Revista Philomatica

sexta-feira, 30 de março de 2018

Fake do Fake: mais do mesmo!


Admitam ou não, a dissimulação é um dos constitutivos da natureza humana. Antes mesmo de ensaiar seus primeiros passos, o menino já não mais choraminga para ter sua fome saciada, mas para obter atenção. Tempos depois, correndo pelos campos, disfarça, inventa, fantasia desejos e vontades e, para satisfazê-los, aprende a fazer uso da máscara social.
Não há ingênuos nesse quesito! Ainda pequeno, o menino desenvolve com insuperável habilidade a dissimulação. Por uma razão ou outra, finge gostar ou não gostar. Os verdes anos obscurecidos pela poeira do tempo, e ele torna-se mais cruel. O interesse, grande vórtice que move o menino e o homem, adquire status bastante pessoal. Não raro, menino e homem voltam o olhar oblíquo para o próprio umbigo, que subtrai não só a visão periférica, mas faz com que ambos sequer enxerguem as pessoas à sua frente. A eles, chamemos agora egocêntricos, egoístas.
Os interesses, grande motor social, expandem-se, e seus tentáculos, antes circunscritos ao privado, ampliam-se absorvendo o público. As duas bandeiras – privada e pública – confundem-se, razão pela qual, a canalha política trata o público como se fosse coisa sua, manipulando-a em função de seus próprios interesses e em benefício de seus asseclas. Estes, como moscas no mel, agem nos bastidores, executando, muitas vezes, o serviço sujo. Não à toa os portugueses cunharam o aforismo: “Moscas apanham-se com mel, não com fel.”
Nessa nossa Era do Caos, um desses servicinhos sujos é a criação de notícias falsas, algo do qual tanto falei aqui. Afinal, que mal tem? Uma mentira aqui, uma calúnia ali, um boato acolá, ora, isso não mata ninguém! A polarização dos interesses, sob farisaísmo ideológico, tornou-se um grande negócio. Ambos os lados fazem uso do mesmo garfo, mas juram provar pratos diversos. Ao fazê-lo, não fazem nada além de dissimular; sofistas, utilizam-se de argumentos especiosos na tentativa de convencer e cooptar a massa para projetos que visam a satisfação de seus interesses. Nessa lógica, melhor e mais eficiente que matar é inventar narrativas, na tentativa de vergastar o opositor.
Ao leitor nada mais resta que desconfiar de tudo e de todos. Houve um tempo em que as pessoas davam certo crédito à imprensa, contudo, hoje, até mesmo a dita grande imprensa deixou-se corromper. Corrigindo-me: corrompeu-se há muito tempo, porém agora o faz de modo descarado.
A notícia, publicada no site IssoÉNotícia, informa sobre um levantamento realizado pela Associação dos Especialistas em Políticas Públicas do estado de São Paulo (AEPPSP), que, a partir de critérios elaborados por um grupo de estudo da Universidade de São Paulo (USP), o Monitor do Debate Político no Meio Digital, identifica os maiores sites de notícia no Brasil que disseminam notícias falsas e boatos. Estes, uma vez jogados nas redes sociais têm efeito semelhante ao de um rastilho de pólvora.
A notícia é velha, de janeiro do ano passado, mas como os interesses não se avelhantam, ela foi republicada e exaustivamente compartilhada por leitores ingênuos e sobretudo por maliciosos dissimulados de cidadãos ciosos em esclarecer sobre a verdade dos fatos – ou pós-verdades.
Ocorre que a notícia elenca uma série de características comuns aos sites que propagam notícias falsas e, dentre elas, as três primeiras chamaram-me a atenção pela obviedade, mas vá lá:
1. Foram registrados com domínio.com ou.org (sem o.br no final), o que dificulta a identificação de seus responsáveis com a mesma transparência que os domínios registados no Brasil.
2. Não possuem qualquer página identificando seus administradores, corpo editorial ou jornalistas. Quando existe, a página 'Quem Somos' não diz nada que permita identificar as pessoas responsáveis pelo site e seu conteúdo.
3. As "notícias" não são assinadas.[1]
Isto posto, bisbilhotando aqui e ali, descubro que tinha sob os olhos uma fake news sobre fake news, só que agora em uma página identificada! Vejam:


Uma matéria de janeiro de 2017 do IssoÉNoticia sobre um suposto estudo da USP foi reproduzida em março pela Esquerda Valente e agora mais uma vez pelo blog Contraponto.
Atualizando o alcance das matérias sobre o caso:
1) IssoÉNotícia: 138 mil compartilhamentos
https://www.issoenoticia.com.br/…/projeto-da-usp-lista-10-m…
2) Contraponto: 84 mil compartilhamentos
http://www.contraponto.blog.br/artigos/…/mbl-noticias-falsas
3) Pensador Anônimo: 2 mil compartilhamentos
https://pensadoranonimo.com.br/mbl-e-o-maior-difusor-de-no…/
Identificamos outras 5 fontes que somam menos de mil compartilhamentos. O site Esquerda Valente tirou a matéria do ar.
Mais uma vez tentamos esclarecer o caso.

