Revista Philomatica

sábado, 16 de setembro de 2017

Queermuseu: alarido por uma omelete


Vivemos tempos imperativos em que os discursos devem ser pautados pela diferença. Contudo, há diferenças e diferenças, e, parece-me, as diferenças de uns são mais robustas que as de outros. Esquerda e direita digladiam-se ao tentar impor suas opiniões. Aquela história de que cada um deve ocupar o seu quadrado é deixada de lado, e a tal ponto que uns e outros só consideram um quadrado quando este lhe convém, caso contrário, o quadrado torna-se esfera. E é justamente aí que as ideias não se afinam. Um quadrado nasceu para ser quadrado, dizem, por que de um momento para outro decide ser esfera? Leitor, quadrados reproduzem quadradinhos, jamais esferas, dizem outros. Pensando assim, muitos decidem pelo extermínio de toda quadroesfera que teima banhar-se em purpurina!
Tolerância e intolerância são seletivas! Por isso, creio, nada mais oportuno que relembrar o aforismo apócrifo atribuído a Voltaire, algo que pode ser a pá de cal para enterrar de vez qualquer contradito àquilo que não defendo. Trata-se da célebre frase “não estou de acordo com o que você diz, mas lutarei até o fim para que você tenha o direito de dizê-lo”. Creditada a Voltaire, foi cunhada por Evelyn Beatrice Hall, em 1906, na sua obra The Friends of Voltaire, muito provavelmente por ter ele defendido Helvétius, ainda que tenha deplorado De l’esprit.
Veja, Voltaire defendeu o direito de Helvétius expressar-se, ainda que não estivesse inteiramente de acordo com seu pensamento empirista-materialista. Lembrei-me disto depois da polêmica em torno da exposição Queermuseu, cancelada pelo Banco Santander, instituição que ora cito sem ganhar um mísero caraminguá!
Houve exageros de ambas as partes: um jornal sair com a manchete de que a intolerância voltou a assombrar a arte pareceu-me um exagero. Afinal, penso, Voltaire teria repetido o que disse à época em relação à polêmica em torno da obra de Helvétius: “Que alarido por causa de uma omelete!” Não tivesse um grupelho lançado mão de armadura e espada, e saído em cruzada contra o que afirmam atentar à moral e aos bons costumes, só uma meia dúzia de gatos pingados é que iriam até ao Santander (de novo - e a contragosto!) conferir traços rudimentares e garatujas borradas sobre imagens artisticamente ainda infantilizadas.
A gritaria fica mais incompreensível se tomarmos exemplos anteriores. Relembrem o ocorrido com Flaubert e Laurent Pichat, ou até mesmo o próprio Baudelaire, face ao procurador Pinard, que também clamou à decência pública, à moral e aos bons costumes e etc etc... E o que Pinard ganhou com isso? Nada! Já Flaubert e Baudelaire asseguraram cadeira no Olimpo literário. Mas atenção! Não exageremos! Não estou a comparar Madame Bovary e As Flores do Mal com os desenhinhos de Bia Leite e o ménage à trois no papel de pão gozado de Adriana Varejão. Mas gostei do JC Deusa Shiva, de Fernando Baril!
Não entendi até agora o porquê da gritaria toda; os contrários acabaram por avalizar o que repudiavam, garantindo-lhe visibilidade. Ora, a exposição não generaliza nada, não impõe nada, não induz a nada, até mesmo porque se alguma reflexão poderia ser tirada dali, após todo esse bate-boca, nada sobrou além de uma intolerância polarizada. A vida é assim como ela é: Auerbach já dizia que “o histórico contém em cada indivíduo uma pletora de motivos contraditórios”. Povos, por mais identificáveis que possam parecer, são ambíguos, vacilantes, plurais, diferentes.
Por fim, creio que uns e outros tentam nos impor uma certa univocidade, e não somos assim! Somos feitos de camadas, slogans diferentes. Nós, brasileiros, só somos unívocos quando nos dispomos a uma grosseira simplificação, numa Copa do Mundo, por exemplo, chorando uma derrota de 7 a 1. Há univocidade também na guerra. Toda essa exasperação, para quê? É guerra que queremos? Sequer avaliamos a qualidade dos nossos canhões e, ademais, jamais empunharíamos uma espingarda de dois canos como a do filósofo de Ferney.



