Revista Philomatica

sexta-feira, 26 de janeiro de 2018

Homem cordial, o brasileiro?


O conceito não é recente, mas ainda causa alguma confusão. Ideado por Sérgio Buarque de Hollanda, em Raízes do Brasil, a proposição do historiador exalta virtudes como a generosidade e a hospitalidade, que definiriam, em tese, o caráter do brasileiro. Ledo engano. Essa suposta cordialidade não passa de uma máscara, pois o ser cordial, no caso, é justamente o oposto de polidez, nada a ver com bons modos, amizade ou o que quer que seja.
Trata-se, na verdade, de um disfarce que preserva ora certa superioridade, não raro alguma supremacia social, ora certa arrogância intelectual e, quase sempre, muita falta de educação. Tudo, é claro – afirma o historiador -, em benefício de resguardar emoções e suscetibilidades.
Mas como isso se materializa no dia-a-dia? A título de ilustração, trago três historietas:
1. Ao retornar para casa, Antônio decide comprar alguns pães. “O dia foi cansativo”, pensa, “não tenho disposição alguma para preparar o jantar, melhor um sanduíche”. Entra na padaria, escolhe alguns pães e, ao pagá-los, o rapaz do caixa pergunta-lhe se não tem algumas moedas. Enquanto procura pelas moedas, Antônio não se deu conta de que o rapaz retirara de sobre a balança o saquinho de pães que havia deixado para ser pesado. Pães devidamente pagos, Antônio volta-se para a balança para pegar o saquinho com os pães que escolhera. O senhor que aguardava na fila logo atrás, empurra-o bruscamente e diz que aqueles são seus pães. De fato, eram seus pães, pois os de Antônio já estavam separados. Paciência posta à prova, Antônio caminha em direção a sua casa. No caminho, o senhor que o empurrara, para a motocicleta e, protegido pelo capacete, xinga-o: “Viado! Da próxima vez, presta mais atenção!” Certo de que Antônio jamais o alcançaria, acelera a moto e parte.
2. Ao voltar do trabalho, José aguarda pacientemente o fluxo de carros para, enfim, adentrar a sua garagem. No exato instante em que vira o automóvel para entrar, uma motociclista ultrapassa-o pela direita. Ciente de que poderia tê-la atropelado, José buzina rapidamente, alertando-a do perigo. A moça, educada, e também protegida por um capacete, levanta o braço direito, estende a mão e cumprimenta José acenando com o dedo médio. José sequer identificou os xingamentos.
3. A noite fora exponencialmente quente e Pedro mal conseguira pegar no sono. Acordou várias vezes durante a noite, tamanho era o calor. De madrugada, sob uma temperatura mais agradável, adormeceu. Assim que adormecera, um veículo para em frente à janela de seu quarto. O barulho da buzina é intermitente, mas contínuo. Pedro levanta-se, vai até a janela e grita: “Ô, por favor!”, e volta para a cama. Silêncio. Pedro consegue ouvir a vizinha que sai e entra no carro. Ato contínuo, o motorista descansa a mão na buzina antes de partir acelerando o carro.
4. Joaquim aguarda na fila do Banco do Brasil. Ali, há muitos caixas eletrônicos, porém, poucos funcionam. É começo de mês e o fluxo de clientes no banco é enorme, embora gerentes e administradores sequer deem conta da balbúrdia que se instala na área dos caixas. Joaquim já aguarda na fila por aproximadamente uma hora. Conta o número de pessoas à sua frente, calcula o tempo que cada cliente demora-se no caixa, faz as contas, teme pelo tempo. Quando uma senhora permanece em contemplação diante de um caixa por uns quinze minutos, Joaquim se desespera: “Hoje fico sem almoço.” O tempo passa, mais dois clientes e é a vez de Joaquim. Um rapaz deixa o caixa e, subitamente, um senhor que não estava na fila toma seu lugar. Joaquim e os dois que aguardavam protestam com veemência. O senhor que furara a fila, volta-se calmamente e diz: “Tenho muito o que fazer. Não posso perder meu tempo.”
Os entrechos são curtos, simples e rasteiros, mas não deixam de ilustrar a cordialidade do brasileiro, sempre traduzida em provocações. O mesmo acontece nas redes sociais, onde as opiniões adquirem exponencial acidez, tal o grau de desrespeito e preconceito. Mas somos um povo benevolente, pacífico - apesar dos milhares que caem como fruta madura pelas ruas das cidades em razão da violência -, afável e hospitaleiro. Afinal, Deus é brasileiro! Podia ser diferente?

