tal era o meu estado de espírito no sofá quando suas duas cartas chegaram.
Há um traço de caráter, eu acho, Milena, que compartilhamos: somos medrosos, nós nos assustamos do nada; quase todas as nossas cartas são diferentes, mas quase todas elas temem aquela que as precede, e mais, aquela que as seguirá. Temerosa, contudo você não o é por natureza, vê-se isto facilmente; eu mesmo talvez não o seja mais da mesma maneira, mas isto tornou-se uma segunda natureza, uma vez que só desaparece no desespero, a rigor, na raiva, e, não esqueçamos, no medo.
Às vezes tenho a impressão de que vivemos em um mesmo quarto com duas portas, uma de frente para a outra; cada um tem a maçaneta da sua; apenas um cílio se move em um, o outro já está atrás da porta; o primeiro acrescenta uma palavra, o outro já fechou a porta definitivamente, e não o vê mais. Ele será aberto, porque trata-se de um quarto que não se pode abandonar. Se o primeiro não era como o outro, ele manterá sua calma, aparentemente acharia melhor não olhar o que fez o segundo e faria, pouco a pouco, reinar a ordem no quarto como se fosse uma sala semelhante a todos as outras; ao contrário, da sua porta ele trabalha como outro, acontece mesmo que cada um esteja atrás de sua porta e que o belo quarto esteja vazio.
Disso nascem mal-entendidos cruéis. Você reclama, muitas vezes, Milena, que se pode escrever e reescrever uma das minhas cartas sem que dela jamais saia coisa alguma; ora, é justamente isso, salvo algum erro, é uma dessas cartas em que mais estive perto de você, tão senhor do meu do meu sangue e do seu, tão embrenhado na floresta, tão descontraído, que realmente não ouvia do outro nada além do que eu disse: que se via o céu, por exemplo, por entre as árvores; isto é tudo, uma hora depois repete-se a mesma coisa, e não há nada nisso, é claro, nem uma única palavra é cuidadosamente pensada. Mas isto não dura, é apenas um momento, e imediatamente as trombetas da insônia recomeçam a soar.
Considere ainda, Milena, o estado em que venho até você, considere os trinta e oito anos de viagem que tenho a oferecer (e até muito mais, porque eu sou um judeu); quando eu a encontro numa volta aparentemente fortuita da estrada, você, que eu realmente não esperava ver, especialmente agora, especialmente tão tarde, não posso gritar, fazer qualquer coisa, nada mais grita em mim; não estou dizendo loucuras (também não estou falando sobre o que tenho em excesso), e só sei que estou de joelhos vendo seus pés perto dos meus olhos, acariciando-os.
Não me peça para ser sincero, Milena. Ninguém pode exigir mais sinceridade de mim do que eu mesmo, mas muitas coisas estão além de mim, talvez por isso elas me escapem. Incentivar-me a procurá-las não é me encorajar, ao contrário, não posso fazer nada menos que isso, de repente, tudo se torna uma mentira, e é a caça que está a estrangular o caçador. Estou em um caminho muito perigoso, Milena. Você, você está firmemente plantada ao pé de uma árvore, jovem, bonita, e o brilho de seus olhos elimina o sofrimento do mundo. Nós jogamos “muda, muda, pequena árvore”, eu escorreguei na sombra, de uma árvore para outra, estou no meio do caminho, você me chama, você me avisa dos perigos, você quer me dar coragem, meus passos incertos a assustam, você me lembra (a mim!) da gravidade do jogo, eu não posso mais, eu caio, eu estou por terra. Não posso mais ouvir ao mesmo tempo a sua voz e as vozes terríveis do mundo interior, mas posso escutá-las e confiar em você como em qualquer outra pessoa neste mundo.


