Revista Philomatica

sexta-feira, 26 de janeiro de 2018

Homem cordial, o brasileiro?


O conceito não é recente, mas ainda causa alguma confusão. Ideado por Sérgio Buarque de Hollanda, em Raízes do Brasil, a proposição do historiador exalta virtudes como a generosidade e a hospitalidade, que definiriam, em tese, o caráter do brasileiro. Ledo engano. Essa suposta cordialidade não passa de uma máscara, pois o ser cordial, no caso, é justamente o oposto de polidez, nada a ver com bons modos, amizade ou o que quer que seja.
Trata-se, na verdade, de um disfarce que preserva ora certa superioridade, não raro alguma supremacia social, ora certa arrogância intelectual e, quase sempre, muita falta de educação. Tudo, é claro – afirma o historiador -, em benefício de resguardar emoções e suscetibilidades.
Mas como isso se materializa no dia-a-dia? A título de ilustração, trago três historietas:
1. Ao retornar para casa, Antônio decide comprar alguns pães. “O dia foi cansativo”, pensa, “não tenho disposição alguma para preparar o jantar, melhor um sanduíche”. Entra na padaria, escolhe alguns pães e, ao pagá-los, o rapaz do caixa pergunta-lhe se não tem algumas moedas. Enquanto procura pelas moedas, Antônio não se deu conta de que o rapaz retirara de sobre a balança o saquinho de pães que havia deixado para ser pesado. Pães devidamente pagos, Antônio volta-se para a balança para pegar o saquinho com os pães que escolhera. O senhor que aguardava na fila logo atrás, empurra-o bruscamente e diz que aqueles são seus pães. De fato, eram seus pães, pois os de Antônio já estavam separados. Paciência posta à prova, Antônio caminha em direção a sua casa. No caminho, o senhor que o empurrara, para a motocicleta e, protegido pelo capacete, xinga-o: “Viado! Da próxima vez, presta mais atenção!” Certo de que Antônio jamais o alcançaria, acelera a moto e parte.
2. Ao voltar do trabalho, José aguarda pacientemente o fluxo de carros para, enfim, adentrar a sua garagem. No exato instante em que vira o automóvel para entrar, uma motociclista ultrapassa-o pela direita. Ciente de que poderia tê-la atropelado, José buzina rapidamente, alertando-a do perigo. A moça, educada, e também protegida por um capacete, levanta o braço direito, estende a mão e cumprimenta José acenando com o dedo médio. José sequer identificou os xingamentos.
3. A noite fora exponencialmente quente e Pedro mal conseguira pegar no sono. Acordou várias vezes durante a noite, tamanho era o calor. De madrugada, sob uma temperatura mais agradável, adormeceu. Assim que adormecera, um veículo para em frente à janela de seu quarto. O barulho da buzina é intermitente, mas contínuo. Pedro levanta-se, vai até a janela e grita: “Ô, por favor!”, e volta para a cama. Silêncio. Pedro consegue ouvir a vizinha que sai e entra no carro. Ato contínuo, o motorista descansa a mão na buzina antes de partir acelerando o carro.
4. Joaquim aguarda na fila do Banco do Brasil. Ali, há muitos caixas eletrônicos, porém, poucos funcionam. É começo de mês e o fluxo de clientes no banco é enorme, embora gerentes e administradores sequer deem conta da balbúrdia que se instala na área dos caixas. Joaquim já aguarda na fila por aproximadamente uma hora. Conta o número de pessoas à sua frente, calcula o tempo que cada cliente demora-se no caixa, faz as contas, teme pelo tempo. Quando uma senhora permanece em contemplação diante de um caixa por uns quinze minutos, Joaquim se desespera: “Hoje fico sem almoço.” O tempo passa, mais dois clientes e é a vez de Joaquim. Um rapaz deixa o caixa e, subitamente, um senhor que não estava na fila toma seu lugar. Joaquim e os dois que aguardavam protestam com veemência. O senhor que furara a fila, volta-se calmamente e diz: “Tenho muito o que fazer. Não posso perder meu tempo.”
Os entrechos são curtos, simples e rasteiros, mas não deixam de ilustrar a cordialidade do brasileiro, sempre traduzida em provocações. O mesmo acontece nas redes sociais, onde as opiniões adquirem exponencial acidez, tal o grau de desrespeito e preconceito. Mas somos um povo benevolente, pacífico - apesar dos milhares que caem como fruta madura pelas ruas das cidades em razão da violência -, afável e hospitaleiro. Afinal, Deus é brasileiro! Podia ser diferente?

Um comentário:

  1. Deus deixou de ser brasileiro há muito tempo. Pacifico, benevolente? Discordo. Acomodado,e gosta de levar vantagem em tudo. E, com isso, se acha muito esperto. Na verdade, o que falta aqui é educação e civismo.

    ResponderExcluir