quarta-feira, 24 de janeiro de 2018

A ignorância e a depuração do gosto

Treslendo a biografia de Machado de Assis escrita por R. Magalhães Júnior, observei as referências do autor às crônicas machadianas. As alusões, no caso, eram as cantoras de ópera que empolgavam o público carioca na segunda metade do século XIX. Um contumaz leitor do Bruxo do Cosme Velho, sem dúvida há de se lembrar da Candiani, que arrebatava almas e corpos e fizera com que os cavalos de seu carro fossem substituídos por rapazes saídos de um fã clube entusiasta. Depois, vieram a Stoltz, a Charton, a Lagrange, a Casolini, a La Grua... Todas passaram pela pena de Machado.
Portanto, não há razão para que eu não fale de nossas atuais celebridades, ainda que sob os auspícios da canção: descendo a ladeira. Ora, o assunto me veio ao espírito depois de ler a publicação de um amigo. Nela, havia uma lista dos cantores que costumávamos ouvir nas décadas oitenta e noventa e o que se costuma ouvir hoje. Come de praxe, o mais interessante nesse tipo de comparação é a opinião dos internautas, em geral, marcada por profunda obtusidade. E, nesse caso, não foi diferente. Abstive-me de qualquer comentário, haja vista tratar-se de uma página pessoal e não conhecer o autor do comentário que me leva a essa rápida reflexão.
Pois bem, em consonância à polarização e ao vitimismo atual, um jovem tascou a seguinte pérola: “Isso só mostra que a arte acima de tudo não tem a necessidade de ser bela, mas de servir como voz além de entreter. Incomoda tanto assim aos privilegiados que os marginalizados ganhem voz? As vanguardas, ainda que movimentos elitistas, não ensinaram nada para a literatura? Triste quem pensa pequeno...”.
Ora, à medida que os anos avançam o respeito à juventude é algo que não se pode ignorar. Contudo, respeitar não implica qualquer deferência à sobeja atrofia intelectual de nossos dias, em que o atraso cultural é uma doença quase que universal. Não sei se o jovem em questão, cujos neurônios padecem certo estiolamento próprio da idade, estaria disposto a me entender, mas vamos lá: primeiro, ele afirma que “a arte não tem a necessidade de ser bela”. Não tiro sua razão, mas peço que se atenha às sábias palavras de filósofos como Sri Ram, por exemplo, para quem a evolução nada mais é que a depuração do gosto. E vou mais longe, meu caro efebo:  a arte é um caminho de conhecimento à procura do Belo, do imutável, e a música que você defende está fadada às lixeiras das gravadoras, preservando-se, muito raramente, na cabeça de pessoas habituadas à leitura de cartilhas ideológicas cujo conselho é a repetição e têm como impedimento maior, a reflexão, o questionamento.
Nem toda expressão cultural pode ser chamada de arte, mancebo! A arte, já afirmava Schopenhauer, é “a exposição de ideias”, “o modo de consideração das coisas independente do princípio da razão”. Que ideias veiculam a música que você diz representar os excluídos, que voz concedem elas aos marginalizados? O relativo direito ao contorcionismo enquanto se afirma ser uma vadia todo dia? Arte é algo que toca a universalidade humana, revela-se como inspiração e dá ao homem a experiência subjetiva de reconciliar-se com a natureza e a liberdade, afirmava Kant.
A liberdade da qual fala Kant não é definitivamente o direito à lascívia pura e simplesmente. E, já que reclama o fato de as vanguardas não terem ensinado nada à literatura, aconselho-o a ler Sade. Em Justine ou Os Infortúnios da virtude, Sade não só faz uma apologia ao crime, como explora de forma exponencial a crueldade e as liberdades do corpo como do espírito e, se não me falha a memória, lá, caro mancebo, Sade dedica três ou quatro páginas às vantagens de se dar o cu. Como vê, a literatura foi além das vanguardas afeitas aos grafites, às quais provavelmente se refere.
Nota-se em sua fala total desconhecimento do que se passou há apenas uma década! Falta de leitura, suponho! Os privilegiados que condena por gostarem de Zé Ramalho, Gal Costa, Milton Nascimento, Renato Teixeira, Legião Urbana, Caetano, se não sabe, meu caro jovem, lotavam estádios nas décadas de oitenta e noventa; eram jovem sonhadores, assim como você. Eram filhos de operários e, detalhe, a grande maioria sequer pode frequentar uma universidade, pois heroicamente tinha que defender seu bocado de pão. Nem por isso se faziam de vítimas, mas lutavam, assim como os que vieram logo depois lutaram pelas “diretas já”.
Ah!, então não havia privilegiados?! Sim, havia! Muitos, inclusive, marcharam as trilhas da política e tornaram-se mais privilegiados ainda; hoje, perfazem as fileiras de nossa elite política, partidária de foros privilegiados, direitos muitos, mas quase nenhum dever!
É evidente que não são esses os privilegiados que alfineta. Em seu relativizado discurso, nota-se que lê a cartilha de forma um tanto estúpida e não se dá conta de que a mesma elite que defende, acreditando tratar-se de representantes dos marginalizados é aquela que escolhe suas músicas. E mais: Platão, na República, alertava para a qualidade da música que os governantes davam às pessoas, sem falar, é claro, em Plutarco, que já afirmava que música ruim e canções grosseiras engendram licenciosidade.
Por fim, meu jovem: não maldiga a literatura, leia Sade e ouça boa música.

segunda-feira, 22 de janeiro de 2018

Carmen e o revisionismo: matem D. José!