Publicado originalmente em http://z1portal.com.br/category/miscellanea/

quarta-feira, 30 de agosto de 2017

Annie Lennox e os desmemoriados

O que Annie Lennox tem a ver com a falta de memória? A resposta, leitor, se se dispuser a um pequeno esforço, ainda que padeça de alguma anamnese, verá que tem lá seus lastros nos célebres versos do profeta, dado que uma geração vai, e outra geração vem. Bem, as predições do áuspice afirmam que nesse movimento pendular o que permanece é a terra, por isso, tudo o que venha a dizer digo sob as asas da ressalva e da ambiguidade.
Não sei em que grau de perda de memória você se inscreve, mas Annie Lennox é uma cantora; sim, daquelas que comumente faziam uso do aparelho fonador, ao contrário das atuais estrelas da música, cujos glúteos bombados e em movimento produzem sons supostamente admissíveis na escala musical. Lembrou-se de seu ídolo da música e já está a resmungar, achincalhando-me conservador? Vá lá, estravase, bote seu lado fã clube para fora, não me importo! Mas aposto que ao lembrar-se dele, se não padecer de qualquer encefalopatia, serão lembranças da ordem corpórea e não sonora! Pronto, matei a charada! Seu ídolo canta com o cul!
Após a provocação, vamos ao caso Annie Lennox: a Cantora, célebre já nos anos 80, quando fazia parte da banda Eurythmics, vendeu cerca de 75 milhões de discos planeta afora e foi premiada com Grammys e Oscars. Portanto, seu Lattes dispensa apresentações, até mesmo porque as mulheres escocesas não são conhecidas pelo quesito derrière.
Ocorre que semana passada a representante de uma rádio comercial americana enviou-lhe um e-mail dizendo ter apreciado muito suas músicas, que ouvira pela internet. Até aí nada de novo. Contudo, ato contínuo ao elogio, diz ser coordenadora de músicas e estar à procura de artistas que considera ter potencial, para tocá-los em sua rádio.
Não bastasse apresentar-se como completa desmemoriada, sobretudo tratando-se de seu mundo, a música, a tal coordenadora pede a Lennox que envie um mp3 de seu último single, informando que o encaminharia ao diretor de programação, para ver se ele estaria interessado em tocá-lo. Completo desconhecimento da comida que mastiga todos os dias! Fosse eu o dono da rádio!
Mas fosse a perda da memória um caso localizado de gafe, vá lá! O fato é que tem se tornado clichê afirmarmos que somos um povo sem memória - veja que já me locomovi geograficamente. À medida em que envelhecemos, tornamo-nos autobiográficos, o repertório aumenta, repetimos histórias tal aquela tia velha lá do interior que, a cada nova visita, nos submete à narrativas há muito conhecidas. Mas não se trata disso leitor, trata-se da convivência com uma geração nada curiosa do passado recente, que pouco importa em saber o porquê disto ou daquilo, a origem, e quiçá, nada afeita à leitura e ao conhecimento. Basta saber fazer o quadradinho!
Para esses tantos o conhecimento é descartável, ondulante, limitam-se à última moda, sem se darem conta de que são, na maioria das vezes, alienados pela indústria do entretenimento. Esta, embora credite a seus produtos de diversão o status de cultura, tão logo os venda, inventa outros para assim manter girando a roda do consumo. A cultura, desse modo, vê-se alijada da sociedade de massas. Afinal, a arte, para o bem ou para o mal, incomoda o sujeito, interrompe seu sono fantasioso, obriga-o a pensar.
Vem-me ao espírito a última onda da literatura especializada em sangue, o dos vampiros. Desconheço-a por inteiro e creio mesmo que ali haja muitos bons prosadores, contudo, o exercício de engavetamento promovido pela indústria do entretenimento apaga a cultura passada, de maneira que arrisco afirmar que apenas uma reduzida gama de leitores dá-se ao trabalho de ir atrás do romance gótico, de um Abraham Stoker, por exemplo. Este, na toada da historieta da Annie Lennox, figuraria autor iniciante de potencial sucesso na literatura vampiresca.
E não falemos da política torva e sanhuda e suas personagens, cuja defenestração é mais que merecida; estas, no entanto, sobem à cena e ganham protagonismo a cada eleição. Culpa de um bando de milhões de desmemoriados e interesseiros, cujo horizonte não vai além das ideias que rondam o próprio umbigo?

