Revista Philomatica

segunda-feira, 22 de janeiro de 2018

Carmen e o revisionismo: matem D. José!

É senso comum certo conservadorismo no ar; melhor, certo puritanismo sexual, sobretudo se comparamos o discurso atual de uma parcela da sociedade àquele que estávamos acostumados nas duas últimas décadas. Não digo três décadas porque aí seria avançar demais e há trinta anos, creio, vivíamos ainda a Era Democrática preconizada por Vico. De qualquer modo, não há como negar que nos anos 80, apesar dos pesares, éramos muito menos ‘quadrados’ - não digo ‘careta’ porque a geração ‘Z’, que sequer tem ímpetos de consultar um dicionário, permaneceria na ignorância -, ousávamos mais e se há uma coisa que não éramos, era politicamente corretos. Ríamos, sim, éramos risíveis! E, acredite, é só olhar o modo como nos vestíamos que você, leitor, rirá às desbragadas!
Contudo, duvido que Vico tenha imaginado isto: que a moral vitoriana que marcaria a Nova Era Teocrática viria de movimentos de esquerda, entre os quais, os feministas. A religião, a fé? Ora, isso é passado; hoje somos tão descrentes e o deus que surge em nossos lábios só aparece em momentos de angústia e pedidos de socorro, algo como recorrer a um usurário, um bombeiro ou à polícia!
Certo, nessas horas a memória encarrega-se de misturar lembranças e leituras, e nessa Era do Caos em que vivemos, em que a Escola do Ressentimento teima e sapatear sobre tudo e todos, não há como não se espantar a cada novo amanhecer.
Às vezes, penso que o valor estético está mesmo com seus dias contados e, se permanecer, só será encontrado em textos eruditos, naturalmente refutados pelos Ressentidos. Não à toa, impôs-se em nossos dias a necessidade de revisar tudo, desde a história até as obras de arte, a ficção; mas, contenha-se leitor, não demora e logo pinturas medievais, renascentistas, românticas e outras serão mutiladas em proveito de um discurso que visa satisfazer a intelligentzia da rede acadêmico-jornalística. Por birra, as sinapses não me deixam de trazer ao espírito o jornaleco que se diz a serviço do Brasil!
Mas o que pretendia falar não é fruto de solo tupiniquim, vem lá das Zorópa - como dizia o matuto. Pois bem, Leo Muscato... Quem? O Leo ou o Muscato, como queira. Nunca ouviu falar dele? Ora, não seja por isso! Leo há de ser mundialmente reconhecido por seu talento visionário. Leozinho é diretor da Ópera de Florença, e diretor da Carmen, de Bizet, baseada, por sua vez, na obra de Mérimée.
Leozinho, na falta de uma direção exponencial à obra de Bizet, algo que de fato tirasse o fôlego do espectador face à sublimidade do artístico, decidiu pura e simplesmente mudar o final da obra. O porquê da mudança? Ora, na concepção do mestre Muscato, a obra dos gênios Mérimée e Bizet não condiz com os dias atuais; o público, suscetível ao politicamente correto, definitivamente não é obrigado a aplaudir um feminicídio em cena.
É claro, Bloom ressoou-me aos ouvidos! Que é isso?, pergunto. É certo que o estético é uma preocupação individual, não de sociedade, mas por que então Leozinho corrobora essa modernidade equivocada, tendenciosa, e afeita a dilapidar obras de arte para que se ajustem a uma arte supostamente subversiva?
Leozinho não pôde ignorar Carmen, contudo, mesmo considerando-a esplêndida, achou-a conservadora, por isso resolveu adaptá-la aos nossos dias, tornando-se uma espécie coautor; degenerado, claro, mas, colocou-se ali, ao lado de Mérimée e Bizet, constituindo uma tríade!
Isso é preocupante? De certo modo, sim! Preocupante pelo que pode vir a seguir, afinal, há tantas obras, tantos papéis de mulheres protagonistas, que as fazem mentir, sofrer, morrer... O que fará Leozinho e a intelligentzia? Mudará tudo? Oh, meu Deus! O que farão da fala do príncipe, em O Leopardo, de Lampedusa? – “Mudem tudo, mas apenas o suficiente para manter tudo exatamente como está.” (Leozinho não seria tão hipócrita, ou seria!?) Riscá-la-ão em proveito do politicamente correto? Quantas obras, romances, óperas não foram compreendidos em sua época e só por isso tornaram bastiões de grupos, ideias e ideologias! A crítica apoia-se na memória; o esquecimento é danoso, prejudicial à cognição, Leozinho!
Não bastasse isso, na Inglaterra, a BBC britânica decidiu recontar uma vez mais a Guerra de Tróia, a ser divulgada via Netflix. Até aí, nada de original; afinal, a epopeia já ganhou versões e versões no cinema e na TV. Contudo, o papel de Ulisses será interpretado pelo ator David Gyasi. Ora, para quem não sabe, Gyasi é negro.
Ouço o ecoar de seus pensamentos, leitor: “Racista!” Engula seu pré-julgamento leitor! O que coloco em questão, se não se deu conta ainda, é o revisionismo! Mas isso não me impede de perguntar: e se colocassem Brad Pitt a interpretar o papel de Malcolm X, Martin Luther King ou Mandela? Qual não seria a gritaria, não é mesmo? Por que revisar a obra de Homero, na qual a personagem é notadamente descrita por sua cabeleira loura? O contrário, é certo, seria tratado em nossos dias como apropriação cultural, expressão tão vazia de sentido cujo propósito não é outro que deferir discursos superficiais dos caçadores de likes nas redes sociais.
Mas, por que toda essa prosa, perguntas-me, ó digníssimo leitor. Eu mesmo não sei, afinal, os filmes são rapidamente esquecidos e ainda que Brad Pitt venha a interpretar Mandela e Gyasi seja reconhecidamente um Ulisses premiado, logo cairão no anonimato, face a onda avassaladora de informação. Mas e os livros? Ah, os livros, nem Leozinho e nem a BBC poderão alterá-los! Ademais, poucos, bem poucos os leem, sobretudo os clássicos, e se tentarem queimá-los, como em 451 Fahrenheit, arderão intactos e ninguém levantará a voz. Portanto, caminhemos e esqueçamos as polêmicas!

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