É senso comum certo conservadorismo no ar; melhor, certo puritanismo sexual, sobretudo se comparamos o discurso atual de uma parcela da sociedade àquele que estávamos acostumados nas duas últimas décadas. Não digo três décadas porque aí seria avançar demais e há trinta anos, creio, vivíamos ainda a Era Democrática preconizada por Vico. De qualquer modo, não há como negar que nos anos 80, apesar dos pesares, éramos muito menos ‘quadrados’ - não digo ‘careta’ porque a geração ‘Z’, que sequer tem ímpetos de consultar um dicionário, permaneceria na ignorância -, ousávamos mais e se há uma coisa que não éramos, era politicamente corretos. Ríamos, sim, éramos risíveis! E, acredite, é só olhar o modo como nos vestíamos que você, leitor, rirá às desbragadas!
Contudo, duvido que Vico tenha imaginado isto: que a moral vitoriana que marcaria a Nova Era Teocrática viria de movimentos de esquerda, entre os quais, os feministas. A religião, a fé? Ora, isso é passado; hoje somos tão descrentes e o deus que surge em nossos lábios só aparece em momentos de angústia e pedidos de socorro, algo como recorrer a um usurário, um bombeiro ou à polícia!
Certo, nessas horas a memória encarrega-se de misturar lembranças e leituras, e nessa Era do Caos em que vivemos, em que a Escola do Ressentimento teima e sapatear sobre tudo e todos, não há como não se espantar a cada novo amanhecer.
Às vezes, penso que o valor estético está mesmo com seus dias contados e, se permanecer, só será encontrado em textos eruditos, naturalmente refutados pelos Ressentidos. Não à toa, impôs-se em nossos dias a necessidade de revisar tudo, desde a história até as obras de arte, a ficção; mas, contenha-se leitor, não demora e logo pinturas medievais, renascentistas, românticas e outras serão mutiladas em proveito de um discurso que visa satisfazer a intelligentzia da rede acadêmico-jornalística. Por birra, as sinapses não me deixam de trazer ao espírito o jornaleco que se diz a serviço do Brasil!
Mas o que pretendia falar não é fruto de solo tupiniquim, vem lá das Zorópa - como dizia o matuto. Pois bem, Leo Muscato... Quem? O Leo ou o Muscato, como queira. Nunca ouviu falar dele? Ora, não seja por isso! Leo há de ser mundialmente reconhecido por seu talento visionário. Leozinho é diretor da Ópera de Florença, e diretor da Carmen, de Bizet, baseada, por sua vez, na obra de Mérimée.
Leozinho, na falta de uma direção exponencial à obra de Bizet, algo que de fato tirasse o fôlego do espectador face à sublimidade do artístico, decidiu pura e simplesmente mudar o final da obra. O porquê da mudança? Ora, na concepção do mestre Muscato, a obra dos gênios Mérimée e Bizet não condiz com os dias atuais; o público, suscetível ao politicamente correto, definitivamente não é obrigado a aplaudir um feminicídio em cena.
É claro, Bloom ressoou-me aos ouvidos! Que é isso?, pergunto. É certo que o estético é uma preocupação individual, não de sociedade, mas por que então Leozinho corrobora essa modernidade equivocada, tendenciosa, e afeita a dilapidar obras de arte para que se ajustem a uma arte supostamente subversiva?
Leozinho não pôde ignorar Carmen, contudo, mesmo considerando-a esplêndida, achou-a conservadora, por isso resolveu adaptá-la aos nossos dias, tornando-se uma espécie coautor; degenerado, claro, mas, colocou-se ali, ao lado de Mérimée e Bizet, constituindo uma tríade!
Isso é preocupante? De certo modo, sim! Preocupante pelo que pode vir a seguir, afinal, há tantas obras, tantos papéis de mulheres protagonistas, que as fazem mentir, sofrer, morrer... O que fará Leozinho e a intelligentzia? Mudará tudo? Oh, meu Deus! O que farão da fala do príncipe, em O Leopardo, de Lampedusa? – “Mudem tudo, mas apenas o suficiente para manter tudo exatamente como está.” (Leozinho não seria tão hipócrita, ou seria!?) Riscá-la-ão em proveito do politicamente correto? Quantas obras, romances, óperas não foram compreendidos em sua época e só por isso tornaram bastiões de grupos, ideias e ideologias! A crítica apoia-se na memória; o esquecimento é danoso, prejudicial à cognição, Leozinho!
Não bastasse isso, na Inglaterra, a BBC britânica decidiu recontar uma vez mais a Guerra de Tróia, a ser divulgada via Netflix. Até aí, nada de original; afinal, a epopeia já ganhou versões e versões no cinema e na TV. Contudo, o papel de Ulisses será interpretado pelo ator David Gyasi. Ora, para quem não sabe, Gyasi é negro.
Ouço o ecoar de seus pensamentos, leitor: “Racista!” Engula seu pré-julgamento leitor! O que coloco em questão, se não se deu conta ainda, é o revisionismo! Mas isso não me impede de perguntar: e se colocassem Brad Pitt a interpretar o papel de Malcolm X, Martin Luther King ou Mandela? Qual não seria a gritaria, não é mesmo? Por que revisar a obra de Homero, na qual a personagem é notadamente descrita por sua cabeleira loura? O contrário, é certo, seria tratado em nossos dias como apropriação cultural, expressão tão vazia de sentido cujo propósito não é outro que deferir discursos superficiais dos caçadores de likes nas redes sociais.
Mas, por que toda essa prosa, perguntas-me, ó digníssimo leitor. Eu mesmo não sei, afinal, os filmes são rapidamente esquecidos e ainda que Brad Pitt venha a interpretar Mandela e Gyasi seja reconhecidamente um Ulisses premiado, logo cairão no anonimato, face a onda avassaladora de informação. Mas e os livros? Ah, os livros, nem Leozinho e nem a BBC poderão alterá-los! Ademais, poucos, bem poucos os leem, sobretudo os clássicos, e se tentarem queimá-los, como em 451 Fahrenheit, arderão intactos e ninguém levantará a voz. Portanto, caminhemos e esqueçamos as polêmicas!