Publicado originalmente em http://z1portal.com.br/category/miscellanea/


sexta-feira, 18 de agosto de 2017

Spleen

À procura do carro das ideias, corro os olhos de cima abaixo pelos sites de notícia e o que leio, felizmente, obriga-me a intersecções com a literatura. Graças à mimeses suportamos o real. Não à toa, a memória literária, por meio de uma série de sinapses, às vezes confusas, nos traz lembranças e entrechos de poemas e narrativas.
À primeira delas, leitor, credito o título destas garatujas. Tente você ler as notícias do dia; se não for resistente o bastante, advirto-o, certamente padecerá de um pessimismo exacerbado que remete ao mal do século, razão da existência de algumas obras-primas do século XIX. Guardadas as devidas proporções entre Musset, Byron, Goethe e mesmo os nossos Álvares de Azevedo e Casimiro de Abreu, vem-me Fernanda Young, que hoje disse que só produziu o que produziu graças à depressão, eis aí um exemplo da extensão do tédio que se instala nesta tupiniquim republiqueta.
Não há nada, parece-me, que nos anime a seguir em frente. Esperamos por algo, e nada acontece! As sinapses me levam a Emma Bovary. Lá pelas tantas, no capítulo IX, Flaubert descreve o estado de alma de sua célebre personagem: “Como os marinheiros em perigo, ela lançava os olhos desesperados para a solidão da vida, procurando ao longe alguma vela branca nas brumas do horizonte. Não sabia o que seria, que ventos trariam esse acontecimento para si, para onde a levaria, se viria carregado de angústias ou de felicidade. Mas, cada manhã ao despertar, ela esperava o dia, ouvindo todos os ruídos, erguendo-se sobressaltada; e espantava-se por nada suceder. Ao pôr-do-sol ficava mais triste, desejando que o dia seguinte chegasse logo.”
Flaubert disse um dia ser Mme Bovary. E nós, cidadãos espezinhados pela canaille, somos todos Emma Bovary? O que faremos, entediados como estamos diante de um país que não caminha, mas vive a sapatear como se esforçasse para não ser tragado pela areia movediça? Espoliados, prostituídos e massacrados por uma nação vampiresca, nos suga o sangue e as esperanças... o que ela quer mais, matar-nos todos?
Esperamos acontecimentos e eles, quando vêm, vêm carregados de angústias. Os ruídos são produzidos pelas mesmas figuras, pelas mesmas quadrilhas e seus líderes, deslocando-se pelo país como se salvadores da pátrias fossem, tentando a todo custo apagar de nossas memórias o passado recente! Os salvadores da pátria, todos, queremos mortos! Por que insistem em vilipendiar nossos espíritos? Despertamos, esperamos por um novo dia, e nada! Só nos resta tristeza ao contemplar o pôr-do-sol à espera do dia seguinte.
Reflito um instante e as sinapses me trazem à memória um dos nossos: Nelson Rodrigues, sim, aquele da célebre série de crônicas A Vida como ela é e dos não menos instigantes Vestido de Noiva, O Beijo no Asfalto e A Falecida. Lembro-me de Sarah Lopes na Falecida. Tudo, as peças, as crônicas e Nelson! Tudo foi coberto pela poeira do tempo! Mas ventou tão pouco, penso, por que não há um aluno sequer que se lembre disso? Por que estamos tão desmemoriados? Por que somos embotados diariamente por um lixo que teimam em chamar cultura, em que subcelebridades cantam com o derrière e pseudojornalistas produzem reportagens sobre a importância desse ícones de não sei do quê e nem sei para quem? Nelson insiste batendo à porta da memória, ouço o ecoar de sua fala: “No Brasil, quem não é canalha na véspera é canalha no dia seguinte.”
Está bem, incorremos em erro todas as vezes em que generalizamos, mas eis um fato: tratando-se de políticos, não há quem possa desdizer Nelson Rodrigues!
Penso o que penso e lá me vêm as sinapses, agora, com o Zweig a me provocar: “Nada é mais típico do brasileiro do que o fato de ser um homem sem história. Todos os valores civis foram importados pelo mar.” Zeus! Muitos dizem que estamos a fazer história; atraso-me a pensar no modo como a escrevemos: buscamos a tornure da frase, caprichamos nas descrições, criamos argumentos, às vezes trabalhamos a síntese, somos afeitos à análise do discurso (escrevemos teses sobre o discurso implícito nas contas luz), mas e os valores civis? Devemos insistir em refutá-los em prol de um discurso ressentido que eleva os traços tupiniquins?
O que fazer senão padecer de um mal do século todo nosso, longe dos lugares sombrios, úmidos e frios, mas ao sol à beira-mar, sentados na areia branca que toca nossos pés, contemplando o grande disco a submergir nas águas?
Eis que as sinapses me trazem Carlota Joaquina: “Desta terra, não quero levar nem o pó!”