Imagem: Casa Vogue, de Cibele Bastos; foto Santander Cultural/Divulgação. 
Publicado originalmente em http://z1portal.com.br/category/miscellanea/

segunda-feira, 11 de setembro de 2017

Especialistas e malandros literários


Eu bem que poderia, mas não vou mencionar o célebre caso de ejaculação pública que monopolizou o noticiário, notadamente depois de o juiz soltar o estuprador, num evidente caso de leitura positivista da lei. Prefiro a crônica machadiana de 1861, que, à época, já dava conta dos pífios discursos no senado. Vá lá, não é de hoje que em matéria de mediocridade atingimos a profundeza dos mares, o que explica muito da tristeza que sentimos. Pois bem, Machado referia-se aos “discursos notáveis” ejaculados pelo senador Penna, donde o pedigree da casta política.
Também não faço qualquer referência à cerimônia conduzida pela ministra do Supremo Cármen Lúcia, em que apresenta a justiça em números. Os números, pautados por certa transparência - e aí, acho, eis um pequeno inconveniente para a justiça -, não deixam mentir e revelam que míseros 30% - ou quase - dos processos que chegam à justiça são efetivamente julgados. Eis a razão, acredito, de certo matiz de nossa sociedade, pautada pela impunidade. Sou indiferente, ainda, à fala territorialista do ministro Luiz Fux, aplaudido por uma plateia corporativista ao ressaltar que se deve proteger a justiça contra as críticas recentes, nas quais os números surgem como resultado da ineficiência jurídica.
Não falo de nada disso. Decidi-me, pelo contrário, falar dos especialistas da internet, sobretudo porque o episódio ejaculatório despertou ânimos e todos opinaram com conhecimento de causa. Falar sobre tudo como se tivesse ampla sabedoria do todo não é prática recente. Há muito que não só a retórica alimenta-se do pseudoconhecimento, mas também professores, palestrantes, escritores e especialistas que têm opinião formada sobre tudo.  
A obra de Pierre Bayard, publicada há mais de uma década, coloca luz sobre essa prática corrente e surge como um pequeno manual de malandragem. Tratando-se da leitura, ainda que vivêssemos um milênio, dificilmente leríamos todos os livros publicados, sobretudo porque, dizem os especialistas, por volta de três mil deles aparecem todos os dias.
O leitor contumaz conhece o território que adentro: trata-se daquele em que, na melhor das ocasiões, sofremos uma censura silenciosa. Para isso, basta nos deslocarmos entre as prateleiras de uma biblioteca. A despeito da cobrança social (Nossa, você não leu Dostoievski??!!!), esse sentimentozinho que nos recrimina e nos compele a pensar que devemos ler tudo, sugere ainda que devemos nos envergonhar por não ter lido este ou aquele autor.
Mentir, nesses casos é uma das alternativas, mas isto pode nos trazer complicações; tudo depende de nosso interlocutor, que, vá lá, pode ser alguém versado no autor em questão.  Há ainda a possibilidade de conhecer a obra por vias indiretas: resumos, crítica, amigos, a posição que o livro ocupa em catálogos, comentários de especialistas na internet, a Wikipédia...
Podemos ainda seguir à risca o que disse Schopenhauer: “Para ler o bom, uma condição é não ler o ruim: porque a vida é curta, e o tempo e a energia, escassos.” Donde, pressupomos que é imperativo certa seleção e recorte na grande biblioteca, caso queiramos constituir uma coletânea pessoal.
Como falar dos livros que não lemos, do francês que mencionei logo acima, maliciosamente nos fornece alguns truques de sobrevivência no mundo dos especialistas, além de algumas formas de apreciar um livro. Os afeitos à malandragem, bem, estes não vão extrair dali nada mais que um incentivo à fraude intelectual, tais os alunos experts em control C-control V.  
Bayard, especialista em literatura francesa, fornece algumas técnicas para o bom malandro e também ao especialista em falar sobre livros que nunca leu: 1) não tenha vergonha: quem não tem lá certa lacuna de conhecimento em sua formação? Não se envergonhe se o sujeito ao seu lado começar a falar de uma obra que você não conhece; isso não quer dizer que ele seja mais especialista que você; 2) imponha suas opiniões: afinal, opiniões são subjetivas, arbitrárias. Fale bem ou fale mal de um livro, mas fale com convicção! Ninguém há de desconfiar de você; 3) invente livros: há coisa mais falível que a memória? Quem já não foi traído por ela? Você pode falar com tranquilidade sobre personagens, criar episódios, reproduzir comentários de críticos sobre a obra e até mesmo falar de autores que não existem. Caso dê de cara com um especialista, diga que sua memória o confundiu; 4) fale de si mesmo: fale do significado que o livro ou o autor tem para você, mesmo que não os tenha lido. Oscar Wilde disse que a crítica literária é uma forma de biografia, leve isto a sério!
Por fim, tranquilize-se: a exigência de ler todos os livros da grande biblioteca é irreal. As quase-leituras, para Bayard, são tão produtivas quanto uma leitura total. Afinal, que cabeça a nossa! Ler um livro em sua completude é algo impossível, uma vez que somos traídos por nossas limitações; não por outra razão os especialistas afirmam que o esquecimento entra em ação logo após a leitura de uma página, de modo que ao ler a seguinte, já teremos esquecido a anterior. Com o tempo, embaralhamos obras, autores, personagens e episódios, isto quando não os esquecemos totalmente! Assim, falamos não deste ou daquele livro, mas de uma lembrança imprecisa, imperfeita e tortuosa que guardamos das obras. Portanto, leitor, tranquilize-se!
Eu bem que poderia, mas também não vou mencionar a célebre fortuna encontrada no apartamento do Geddel, o escroto bandido republicano!