sexta-feira, 19 de janeiro de 2018

Assassinato no Expresso do Oriente

O hábito não faz o monge, diz o ditado. Caso o fizesse, ao escrever essas garatujas, mais uma vez eu estaria a criticar a canalhice com que se faz a grande imprensa. Porém, olhei para o lado e não tive como ignorar a tristeza da vida que se acaba entre a juventude, marcada pelo episódio de ontem, em que a jovem fez da janela um cadafalso.
Refleti sobre a desesperança e lembrei-me de grandes poetas cuja saída não foi diferente. Veio-me ao espírito Maiakovski, sobretudo porque esta manhã vi a foto do poeta com seu cachorro Pouchkino nos braços, e também porque, ao meu lado, enquanto escrevo, obrigo-me a um movimento pendular das mãos que ora recaem sobre o teclado, ora deslizam sobre o dorso da Colette, companheira que, carinhosamente, tem procurado curar-me da tristeza que ainda me assalta ao lembrar-me do Pierre. Mas, deixemos o quotidiano de lado. Adentremos a ficção. Nesses tempos de férias, releio, por prazer, uma obra da infância. À medida em que avanço pelos capítulos, os dias de menino refrescam-me a alma. Traço paralelos, faço comparações, resgato impressões, relembro o que imaginava, constato o caminho percorrido, repenso os desvios, o tempo que ora considerava perdido, mas, hoje, resignado, julgo ter sido um ganho.
Trata-se, leitor, de O Assassinato no Expresso do Oriente, de Agatha Christie. Na França, antes de ser publicado na Coleção Le Masque, em 1934, o romance foi publicado em folhetim nas páginas do jornal Excelsior. À época, é claro, Christie ainda não tinha a alcunha de a Rainha do Crime, mas já havia escrito dezessete romances, dentre os quais, oito já traziam Hercule Poirot, seu detetive favorito, e que desfruta até nossos dias de numerosos fãs.
No ano anterior, o Le Petit Journal já havia publicado em folhetim A Morte de Roger Ackroyd. Dessa vez, porém, tratava-se de um texto inédito e o Excelsior anunciava sua publicação para o período de 3 de junho a 14 de julho: “Amanhã: O Assassinato no Expresso do Oriente, grande romance policial de aventuras de Mme Agatha Christie, que é considerada a melhor romancista inglesa de aventuras policiais.”
A tradução em francês ficou aos cuidados de Louis Postif; curiosamente, a mesma que me caiu nas mãos. Ao comentar antes das férias que deixaria de lado as obras teóricas e leria Christie, uma colega de trabalho retrucou com certo desdém: “Prefiro Shakespeare.” Como não gostar de Shakespeare, pensei, sobretudo depois de ler Bloom, que ela também não gosta? Mas, não nego, gosto de um bom folhetim!
Assim, como não gostar de Christie? Ora, o primeiro parágrafo é como a cortina do espetáculo que se desvela à vista do espectador. De resto, é subir no trem e começar a viagem, pois tudo começa assim: “Eram às cinco horas de uma manhã de inverno na Síria. Ao longo da plataforma de Aleppo, estacionava o comboio pomposamente anunciado nos guias turísticos como Taurus Express. [...] À subida para a vagão-dormitório, um jovem tenente francês, elegantemente fardado, conversava com um homenzinho, agasalhado até as orelhas, o que lhe deixava ver só o nariz vermelho e as pontas do bigode curvo, voltado para cima.”
O Assassinato no Expresso Oriente é um desses romances perfeitos cujo grande mote é o enigma - o tal do whodunit - tão caro aos ingleses: um crime em que todas as personagens são suspeitas e as pistas são destiladas ao leitor, uma a uma, aos poucos, até o grande desenlace, por Hercule Poirot, o homenzinho de bigode curvo.
O romance tem em sua estrutura um dado singular, já que se baseia em fatos reais. O argumento em torno da vítima, o americano Ratchett, foi em grande parte inspirado em um caso objeto de muita discussão havia apenas dois anos: o sequestro e o assassinato do filho do aviador americano Charles Lindbergh.
Quanto à imobilização do trem, pano de fundo e ingrediente essencial para o quadro, vem de um incidente ocorrido alguns anos antes na Turquia, no qual os passageiros do Simplon Orient Express ficaram isolados do mundo por seis dias.
No mais, a narrativa é convidativa sobretudo ao leitor semântico, habituado a algumas obviedades, porém, nada que desmereça as boas horas de viagem no Expresso. Por fim, vale destacar que o romance continua bem vivo e acaba de ganhar nova versão nas telas do cinema, com a obra de Kenneth Branagh.