Agora só me resta arrancar os sapatos e atirá-los ao mar!

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quarta-feira, 16 de agosto de 2017

A Intrusa

Afirmar que o mundo sempre foi regido pela batuta masculina nada mais é que constatar o óbvio. E isso não se explica pela constituição física e/ou a inteligência do homem, como insiste em bradar muito machista de plantão. Arrisco dizer que a submissão da mulher tem origem na sua própria força. Não, não estou atribuindo a ela a culpa da sua subjugação, como tem sido comum em nossos dias, em casos em que se condena a vítima e não o estuprador!
Afirmo que o homem age covardemente todas as vezes em que assedia física e moralmente a mulher, valendo-se do poder tradicionalmente conferido a ele - sim, é tradição, até mesmo mulheres dizem que homens não choram - para sujeitar o sexo oposto. E por duas razões: medo e bestialidade; medo, porque por mais que se esforce não consegue entender o intelecto feminino, diverso, plural, criativo, perseverante, vigoroso e forte; bestial, porque rude se esquece de que a delicadeza e a inteligência são superiores à força e ao poder perverso.
Bem, todo esse preâmbulo do óbvio só para dizer que apesar da maladroite regência masculina, ópera e o libreto são escritos por elas, que há muito solaparam a base do pedestal do macho. E não fizeram isso de modo sorrateiro, mas armadas de cortesia, civilidade e singeleza, ainda que hora ou outra tenham sido tomadas por intrusas. Afinal, que faria o homem ao ver seu universo desbravado por essas bravas gentes delicadas fazendo tudo o que ele fazia - e melhor?!
Vejam Júlia Lopes de Almeida! Nascida no Rio de Janeiro, viveu parte da infância na minha querida Campinas; ali, começa a escrever na Gazeta de Campinas, apesar de a literatura “não ser visto como uma atividade própria das mulheres” (com aspas, porque é assim que dizem seus biógrafos). Também confessa a João do Rio que a essa época fazia versos às escondidas.
Bem, o fato é que Júlia vem à luz e já em 1919 é eleita presidente honorária da Legião da Mulher Brasileira. Mais tarde, integra o grupo de escritores e intelectuais que planeja a criação da Academia Brasileira de Letras. Contudo, embora seu nome fizesse parte da lista dos 40 imortais que fundariam a entidade, foi excluído posteriormente, porque os fundadores optaram por uma academia exclusivamente masculina. E Machado consentiu!!!
Mas falemos de A Intrusa, romance de Júlia Lopes de Almeida, que me foi apresentado por uma amiga, leitora contumaz. Publicado em 1905 nas páginas do Jornal do Commercio, em capítulos, como ditava a regra de todo bom folhetim, vira volume três anos depois. Ainda que parte da crítica afirme que a obra de Lopes de Almeida é marcada pela influência do realismo e do naturalismo francês, tratando-se d’A Intrusa, não me parece este um comentário de todo justo.