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sexta-feira, 1 de setembro de 2017

Produto: prostitutas made in Brazil

Lá pelos idos de 1893 não tínhamos as modernidades tecnológicas que hoje nos sufocam com imagens exuberantes de lugares longínquos, que nos acham até mesmo no mais recôndito dos trous aux rats, que nos fazem clientes vinte e quatro horas por dia...
Basta um clique e lá estamos nós a conferir mercadorias a quilômetros de distância, regateando preços, avaliando a qualidade, apreciando a estética do produto. Sabemos que boa parte da quinquilharia vendida no Brasil vem da China, via Paraguai, e é produzida por mão de obra escrava, mas, ainda assim, não nos furtamos de botar as mãos em um pacote de chave-de-fendas ching ling; é só dar um pulinho ali, na esquina. A despeito da qualidade e de quem as produziu, lá vamos nós! E voltamos, é claro, à mesma esquina, depois de apertar o primeiro parafuso que, resistente, retorceu as chaves. Através de historietas como esta, repetidas infinitamente, é que se constroem os clichês.
Em 1893 ainda não tínhamos um produto nacional, como hoje o tem os chineses - aos milhares; só tínhamos florestas, árvores e mais árvores, papagaios e mais papagaios... e, vá lá, alguma cana e algum café. Muitos dos viajantes europeus que por aqui aportavam ressentiam a falta de um verniz cultural, tal era a modorra em que se vivia na capital; e falo de 1893! Mas não se assuste, leitor! Saia das grandes capitais, pegue a estrada e pare sorrateiramente em uma pequena cidade do interior de um estado brasileiro qualquer. Procure uma livraria, um teatro, um cinema, um café; sinto dizer, mas estará de volta em 1893!
Pois bem, em 1893, Machado de Assis publica uma crônica nas páginas da Gazeta de Notícias em que replica o dito de Sarah Bernhardt desmentindo uma folha argentina que publicara suas opiniões sobre o Brasil, país que deixara há pouco. Sarah, teria dito então: Ce pays féerique... (este país de contos de fadas). Machado não titubeia, ressente-se com a opinião da atriz, diz sentir-se afogar pelo banal e o vulgar, afirma que Sarah está a reproduzir a “velha chapa” de todo viajante que por aqui passa, e, hiperbólico, afirma que ela lhe arrancou sem piedade a ilusão do outono.
O ressentimento de Machado vem do fato de que todos os viajantes limitavam-se a comentar a exuberância da natureza, permanecendo indiferentes ao homem e suas obras. E aqui, dou-lhe a palavra: “Quando me louvam a casaca, louvam-me antes a mim que ao alfaiate. Ao menos, é o sentimento com que fico; a casaca é minha; se não a fiz, mandei fazê-la. Mas eu não fiz, nem mandei fazer o céu e as montanhas, as matas e os rios. Já os achei prontos, e não vejo que sejam admiráveis; mas há outras coisas que ver.”
Ah, Machado, se soubesses o que veem hoje; estou certo de que acrescentarias um bom parágrafo àquelas garatujas!!!
A notícia é velha, mas na última semana replicaram-na exaustivamente nas redes sociais. Trata-se de uma reportagem sobre um levantamento a respeito dos produtos que, na cultura popular, são estereotipicamente associados a certos países. Algo como pensarmos no Japão e vermos uma porção de produtos eletrônicos dançando em frente aos olhos, ou ainda, falarmos da Turquia e sentirmos uma vontade irresistível de pegar carona no tapete de Aladim, cruzarmos os ares, provarmos da liberdade plena!
Isto feito, produziram mapas de todos os continentes associados às buscas que os internautas fazem na rede, os produtos que procuram, seus interesses e curiosidades sobre este ou aquele país, e, adivinhem...
Sinto dizer, Machado, nada mudou! Quando procuram pelo Brasil na rede não estão em busca de sua produção cultural e/ou intelectual, mas da cor local - ainda. Basta olhar o mapa para vermos que há bem poucos lugares no mundo em que o produto local é a prostituta. Isto não é exclusividade nossa, é claro, mas, no caso, o produto prostituta associado à produção brasileira choca, sobretudo a nós, brasileiros, por mais acostumados que estejamos às estripulias do agronegócio e ao aço e o ferro que sangram no coração das antigas florestas. Ao dar de olhos com o mapa, confesso, por mais que chame de canaille a corja que habita o pináculo do poder em Brasília e me refira à Assembleia e ao Senado como prostíbulos, ver a palavra “Brasil” substituída por “Prostitute” foi lá um soco no estômago.
A situação em que nos encontramos não nos anima a ressentimentos, como ocorreu com Machado, principalmente porque logo ali ao lado jaz o Paraguai como lugar procurado para se viver. Num certo revanchismo, penso, talvez sejam foragidos da lei em seus países à procura de abrigo, mas isto só não me deixa mais otimista.
O fato é que compram a cerveja na Argentina e vêm ao Brasil bebê-la em companhia das nossas prostitutas.
Penso também nas escolas, na falta delas!
Olho para Brasília e não me animo! De onde me virá o socorro?