quarta-feira, 17 de janeiro de 2018

Retrospectiva

Uma olhadela nas notícias de hoje e constato o óbvio: um balanço geral do ano que agoniza. Após correr os olhos de alto a baixo nas principais publicações, noto que somos, digamos, efusivos. Explico-me: preferimos assuntos leves, palatáveis.
Embora não devamos generalizar, o fato é que ao traçar um panorama do que se publica na grande imprensa, afora as notícias ditas impositivas, isto é, os dramas do povo e as tragédias da política, o que temos é pura imbecilidade. Não à toa, Eco, o meu padre santo, dizia que a internet deu voz a uma legião de imbecis. Não bastasse isso, a imprensa encarrega-se de alienar a massa em proveito de seus próprios interesses.
Parece haver uma teoria conspiratória em favor do entorpecimento geral, sim, algo como aquelas histórias da Nova Ordem Mundial, temida por muitos, risível a tantos outros. Contudo, depois de milhares de internautas se confessarem intrigados com a foto de uma celebridade em pose lânguida e outros se digladiarem sobre o talento inexistente do cantorzinho que a imprensa considera a diva pop da atualidade, nada nos resta além de um sentimento funéreo, igual ao do ano que agoniza.
Firulas, circunlóquios, rodeios? Não, caro leitor, é tudo muito sério. Isso é reflexo de uma relativização intelectual e, como consequência, rebaixe do espírito crítico, no qual até mesmo a apreensão do conhecimento é circunscrita. Recentemente, grandes empresas abriram vagas de estágio; exigentes e ditas de renome, a seleção foi concorrida. Milhares de universitários inscreveram-se, uma média de 275 candidatos por vaga.
Previu-se que seria fácil preencher as vagas tal o número de postulantes, contudo, constatou-se que as empresas sequer conseguiram candidatos para a metade das vagas e foram obrigadas a diminuir o nível de exigência. Além do óbvio, qual seja, as questões educacionais (Ideb), os especialistas apontaram uma outra razão para a suposta obtusidade dos proponentes: o excesso de internet. Como se sabe, a internet facilitou o acesso à informação, porém, trocando em miúdos, deu azo ao grande plágio, a apropriação da reflexão alheia. Papagueiam à exaustão a apropriação cultural, mas, ao fazê-lo, reproduzem a dinâmica e o movimento daqueles que se assenhoram das ideias de outros.
Isso só acontece porque vivemos uma época em que os alunos, ao escreverem seus textos, não mais lançam mão da pena e da criatividade, mas dos modernos ‘control c, control v’. A cultura visual se impõe e ler, fichar livros e fazer resumos ganham ares de erudição, quando deveriam fazer parte do quotidiano dos alunos. Hipertextos obrigam internautas a pular de um lugar a outro em detrimento da profundidade. Com isso, perde-se não só o conteúdo, mas também chicoteia-se a língua: hoje as empresas já não trazem como requisito um bom desempenho em prova de língua portuguesa, basta que o candidato não escreva, por exemplo, texto com dois ésses ‘s’.
Mas isso é o de menos, como diz-se na linguagem coloquial, o grave mesmo é a incapacidade de desenvolver e expor ideias, resultado de uma interatividade hiperativa, conforme afirma Mark Bauerlein, autor de “A mais burra das gerações: como a era digital está emburrecendo os jovens americanos e ameaçando nosso futuro”. Burrice, para Bauerlein, é ouvir dos adolescentes americanos que a Alemanha foi aliada dos Estados Unidos na Segunda Guerra Mundial. 
Não nos assustemos, pois já ouvi aqui nos trópicos que a Argentina fica na Austrália. Esses absurdos, muitos creditam ao fato de hoje os jovens passarem muitos mais tempo trocando informações entre si, de modo a excluir a intermediação dos adultos do processo de aprendizagem.
Não que os jovens sejam tabula rasa e os adultos receptáculos de conhecimento e sabedoria. Longe disso; até mesmo porque Bauerlein vê com desconfiança os meios educacionais tradicionais, como a escola, porque suspeita ser ela incapaz de traduzir o que é relevante para a vida.
Face à profusão de informação, o jovem enfrenta dificuldade em selecionar aquilo que é relevante para o seu conhecimento e, diante disso, vê-se cada vez mais confuso e busca intermediação nas redes sociais à procura de alguém em quem possa confiar. O resultado? O perigo de achar que a boa música, por exemplo, é fruto de suposta representatividade e/ou atributos físicos, tal um bom derrière.
À escola do futuro fica o desafio de tentar interagir com o jovem; à imprensa, o dever de não torná-lo obtuso, enfiando-lhe goela abaixo, sob o rótulo de cultura, muito do lixo que a sociedade produz 