A Intrusa, obra escrita já sub judice do realismo, tem uma estrutura narrativa característica do Romantismo. Lopes de Almeida segue a velha fórmula do folhetim à la Dumas, de modo que o leitor vê-se diante de um sobejar de diálogos. O juramento romântico - vide Atala, de Chateaubriand -, déclancheur de toda a trama, também está lá, assim como os ardis da antagonista, de fato, a intrusa. Mas vamos ao enredo.
A Intrusa conta a história de Argemiro, advogado bem sucedido no Rio de Janeiro oitocentista, mais precisamente à época da Belle Époque, quando a capital, um arremedo de Paris, acreditava-se no auge da cultura cosmopolita. Viúvo, jovem e atraente, é cobiçado pelas mulheres; contudo, do casamento anterior com a filha dos Barões de Cerro Alegre, resultou a intratável e mimada filha Glória.
Em meio à má educação da filha - educada pela sogra, a baronesa de Cerro Alegre - e um escravo ludibriador, Argemiro decide contratar uma governanta, e o faz via anúncio de jornal. Ao fazê-lo Argemiro não só recebe críticas do amigos Caldas e Assunção, mas sobretudo da sogra ciumenta.
Argemiro, ainda empenhado em seu juramento, impõe a Alice Galba, única candidata a responder ao anúncio, à condição de jamais se encontrarem, de modo que quando Argemiro adentrava a casa, Alice se escondia. A situação perdura gerando conflitos, sobretudo com a sogra, cujo intrometimento confere a ela o protagonismo e a alcunha de intrusa, muito embora na obra o adjetivo seja atribuído a Alice Galba. Ocorre que a onipresença de Alice Galba invade a casa e o espírito de Argemiro, que tem seu quotidiano inteiramente alterado. O final! Aquele que todo leitor semântico deseja; felizes para sempre!
A presença de Alice reproduz ipsis litteris o papel da mulher não tão bela, mas recatada e do lar - fazendo uso, aqui, do jargão repetido à exaustão nos últimos dias. Isto posto, em A Intrusa não é evidente a escritora de verve feminista como quer boa parte da crítica; e só o digo porque há aqueles que a culpam de “reforçar a dualidade contraditória com que a tradição estigmatizou a mulher”, confirmando a ideologia dominante.
Antes de concluir, peço ao leitor semiótico que leia o início do capítulo XII: uma pérola que reproduz o embate entre romancista e personagem, algo à la Sterne e no rastro de Machado.
Por fim, dada a projeção de Júlia Lopes de Almeida em seu tempo, não é justo que lhe seja reservada perene coadjuvação. Que ganhe o merecido protagonismo!