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Adolescentes, bárbaros e perversos

Às vezes, escrevo durante as horas mortas. Desta vez, porém, a caneta não estava à mão e o frio me incomodava um pouco, de modo que, respeitosamente, afastei o gato para o lado, virei-me e pus-me a pensar no que lera durante o dia.
De pronto, me veio ao espírito o tal do respeito e, num átimo, lembrei-me dos gregos e sua indelével mitologia. Olhei para o gato e disse: “Bem, Afrodite remete-nos ao amor, Apolo à beleza, Atena e Ares à guerra, Ártemis à caça...” E o respeito? - perguntei-lhe. Sonolento, ele se virou para o lado e continuou a dormir. Eu, desperto, sabia a resposta.
De fato, segundo a mitologia, herdamos um pouco das paixões e ódios dos deuses, não por outra razão os mitos nos auxiliam na compreensão das relações humanas e, por que não, são a chave para que melhor entendamos o mundo a partir desse nosso ponto de vista analítico afeito a esmiuçar tudo o que encontra? As peripécias dos deuses e semideuses, suas batalhas heroicas e seus enfrentamentos, revelam muito dos meandros do espírito humano. De certo modo, vá lá, somos heróis e deuses de nossa própria história. Mas e o respeito? Bem, não há deus que o represente.
O único homem conhecido por sua respeitabilidade foi Euphemus, um dos filhos de Poseidon, que, acreditem, tal como o Cristo, tinha o poder de andar sobre as águas e transmitia bons exemplos àqueles que transitavam à sua volta. Habitante da Fócida, região onde jaz o  Parnassus, Euphemus se junta aos Argonautas e torna-se timoneiro do navio. Ao passarem pelo Mediterrâneo, Triton quis presenteá-los. Os Argonautas receberam ouro e prata, mas, chegada a vez de Euphemus, não sobrou nada além de um torrão de terra, que Euphemus aceitou. Paro a lenda por aqui, você, leitor, se quiser saber o final da história que vá atrás!
Agora é preciso que eu ligue os pontos, uma vez que meu gato caiu em sono profundo, certo do respeito que recebe, deixando-nos, você e eu, a entabularmos essa boa prosa.
Pois bem, o fato em si é o caso da professora Marcia Friggi, de Santa Catarina, agredida verbal e fisicamente por um aluno de 15 anos em sala de aula. Veja, leitor, o torrão que coube a Marcia. Li diferentes matérias a respeito e, confesso, até mesmo a imprensa, que hora ou outra produz reportagens sobre o descanso em que anda a educação, foi unânime ao tratar o caso da Sra. Friggi.
A agressão, é preciso registrar, só veio a público porque a Sra. Friggi relatou-a em sua rede social. Isto posto, os compartilhamentos e comentários foram exponenciais. Ato contínuo, jornais e revistas trataram do assunto. Todas, sem qualquer aprofundamento da questão, limitaram-se ao relato do episódio em escala menor àquela que seria dispensada ao jogador que perde ou faz o gol em momento decisivo.