quinta-feira, 11 de janeiro de 2018

Aproveitem enquanto ainda há presépios!

O primeiro presépio, reza a lenda, teria sido montado por São Francisco de Assis no ano de 1233 e, acreditem, foi feito em argila. Nada dessas invencionices modernosas em que o Cristo ganha feições de garrafa pet reciclável e os Reis Magos, customizados, são confeccionados com arames, e, como afirmam alguns jornalistas leitores de notícias, tornam-se “pura obra de arte”.
Segundo dizem, como muitos camponeses não entendiam bem a história do nascimento de Jesus, São Francisco resolveu representá-la para melhor explicar o episódio. A moda pegou e igrejas e mosteiros passaram a reproduzir o feito. Não demorou muito, reis e nobres replicaram o ato em seus palácios e casas. Tornou-se tradição a manjedoura, o menino, os reis, o boi, o burro etc e tal. A encenação, afirma-se, tem por objetivo o congraçamento e o despertar da fraternidade, às voltas, é claro, de um núcleo familiar que garante seu protagonismo.
Mas os tempos mudaram e com eles o presépio, que hoje saiu das casas e adentrou os shoppings. Em nossos dias, o congraçar-se dá-se em torno do vil metal: o burro pisca daqui, o boi pisca dali, os reis apontam as vitrines, o menino esperneia pedindo esse ou aquele brinquedo; a vendedora, desesperada por uma percentagem maior no salário, mostra um jogo, um carrinho, mas o menino chora, esperneia, faz birra e quer porque quer a boneca. A mãe, receosa em magoá-lo, obedece à risca as suas vontades. Ao saírem, o menino exulta: ganhou não só a boneca, mas uma caixinha de maquiagem e até uma sainha, que é um mimo, de tão fofa!
Na porta dos shoppings, repórteres ávidos à procura de compradores que sustentem o argumento de que a economia vai bem obrigado, perguntam se o Natal vai ser bom: o filho olha para a mãe, que olha para o filho, e devolve a pergunta: “Natal, que Natal?” O Natal, o nascimento do menino Jesus, retruca o repórter meio sem jeito. “Ah, não sei quem é ele não, moça. O que sei é que esse ano o décimo terceiro saiu na data. Ano passado, nem teve!”
Mas isso, caro leitor, são historietas aqui dos rincões. Em outros países, no entanto, guardadas as devidas proporções, não é lá muito diferente: o fato é que o tradicional presépio também lá comemora suas exéquias. Na França, por exemplo, país em estágio avançado de islamização, presépios são um acinte não só à tão propalada laicização, mas às susceptibilidades muçulmanas. As escolas já não comemoram mais o Natal, presépios tornaram-se blasfematórios, os pinheiros de Natal sequer aparecem e o bom velhinho já não cruza mais os céus conduzindo suas renas, mas caminha cabisbaixo, costas curvadas, pensativo, rumo a um asilo qualquer. E tudo em nome de uma convivência dita harmoniosa em que as diferenças são relativizadas. O Estado interfere com a sua mão forte dizendo lutar pelas minorias, os oprimidos, mas, ao fazê-lo, oprime outros, criando subgrupos, enquanto deveria pregar a coexistência dos contrários, na qual todos pudessem se expressar segundo suas ideias e crenças.
Lá também, em comemorações de fim de ano, até as estrelas têm sido banidas, afinal, remetem aos Evangelhos, anunciando o nascimento do menino. Que menino? Já não se pode mais pronunciar seu nome, pois é politicamente incorreto. A festa, antes coletiva e familiar, na qual princípios de caridade e fraternidade eram postos em prática, ainda que sob certa efemeridade, hoje tornou-se simplesmente mercantilista.
De fato, poucos lembram-se de sua origem e da razão de sua existência, o que importa é a troca de presentes, o quanto se vende, o quanto se lucra. Abraços, sorrisos; tudo isso tornou-se démodé em tempos cujas bandeiras são ideológicas, racionais, pragmáticas e seguem à risca a cartilha imposta por grupelhos, que se arvoram donos da verdade e são comumente sustentados por uma mídia suja e interesseira.
Enfim, leitor, é isso: o presépio, também nas igrejas, está com seus dias contados. Mas, tranquilize-se: como somos todos um pouco metafísicos, a intelligentzia ideológico-partidária há de providenciar outros deuses, cujos evangelhos serão redigidos em longas reuniões partidárias, ao sabor do café e do croissant subvencionados pela massa ingênua, alienada e faminta, marcada para morrer e mansa feito o cordeiro de Deus.

