Revista Philomatica

sexta-feira, 1 de setembro de 2017

Adolescentes, bárbaros e perversos

Às vezes, escrevo durante as horas mortas. Desta vez, porém, a caneta não estava à mão e o frio me incomodava um pouco, de modo que, respeitosamente, afastei o gato para o lado, virei-me e pus-me a pensar no que lera durante o dia.
De pronto, me veio ao espírito o tal do respeito e, num átimo, lembrei-me dos gregos e sua indelével mitologia. Olhei para o gato e disse: “Bem, Afrodite remete-nos ao amor, Apolo à beleza, Atena e Ares à guerra, Ártemis à caça...” E o respeito? - perguntei-lhe. Sonolento, ele se virou para o lado e continuou a dormir. Eu, desperto, sabia a resposta.
De fato, segundo a mitologia, herdamos um pouco das paixões e ódios dos deuses, não por outra razão os mitos nos auxiliam na compreensão das relações humanas e, por que não, são a chave para que melhor entendamos o mundo a partir desse nosso ponto de vista analítico afeito a esmiuçar tudo o que encontra? As peripécias dos deuses e semideuses, suas batalhas heroicas e seus enfrentamentos, revelam muito dos meandros do espírito humano. De certo modo, vá lá, somos heróis e deuses de nossa própria história. Mas e o respeito? Bem, não há deus que o represente.
O único homem conhecido por sua respeitabilidade foi Euphemus, um dos filhos de Poseidon, que, acreditem, tal como o Cristo, tinha o poder de andar sobre as águas e transmitia bons exemplos àqueles que transitavam à sua volta. Habitante da Fócida, região onde jaz o  Parnassus, Euphemus se junta aos Argonautas e torna-se timoneiro do navio. Ao passarem pelo Mediterrâneo, Triton quis presenteá-los. Os Argonautas receberam ouro e prata, mas, chegada a vez de Euphemus, não sobrou nada além de um torrão de terra, que Euphemus aceitou. Paro a lenda por aqui, você, leitor, se quiser saber o final da história que vá atrás!
Agora é preciso que eu ligue os pontos, uma vez que meu gato caiu em sono profundo, certo do respeito que recebe, deixando-nos, você e eu, a entabularmos essa boa prosa.
Pois bem, o fato em si é o caso da professora Marcia Friggi, de Santa Catarina, agredida verbal e fisicamente por um aluno de 15 anos em sala de aula. Veja, leitor, o torrão que coube a Marcia. Li diferentes matérias a respeito e, confesso, até mesmo a imprensa, que hora ou outra produz reportagens sobre o descanso em que anda a educação, foi unânime ao tratar o caso da Sra. Friggi.
A agressão, é preciso registrar, só veio a público porque a Sra. Friggi relatou-a em sua rede social. Isto posto, os compartilhamentos e comentários foram exponenciais. Ato contínuo, jornais e revistas trataram do assunto. Todas, sem qualquer aprofundamento da questão, limitaram-se ao relato do episódio em escala menor àquela que seria dispensada ao jogador que perde ou faz o gol em momento decisivo.
Ou seja, a Sra. Friggi, por seus anos de dedicação ao magistério só ganhou o mero e dolorido torrão que lhe fora dado por seu aluno! E ela que decida o que fazer com ele! Euphemus jogou-o ao mar, razão pela qual é citado como o ancestral de Battus, fundador de Cirene. O torrão da Sra. Friggi, lamento dizer, úmido, vai se misturar à lama quotidiana que verte em nosso país e será dignamente esquecido. Sequer a imprensa quis saber de que material ele é feito. O site da UOL, sabidamente ávido em criar títulos sensacionalistas, trouxe o seguinte: “Professora de SC diz que foi agredida por aluno de 15 anos” (o grifo é meu). Hoje, porém, como dedica-se à venda de produtos e ideias, comentou o linchamento virtual imposto a Sra. Friggi.
Ora, o pessoal da análise do discurso, que não é bobo nem nada, sabe do que falo. A partir do momento que coloco esse “diz”, materializo a dúvida na notícia. A foto em que a Professora aparece com o supercílio cortado e o sangue escorrendo rosto abaixo pode muito bem ter sido resultado de um encontro acidental com uma porta qualquer, de modo que a manchete da UOL relativiza o óbvio. Vivemos a época dos fatos alternativos, da pós-verdade, por isso, mesmo diante do fato verídico, teima-se em instalar a dúvida em prol de uma ideologia sub-reptícia, ignorando o fato de que a imprensa deve veicular notícias, fatos, e analisá-los.
Em tempos de polarizações, a Sra. Friggi foi obrigada a tragar boa dose de cicuta. Explico-me: não bastasse a agressão verbal, física e psicológica, a Sra. Friggi foi impelida a responder por seu posicionamento político. Parece-me que seu depoimento público, no qual diz sentir-se dilacerada com o ocorrido, foi muito cru, muito verdadeiro, careceu de verniz literário, enfim, um tom folhetinesco, dramático. Não, leitor, não lanço mão da ironia. É o que penso. Fato é que a Sra. Friggi não chegou a enternecer a massa. Parte dela, cansada ou obtusa - não sei – fez uso de suas próprias palavras em publicações anteriores para condená-la, como se tivesse ela criado o monstro que a atacou.
No mais, visto que não há deus ou semideus que represente o respeito, falemos ainda do torrão oferecido a Sra. Friggi, que, lamentavelmente, em estado de mutação, dilui-se com a lama da canaille, que é indiferente à educação; a lama da imprensa, quotidianamente parcial em suas publicações; a lama produzida pela sociedade, que acha lógico um adolescente conduzir um carro e eleger bandidos, mas não responder por seus atos; a lama gerada pelos pais, que acham “natural” responsabilizar a escola pela educação de seus filhos, com menosprezo do conhecimento  e la nave va. Não sou expertise em educação, mas acho que a equação que resultou nas pedradas lançadas na Sra. Friggi, por uma sociedade e um adolescente bárbaro e perverso, começa por aí.

Publicado originalmente em http://z1portal.com.br/category/miscellanea/

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