Imagem: Almeida Júnior, Cena de família de Adolfo Augusto Pinto, 1891.
Publicado originalmente em http://z1portal.com.br/category/miscellanea/

segunda-feira, 14 de agosto de 2017

Opinião talhada na pedra


___ Acho qui num é bem assim. Eu já disse, o senhor divia pensá a respeito i quem sabe, mudá de opinião... Isso ia facilitá por demais.
___ Num mudo não. Aqui, tenho minhas ‘opiniães’; sei que elas tão certa. Num mudo não!

O diálogo acima, ouvi-o na fila de um caixa eletrônico. Adiantei-me para próximo da máquina, efetuei alguns pagamentos e, quando voltei-me, as duas personagens já haviam desaparecido na multidão. Ficaram as duas falas a me incomodar e ressoar no espírito.
Há muito consideram louvável mudar de opinião; não a dos outros, por meio da astúcia, como dizia Maquiavel, mas a sua própria. Perdoe-me, leitor, enredar dois monstros da literatura em um só parágrafo pode parecer pedante, mas não posso deixar de pensar em Fernando Pessoa que disse um dia que “convicções profundas só as têm as criaturas superficiais”. Questão de sinapses...
Nada contra a coerência, em absoluto, mas sentar-se sobre uma opinião, buscando ser coerente consigo próprio, é demonstrar um atavismo despropositado, algo como se as opiniões, uma vez internalizadas, adquirissem características biológicas. Ora, até mesmo a ciência vive de um desdizer constante; à medida que novas experiências são postas à prova, conclusões anteriores ou são reelaboradas ou banidas de vez. Portanto, por que não mudar de opinião, olhar para outras paisagens, respirar outros ares, pintar-se de outras cores?
Mas não, alguns insistem em gravar suas opiniões na pedra como se fossem testemunhos dignos de serem preservados; quando não ressuscitam provérbios já há muito esquecidos, na tentativa de enobrecer textos e contextos por si só irrelevantes. As estripulias recentes da canalha política trouxeram à luz o célebre verba volant, scripta manent (as palavras voam, os escritos permanecem), que parece ter sido dito por Caio Tito, no senado Romano.
Hoje, em dias de intolerância e opiniões renhidas, talvez o maior estorvo para um bom diálogo seja o pensamento tribal. Tratando-se de questões religiosas, políticas ou raciais, partidários dos diferentes grupos rejeitam em definitivo pessoas que pertençam a uma outra comunidade que não partilha das mesmas ideias. Falar ou dirigir-se a essas pessoas constitui-se então uma tarefa desafiadora. 
Os exemplos transbordam no senso comum: na matriz, há pouco mais de uma década, tivemos Uma verdade inconveniente, documentário de Al Gore, que tratava da crise global climática. A eloquência e a lógica irretocável de Al Gore não foram suficientes, embora tenham impactado muitos, a persuadir outros tantos. Explico-me: Al Gore era/ou é um político, ser que, por sua natureza, está fadado a/ou deve ser visto com reserva e muita desconfiança.
No mais, Al Gore gravitava em um país cindido por duas ideologias políticas. Nesses casos - aliás, vemos isso agora em nosso país -, a militância e os instintos partidários erguem barreiras intransponíveis contra as ideias e a propaganda do lado oposto. Ainda que a causa de Al Gore fosse legítima, ela foi relativizada por uma grande parcela da população americana. A prova de que, às vezes, as ideias são talhadas na pedra, é que a questão climática, ainda hoje, está na ordem do dia.
Aqui nos trópicos tivemos o caso Haddad, prefeito de São Paulo. Haddad colocou-se como objetivo implantar quilômetros de ciclovia na capital paulista. Mesmo que muitos desses quilômetros tenham sido desbravados em ruas sem qualquer condição de abrigar ciclovias ou estas, quando executadas, trouxessem de arrasto alguns bueiros em desnível, postes no meio do caminho e um ou outro buraco, muito foi feito e a ideia era - e é - ótima. A ideia de Haddad é uma mão na roda na qualidade de vida da poluída capital. No entanto, muita gente foi contra a ideia do prefeito em razão de ele pertence à parte contrária da canaille política (a partir de agora, leitor, toda vez que eu grafar canaille, trata-se de abjetos políticos).
Vê-se, com isso, o prejuízo causado pela impossibilidade - ou pela falta de vontade - de se colocar no lugar do outro, quiçá, mudar de opinião. Vivemos dias em que, apesar da disseminação do conhecimento, as pessoas mostram completo despreparo ou pura indisposição a ouvir. Resultado? A comunicação não acontece em razão de as opiniões terem sido talhadas na pedra, algo que nos rincões dizem de alguém “teimoso feito uma mula” ou ainda, um “cabeça dura”. 