segunda-feira, 8 de janeiro de 2018

Educação, dias melhores em 2018

A roda viva gira muito rápido, por isso arrisco-me a incorrer em erro; mas é muito provável que grande parte dos leitores ainda se lembre da canção dos Titãs, entoada às desbragadas por uma juventude supostamente faminta de diversão, arte e fazer amor. Pois bem, a trancos e barrancos conseguimos comer, mal, mas comemos; nem todos, é claro, mas uma maioria - comme toujours!
Contudo, tratando-se da dita diversão, tudo é relativo! Para alguns, o funk não só diverte, como é pura arte! Outros, no entanto, ao som de acordes do gênero, só não enfiam a cabeça no buraco feito avestruz porque a retaguarda fica desprotegida, e é nisso que o funk mira e é disso que os funkeiros gostam. Isto posto, a juventude não só come, mas faz amor!
Ela, a juventude, crê-se informada! Não à toa, as redes sociais estão plenas de especialistas. Descreio de muita coisa e, na dúvida, volto-me aos meus botões. Como sabem, sempre há um que me socorre nessas horas. Desta vez não foi diferente: disse-me para não generalizar, pois o diabo não só mora nos detalhes, mas sobretudo nas exceções; alertou-me também para que ficasse atento, pois a maioria confunde informação com conhecimento.
Talvez, por isso, na republiqueta Temer o ensino está cada vez mais sucateado, afinal, para os liberais de plantão, qualidade é água (suja), conhecimento é pasto (seco)! E você, tem sede de quê? Tem fome de quê? O pessoal da canaille, leitor, pouco se importa se você tem fome ou sede, desconhece seus desejos; a imprensa, não faz diferente e lança hora ou outra as ditas reportagens denunciadoras que só corroboram o projeto político de sucatear o ensino público; os oportunistas, ah!, esses nadam de braçadas como se a educação pudesse ser descartada como produto fora de linha, substituindo-a por qualquer outro, em proveito do lucro e sem qualquer desperdício para o conhecimento como afirmam.
Vejam, por exemplo, o caso de um anúncio de vagas para professor veiculado nas redes sociais: um colégio particular oferece vaga para professor infantil e fundamental I a uma remuneração de R$ 1.450,00 mensais (período integral). Como não se revoltar, se é sabido que um aluno paga uma mensalidade que ultrapassa em muito o valor oferecido ao professor por um mês de trabalho?
O curioso é que há entre o professorado aqueles que, por razões que desconheço, tentam justificar um salário tão irrisório e, para isso, trazem como justificativa os salários acachapantes e vergonhosos pagos aos professores públicos. Há bem pouco tempo, as universidades eram repositórios de respeito ao professor e de um salário, digamos, justo. Como disse, há bem pouco tempo, porque a roda gira. A USP, renomada universidade e uma das melhores do país, trata de fazer a sua parte para o recrudescimento desse quadro já vergonhoso.
Hoje, segundo notícia do Estadão[1], o número de professores temporários na USP triplicou desde 2014. Há pouco, o Departamento de Ciências Sociais lançava edital em busca de professor substituto: 12 horas de trabalho semanais a um salário de mil e poucos reais. O detalhe é que esse substituto deve fazer aquilo que o professor efetivo faz, às vezes mais, e para que chegue a fazer esse mais, é preciso titulação – no mínimo, doutorado, e um Lattes recheado de publicações etc e tal.
As notícias da semana só reforçam esse plano de reduzir o ensino público a nada: a USP, a UNICAMP preveem déficit, a UNESP pede verba. A culpa? A tal da crise; uma mão na roda na hora de se criar uma desculpa, aliás, crise que jamais atinge a canaille, cujos salários são majorados rotineiramente. A Estácio demitiu 1200 professores de uma tacada só; a Universidade Metodista mais uns 50. E assim caminha o ensino...
Mas não há motivo para pessimismo! Tudo vai mudar com o novo ano que se aproxima: 2018 é ano eleitoral e a educação, como num passe de mágica, torna-se a principal pauta dos políticos, corruptos ou não. Nós, brasileiros, como somos afeitos a promessas, acreditamos em Papai Noel, duendes, Salvadores da pátria e otras cositas. Por isso, votamos e acreditamos em dias melhores.