Ou seja, a Sra. Friggi, por seus anos de dedicação ao magistério só ganhou o mero e dolorido torrão que lhe fora dado por seu aluno! E ela que decida o que fazer com ele! Euphemus jogou-o ao mar, razão pela qual é citado como o ancestral de Battus, fundador de Cirene. O torrão da Sra. Friggi, lamento dizer, úmido, vai se misturar à lama quotidiana que verte em nosso país e será dignamente esquecido. Sequer a imprensa quis saber de que material ele é feito. O site da UOL, sabidamente ávido em criar títulos sensacionalistas, trouxe o seguinte: “Professora de SC diz que foi agredida por aluno de 15 anos” (o grifo é meu). Hoje, porém, como dedica-se à venda de produtos e ideias, comentou o linchamento virtual imposto a Sra. Friggi.
Ora, o pessoal da análise do discurso, que não é bobo nem nada, sabe do que falo. A partir do momento que coloco esse “diz”, materializo a dúvida na notícia. A foto em que a Professora aparece com o supercílio cortado e o sangue escorrendo rosto abaixo pode muito bem ter sido resultado de um encontro acidental com uma porta qualquer, de modo que a manchete da UOL relativiza o óbvio. Vivemos a época dos fatos alternativos, da pós-verdade, por isso, mesmo diante do fato verídico, teima-se em instalar a dúvida em prol de uma ideologia sub-reptícia, ignorando o fato de que a imprensa deve veicular notícias, fatos, e analisá-los.
Em tempos de polarizações, a Sra. Friggi foi obrigada a tragar boa dose de cicuta. Explico-me: não bastasse a agressão verbal, física e psicológica, a Sra. Friggi foi impelida a responder por seu posicionamento político. Parece-me que seu depoimento público, no qual diz sentir-se dilacerada com o ocorrido, foi muito cru, muito verdadeiro, careceu de verniz literário, enfim, um tom folhetinesco, dramático. Não, leitor, não lanço mão da ironia. É o que penso. Fato é que a Sra. Friggi não chegou a enternecer a massa. Parte dela, cansada ou obtusa - não sei – fez uso de suas próprias palavras em publicações anteriores para condená-la, como se tivesse ela criado o monstro que a atacou.
No mais, visto que não há deus ou semideus que represente o respeito, falemos ainda do torrão oferecido a Sra. Friggi, que, lamentavelmente, em estado de mutação, dilui-se com a lama da canaille, que é indiferente à educação; a lama da imprensa, quotidianamente parcial em suas publicações; a lama produzida pela sociedade, que acha lógico um adolescente conduzir um carro e eleger bandidos, mas não responder por seus atos; a lama gerada pelos pais, que acham “natural” responsabilizar a escola pela educação de seus filhos, com menosprezo do conhecimento  e la nave va. Não sou expertise em educação, mas acho que a equação que resultou nas pedradas lançadas na Sra. Friggi, por uma sociedade e um adolescente bárbaro e perverso, começa por aí.

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Sintropia literária


Stendhal confessou haver escrito um de seus livros para cerca de cem leitores, modéstia que Machado ironiza e, desta feita, não deixa por menos: arrisca cinco leitores para as célebres memórias post-mortem de Brás Cubas. Eu, que não sou presunçoso nem nada, e não vislumbro panteão outro que não seja a campa, dispenso likes em proveito de um mísero leitor. Justamente por isso dou-me o direito, a partir de agora, de dizer mediocridades tantas quantas as que tenho lido.