 Publicado originalmente em http://z1portal.com.br/category/miscellanea/

sábado, 12 de agosto de 2017

A arte de ler

Você sabe ler? A obviedade da resposta, leitor, beira o ridículo, uma vez que você acaba de chegar ao fim do primeiro parágrafo. Porém, desconfie de si mesmo e dos outros, pois no âmbito da leitura nem tudo é o que parece. Os significantes - para uns e outros, vocábulos inócuos -, malgrado a compreensão da significação, não atestam capacidade de leitura. Deixemos os termos linguísticos de lado e vamos às historietas, pois elas sim revelam-se instrumentos de compreensão.
Há cerca de um milhão de anos, quando Prometeu roubou o fogo dos deuses e o deu aos homens, os hominídeos começaram a controlá-lo, provocando novo estímulo aos vínculos sociais. O calor e a luz produzidos pelo fogo uniam as pessoas ao cair da noite. Especialistas afirmam (sempre os especialistas) que dessas reuniões em volta do fogo surgiu uma nova interação social: a narração de histórias.
Esqueçamos as fogueiras e avancemos no tempo: lembro-me de uma manhã em que na casa dos meus pais, após o café, continuávamos à mesa falando amenidades. Em dado momento, tornei-me objeto da conversa. Por conseguinte, meus estudos vieram à baila; falei-lhes sobre meus planos. Um tio, não entendendo minha obsessão por livros e leituras, perguntou-me sem malícia: “Mas você já não sabe ler?”
Para meu tio, havia os que sabiam e os que não sabiam ler. Não lhe ocorria a existência de diferentes níveis de compreensão. Para ele, ao sair da escola já se sabia ler. Tudo bastante simples. Ingênuo, reproduziu algo que até mesmo muitos dos que lidam com a palavra amiúdam: o vício de subestimar as dificuldades que a leitura nos impõe, qual seja, a arte de entender o que foi lido.
De certo modo, leitor, esse texto brota em resposta ao anterior, no qual tratei de uma imprensa ávida à busca de leitores, forjando notícias à revelia sem qualquer comprometimento com a verdade. Para isso, vali-me de um título também sensacionalista em que, propositadamente, matei a Rainha da Inglaterra.
Dito isto, falo da arte da leitura. É preocupante como alguns leitores interpretam os textos sem ao menos os terem lido. Para alguns só o título basta, e é aí que tudo se complica. O título pode trazer em si uma ironia, uma crítica - quando não uma oposição -, cujo entendimento só se perfaz ao longo do texto; a ânsia da expressão, da opinião como grito preso na garganta, impede a total compreensão, donde a comum ocorrência de comentários periféricos ao texto que se distanciam da lógica e/ou tópos nele tratado.
Leitura requer paciência - talvez por isso vá na contramão da velocidade das ‘curtidas’ e ‘compartilhamentos’. É certo que um dos efeitos da leitura é a surpresa: a surpresa de defrontar ideias que não as suas, a surpresa de visualizar seus próprios subterfúgios, suas próprias manias e clichês, a surpresa de provocar indagações, de notar seus próprios recursos como leitor - muitas vezes imensos e inexplorados. Gostamos de contar novidades, mas...
Contudo, também é certo que muitos leitores chegam ao texto com suas opiniões talhadas na pedra, seu lugar demarcado no mundo, quiçá, fazendo da vida algo “cruel para si mesmo” - valendo-me de um dito de Artaud em contexto díspar. Não se pede aqui que o leitor concorde totalmente com o que foi dito num texto, uma vez que textos são espaços de provocação, questionamentos e discussões. Porém, ler e passar ao largo do texto pressupõe um estagnar-se, criar clichês, decair. Muitas vezes, as consequências do que chamo ‘falsa leitura’ emergem em forma de comentários; nestes, o leitor distante da lógica do texto revela certa obtusidade, valendo-se muitas vezes de termos agressivos na defesa de seu ponto de vista.
Ainda no âmbito das interpretações, muitos leitores rebelam-se, outros ignoram as linhas, adivinham as entrelinhas, indignam-se com o que acham que o autor ‘julgou’ dizer - e não com o que ele disse et ita in. Não é condenável tecer ilações sobre o autor ou sobre as causas do que se está dizendo. Contudo, nada disso pode ser indiferente ao texto e à sua lógica.
Em suma, leitor algum é obrigado a concordar com o texto que tem diante dos olhos, mas a lógica impõe (im)possibilidades de discordância. Para discordar ou destruir argumentos são necessários argumentos outros e alguma reflexão; e é justamente aí, nessa intersecção entre leitura e escrita, que as dificuldades avolumam-se face à maioria dos leitores, uma vez que a lógica do ensaio e/ou do texto exige que só se possa discordar nos seus próprios termos, ou seja, dentro do contexto ali exposto. Daí muitos optarem pelo comentário curto e grosso à la twitter.
Ler vai além da simples decodificação dos significantes, do conhecimento de seus significados. Ler implica deter-se sobre a lógica do texto, abrir-se à novas ideias seja para rebatê-las, seja para concordar com elas. Ler pressupõe presença de espírito. Por fim, ler exige também uma nesga de bom humor.


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