Revista Philomatica

sexta-feira, 18 de agosto de 2017

Spleen

À procura do carro das ideias, corro os olhos de cima abaixo pelos sites de notícia e o que leio, felizmente, obriga-me a intersecções com a literatura. Graças à mimeses suportamos o real. Não à toa, a memória literária, por meio de uma série de sinapses, às vezes confusas, nos traz lembranças e entrechos de poemas e narrativas.
À primeira delas, leitor, credito o título destas garatujas. Tente você ler as notícias do dia; se não for resistente o bastante, advirto-o, certamente padecerá de um pessimismo exacerbado que remete ao mal do século, razão da existência de algumas obras-primas do século XIX. Guardadas as devidas proporções entre Musset, Byron, Goethe e mesmo os nossos Álvares de Azevedo e Casimiro de Abreu, vem-me Fernanda Young, que hoje disse que só produziu o que produziu graças à depressão, eis aí um exemplo da extensão do tédio que se instala nesta tupiniquim republiqueta.
Não há nada, parece-me, que nos anime a seguir em frente. Esperamos por algo, e nada acontece! As sinapses me levam a Emma Bovary. Lá pelas tantas, no capítulo IX, Flaubert descreve o estado de alma de sua célebre personagem: “Como os marinheiros em perigo, ela lançava os olhos desesperados para a solidão da vida, procurando ao longe alguma vela branca nas brumas do horizonte. Não sabia o que seria, que ventos trariam esse acontecimento para si, para onde a levaria, se viria carregado de angústias ou de felicidade. Mas, cada manhã ao despertar, ela esperava o dia, ouvindo todos os ruídos, erguendo-se sobressaltada; e espantava-se por nada suceder. Ao pôr-do-sol ficava mais triste, desejando que o dia seguinte chegasse logo.”
Flaubert disse um dia ser Mme Bovary. E nós, cidadãos espezinhados pela canaille, somos todos Emma Bovary? O que faremos, entediados como estamos diante de um país que não caminha, mas vive a sapatear como se esforçasse para não ser tragado pela areia movediça? Espoliados, prostituídos e massacrados por uma nação vampiresca, nos suga o sangue e as esperanças... o que ela quer mais, matar-nos todos?
Esperamos acontecimentos e eles, quando vêm, vêm carregados de angústias. Os ruídos são produzidos pelas mesmas figuras, pelas mesmas quadrilhas e seus líderes, deslocando-se pelo país como se salvadores da pátrias fossem, tentando a todo custo apagar de nossas memórias o passado recente! Os salvadores da pátria, todos, queremos mortos! Por que insistem em vilipendiar nossos espíritos? Despertamos, esperamos por um novo dia, e nada! Só nos resta tristeza ao contemplar o pôr-do-sol à espera do dia seguinte.
Reflito um instante e as sinapses me trazem à memória um dos nossos: Nelson Rodrigues, sim, aquele da célebre série de crônicas A Vida como ela é e dos não menos instigantes Vestido de Noiva, O Beijo no Asfalto e A Falecida. Lembro-me de Sarah Lopes na Falecida. Tudo, as peças, as crônicas e Nelson! Tudo foi coberto pela poeira do tempo! Mas ventou tão pouco, penso, por que não há um aluno sequer que se lembre disso? Por que estamos tão desmemoriados? Por que somos embotados diariamente por um lixo que teimam em chamar cultura, em que subcelebridades cantam com o derrière e pseudojornalistas produzem reportagens sobre a importância desse ícones de não sei do quê e nem sei para quem? Nelson insiste batendo à porta da memória, ouço o ecoar de sua fala: “No Brasil, quem não é canalha na véspera é canalha no dia seguinte.”
Está bem, incorremos em erro todas as vezes em que generalizamos, mas eis um fato: tratando-se de políticos, não há quem possa desdizer Nelson Rodrigues!
Penso o que penso e lá me vêm as sinapses, agora, com o Zweig a me provocar: “Nada é mais típico do brasileiro do que o fato de ser um homem sem história. Todos os valores civis foram importados pelo mar.” Zeus! Muitos dizem que estamos a fazer história; atraso-me a pensar no modo como a escrevemos: buscamos a tornure da frase, caprichamos nas descrições, criamos argumentos, às vezes trabalhamos a síntese, somos afeitos à análise do discurso (escrevemos teses sobre o discurso implícito nas contas luz), mas e os valores civis? Devemos insistir em refutá-los em prol de um discurso ressentido que eleva os traços tupiniquins?
O que fazer senão padecer de um mal do século todo nosso, longe dos lugares sombrios, úmidos e frios, mas ao sol à beira-mar, sentados na areia branca que toca nossos pés, contemplando o grande disco a submergir nas águas?
Eis que as sinapses me trazem Carlota Joaquina: “Desta terra, não quero levar nem o pó!”

Agora só me resta arrancar os sapatos e atirá-los ao mar!

Publicado originalmente em http://z1portal.com.br/category/miscellanea/

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