Vá lá! À guisa de exemplo tomo o mundinho que circunda à minha volta, que hora ou outra se mete a falar de literatura sob a égide cristã, preocupado em separar o joio do trigo com base na leitura de um ou dois papas multiculturalistas. Leio o que leio e me obrigo à repetição, até mesmo fazendo uso de certo parafraseio!
Putain! Os expertises do multiculturalismo repetem o leitor semântico ao tecer elogios e críticas e mais críticas, na grande maioria das vezes (perdoem-me, o pleonasmo é necessário!), sem terem se dado ao trabalho de ler as obras. Aliás, a moda perdura já há algum tempo nos estudos literários, em que a ênfase recai sobre a teoria, com menosprezo da ficção.

E você, leitor, não se adiante! Não estou a dizer que não se deve ler teoria, militar em prol da literatura dos países colonizados, da literatura de gênero e afins. Penso que devemos praticar a sintropia literária (o termo é meu, registre-se, que apropriei de Ernest Gotsch, versado em agricultura!). Isto posto, vejo que muitos multiculturalistas insistem em praticar a entropia, apostando na terra arrasada!

A literatura como meio de denúncia colonialista é válida e deve ser praticada, contudo, o cultivo é mais produtivo quando se opta pela diversidade de espécies. Gotsch prova isso na agricultura, por que não copiarmos ideia tão produtiva e transplantarmo-la para a esfera literária? Por que, obrigatoriamente, tenho que exterminar o cânone em proveito de uma pseudo-originalidade, sabidamente inexistente? A originalidade vem do estranhamento que a obra provoca, às vezes, pelo simples fato de jamais podermos assimilá-la por completo, já dizia Bloom. Então, porque “fundar” um idealismo em busca de uma justiça social e de uma harmonia que sabemos ser utópica? Não digo que a harmonia social não deva existir e que não devemos sair em busca de uma maior compreensão entre povos e raças; insisto é na importância do pluralismo de ideias, ainda que muitas delas permaneçam para serem refutadas, usadas como contrapontos, fortalecendo as que crescem entre as hortaliças, à sombra das leiras de grandes árvores.

Ora, fala-se em “alta literatura”, condenando-a; ao fazê-lo, esquecem-se os ressentidos de que até mesmo a literatura forte, o cânone, só é o que é porque sofreu o processo aflitivo da influência. A grande literatura reescreve velhas obras – sempre – sem se esquecer de abrir espaço para o eu, de modo que materializa novos sofrimentos e angústias.

Hoje, surgem desmemoriados a torto e a direito: esquecem-se de que a memória, ainda que involuntária é uma arte. Por que insistem então em apagar o pouco que sobrou? É europeu, é homem, é branco? Joga fora no lixo! Pratiquemos a sintropia literária, meus caros! Não se esqueçam de que o estético é mais uma preocupação individual que de sociedade.

Um romance é um extrato das perturbações humanas que ganha a página em branco, portanto, ali estão alegrias e medos, sobretudo o medo da morte. Ora, eis aí um de nossos medos que adentram a memória comum e que, na literatura, busca status canônico. Esquecer o valor estético é perigoso! Ao esquecê-lo não reconhecemos a arte, não a experimentamos e, ao não degustá-la, atrofiamos nossas sensações e percepções!

Ave Homero! Ave Virgílio! Ave Dante! Ave Machado!


 


 