[1] http://educacao.estadao.com.br/noticias/geral,numero-de-professores-temporarios-na-usp-mais-que-triplica-desde-2014,70002099343

sexta-feira, 5 de janeiro de 2018

Viagem ou espetáculo

A ela são atribuídas diferentes metáforas; todas, quando pensadas, revelam-se meio positivas, meio autoajuda. Aos percalços cruéis e deceptivos ao longo do caminho, creditam sempre o lado benfazejo e construtivo da experiência. Isso não nego, mas duvido. Duvido sempre, a ponto de cair na mesmice, reproduzir clichês, fazer comparações, revoltar-me contra os céus tal aquela personagem que, tomada por ódio e desespero, perguntou ao Altíssimo por que ele dispensa sorrisos e bênçãos ao vis enquanto golpeia e lança ódio e miséria aos que buscam alguma retidão.
Procuro, mas não encontro respostas. As metáforas, caro leitor, oscilam entre o grande espetáculo que é a vida, no qual interpretamos diferentes papéis, diferentes cenas, e o trem. Muitos sugerem atos cômicos e leves, contudo, penso que o trágico se impõe, até mesmo porque já nos habituamos ao drama, digerindo-o quotidianamente, e, como nos acostumamos a tudo, vemos nele algo risível, e divertimo-nos com nossa própria miséria.
O trem. Eis aí uma metáfora insistentemente (não gosto dessas palavras longas, mas, às vezes, face ao tédio, fazem-se necessárias) atribuída à vida que escorre por entre os vãos dos dedos. Em uma estação qualquer nos aventuramos na viagem; subimos no trem e ali sentamo-nos com certa timidez. Habituamo-nos ao vagão, trocamos palavras com os passageiros ao lado, rimos, choramos ao ouvir alguma historieta. Cansamo-nos um pouco e decidimos caminhar entre os vagões, deparamo-nos com rostos diferentes. Encantamo-nos com os novos passageiros, as novas histórias, revoltamo-nos com outras por não compreendê-las, mas, dizem-nos, Ele assim o quis, nada podemos fazer. Cabe a nós algum conformismo. A revolta, dizem, não nos leva a lugar algum. Um ou outro mais introspectivo sente nisso tudo um cheiro de Leibniz, ridiculariza-o com Voltaire, muda de vagão. Outros, olham para Brasília - se o trem, evidentemente, move-se em território tupiniquim -, e não veem saída outra que descer na próxima estação, mas hesitam e se conformam. Não se revoltam (e eles são muitos)!
Para alguns, contudo, o trem move-se muito devagar a ponto de sentirem-se fatigados; desejam parar em uma estação qualquer, mas o fluxo daqueles que subiram impedem a passagem; cansam-se ainda mais, acreditam não haver nada mais que possam aprender, que os estimulem, mas os que acabaram de subir renovam o ar, trazem músicas novas. Impassíveis, subjugados e impotentes, muitos refutam os novos ritmos, atiram-se pelas janelas. Os novos passageiros, estes, os ignoram e sequer notam as janelas; para eles a viagem será eterna. Outros, porém, já na trigésima estação, lançam olhadelas à procura de alguma luz - e o sacolejar do trem continua.
Alguns ainda, revelam-se sofistas. Ao trem ou ao roteiro do espetáculo, nada creditam, pois não passam de elementos, de móbiles, dizem. De fato, é o homem seu próprio algoz, sua própria doença, sua própria miséria, seu fardo, sua própria morte - porque também se morre em vida. Volto-me a esses sofistas todas as vezes em que afirmam sermos nós nossas próprias expressões, a razão de sermos oprimidos, desprezados, rejeitados, de apodrecermos em vida; ouço tudo e pergunto por que a felicidade não poderia ser em vida, como o sol? Não obtenho respostas. No mais, entrevejo um olhares responsivos dos quais depreendo uma centelha de luz dizendo-me que em algo amorfo como a sociedade os homens sofrem pelos homens, os homens torturam os homens.

Perco-me em meus pensamentos. Por que Ele teria criado os poderosos, os opressores?