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Palhaços inglórios

Isto ocorreu há algum tempo e lembro-me de à época não ter entendido muito bem. Explico-me: tratava-se de uma entrevista com a professora e filósofa Marilena Chauí. Nela, Chauí, se bem me lembro, negou-se a comentar a epopeia do Mensalão. Uma das razões que deu ao jornalista fora o fato de não ler jornais já havia uns seis meses. Espantei-me com tal afirmação e perguntei-me como uma professora, cujas opiniões soam referências, poderia passar meio ano ao largo das discussões trazidas à luz pela imprensa, esse fiat humano, segundo Machado.
Agora, bem mais recentemente, leio Umberto Eco, meu Padre Santo, afirmar que as redes sociais deram direito à palavra a uma legião de imbecis que antes falavam em um bar, depois de uma boa taça de vinho, sem prejudicar a coletividade. Hoje, contudo, essa legião fala às desbragadas, tem náuseas e vômitos virtuais. Devemos sempre prever e respeitar o resultado de um pensamento democrático, mas, às vezes, mesmo sabendo que normalmente o vômito é inofensivo, são flagrantes os sinais de que advém de uma doença mais grave. Dentre estas doenças, a medicina aponta a obstrução intestinal e, parece-me, reside aí o fato de muita porcaria ter adentrado as linhas do jornais e sites de notícias, relativizando aspirações e inteligências.
Na lida com periódicos oitocentistas, torna-me quase impossível o cotejo com os jornais contemporâneos. Malgrado o desenvolvimento tipográfico e o fato de o jornal impresso estar com seus dias contados, não se pode deixar de notar o aprofundamento das reflexões desenvolvidas nos primeiros. É certo que a areia na ampulheta do tempo era mais grossa, havia sempre alguma dilação que afastava a brevidade e a rapidez. Hoje, é tudo muito rápido, não há digestão, o espírito não absorve as ideias e o que se tem é a dita obstrução intestinal, uma vez que num clic das bocas parece fruir o que deveria verter em direção aos países baixos - se é que me entendem.
Ontem, li um texto sobre racismo vegano escrito por uma pan-africanista de orientação garveysta em diáspora, que se autodenomina propagadora de ideias. Até aí, nada contra. Somos todos propagadores de ideias. Ocorre que ao longo de vários parágrafos tem-se o mais perfeito exemplo do resultado advindo pós uma obstrução intestinal: a autora não diz quem é, de onde veio e sequer para onde está pensando em ir em meio a toda aquela verborragia. Cheguei à conclusão de que não sabe o que são ideias. Palavras em sequência não configuram ideias!
Ocorre-me também, neste instante, que, sob efeitos alucinógenos, é bem possível que todos misturemos demagogia e asneiras à fumaça que emana ao horizonte, muitas vezes deitando-as sobre a folha em branco. O fato é que o texto prima por seu teor racista; trocadas as raças, teríamos uma peça passível de processo judicial por propagação racista. Dito isto, a cereja do bolo são os comentários elogiosos, inclusive de pares que pregam a tolerância e a igualdade, num caso óbvio de obstrução intestinal; prova, mais uma vez, de que a ideologia emburrece.
Mas deixemos de lado a morbidez que paira sobre a imprensa e as “ideias”, afinal, ontem, em Brasília, armou-se novamente o circo e os palhaços subiram ao picadeiro. Acho que já disse aqui que em relação à coisa pública, fazemos tudo mais ou menos; a excelência circunscreve-se aos impostos, que nos são extorquidos a cada respiro. Pois relativizo o que disse: ontem toda a corja corrupta da Assembleia ganhou a área central do circo e ali protagonizou mais um show exasperante, porém, excelente em canalhice.
Palavras de ordem, corruptos achincalhando corruptos, corruptos salvando corruptos, hipócritas clamando contra a hipocrisia, bandidos advogando em favor de bandidos, quadrilhas condenando quadrilhas, negociatas à vista de todos, compra e venda de votos, bandeiras particulares hasteadas, bandeiras públicas recolhidas e jogadas nas lixeiras da república, empurrões, apelo aos evangelistas na hora de proferir um voto cujo preço fora previamente barganhado à revelia dos interesses públicos, deputado comendo pedaço de plástico de um pixuleco, enfim, nem como palhaços conseguiram divertir a plateia, mas mostram-se excelentes no que são: canalhas! Tudo já estava combinado! A nação inteira sabia o fim do espetáculo, não houve surpresa. Portanto, o que TEMER do futuro se conhecemos o script desde que despacharam o Imperador?
Hoje entendo Chauí e admiro muito mais Eco, meu Padre Santo! O fato é que se tratando da política torva e sanhuda, não há dúvidas! Não há mocinhos! Proibiram-nos escrever o mais chinfrim dos folhetins! Só temos bandidos! Na nova narrativa, temos que nos ver com a eterna univocidade das personagens, alternando os bandidos no picadeiro como se estivéssemos a redigir os próximos passos de um enredo mafioso. Isto, se quisermos alguma verossimilhança possível, afinal, esta é a índole dos nossos políticos palhaços inglórios. 

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