No fim de janeiro circulou uma matéria da IssoÉNotícia sugerindo que havíamos feito um levantamento dos 10 maiores sites de notícias falsas do país. Esclarecemos nesta página que nunca havíamos feito tal levantamento que tudo passava de um grande mal-entendido. O site boatos.org deu uma nota sobre a notícia falsa (http://www.boatos.org/…/usp-lista-10-maiores-noticias-falsa…) e mais tarde a SuperInteressante elegeu o caso como uma das maiores notícias falsas da internet. O site corrigiu a matéria atribuindo o levantamento à Associação dos Especialistas em Políticas Públicas de São Paulo (AEPPSP) que teria se embasado em nossos estudos (todos publicados nesta página).
Ontem a página Esquerda Valente reacendeu a polêmica publicando uma matéria com a manchete "MBL é o maior difusor de notícias falsas, conclui pesquisa da USP" (http://aesquerdavalente.blogspot.com.br/…/mbl-e-o-maior-dif…). Hoje o mesmo Esquerda Valente insistiu e soltou outra matéria relacionada (http://aesquerdavalente.blogspot.com.br/…/estudo-da-usp-cla…) que levou a AEPPSP a solicitar que a menção à associação fosse retirada da matéria com a seguinte explicação: "Retiramos a publicação do ar depois da transformação de um post que realizamos em uma notícia falsa. A disseminação dessas informações nos traz muitos inconvenientes."
Mesmo com todo esforço em desmentir o caso, a matéria da Esquerda Valente sobre o suposto estudo chegou a mais de 45 mil compartilhamentos e requentou a matéria de janeiro da IssoÉNotícia que chegou a 101 mil compartilhamentos.[2]

Não bastassem os esclarecimentos, a notícia pipocou na última semana ao sabor dos interesses. Por isso, leitor, não importa a banda em que toque, desconfie sempre!


[2] Trechos extraídos da página do facebook do Monitor do Debate Político no Meio Digital
[1] https://www.issoenoticia.com.br/artigo/projeto-da-usp-lista-10-maiores-sites-de-falsas-noticias-no-brasil

domingo, 25 de março de 2018

Sons do silêncio


“O silêncio é como um câncer que cresce”, afirma Paul Simon, na célebre canção interpretada por ele e Garfunkel, seu amigo. Mas isso é questão de ponto de vista. Contudo, o que se viu na última semana só comprova o dito de Simon. A enxurrada de informação é tanta que estamos entorpecidos, o que é muito bom obrigado àqueles que diariamente se encarregam de nos transformar em seus títeres, sufocando-nos a garganta, impedindo-nos de gritar. Resta o silêncio.
Mas a culpa é só deles? Ora, não! Não mesmo! Temos nos mostrado um tanto displicentes com a vida que se esvai ao nosso lado, relapsos com a cortesia, indolentes com a natureza, indiferentes a tudo e só preocupados com nosso próprio umbigo e nossas ideiazinhas medíocres!
Na Libéria, dois sapiens ofereciam uma águia em extinção. Presa em um quintal, a ave mostrava debilidade física, asas e alma alquebradas; a corda que a prendia ao poste não ultrapassava um metro de extensão. Por um desses acasos que afrontam a natureza, apareceu um homem interessado em comprá-la. Negociação realizada, a homem deu voz de prisão aos vendedores; tratava-se de um oficial da polícia ambiental. A ave, depois de receber cuidados médicos, ganhou a natureza. No caso, alguns sussurros devassaram o silêncio, haja vista os sapiens terem transformado a vida dos animais na terra em um inferno.
Ainda esta semana, partiu Sudan, o último rinoceronte branco, representante macho dessa subespécie. Vale destacar que os sapiens também não proporcionaram uma vida fácil a Sudan, que passou a maior parte dela na República Tcheca, para onde foi enviado ainda menino. Nascido no Sudão (donde o nome), Sudan voltou para o Quênia, onde faleceu aos 45 anos. Mas, para que chegasse a essa idade, foi intermitentemente sedado para que seu chifre fosse cortado. Caso contrário, mesmo em santuários ecológicos, os traficantes poderiam tê-lo matado para atender à ignorância de outros sapiens, espécie dita racional. Com a partida de Sudan, apenas o sussurro de alguns homens e mulheres incomodaram o silêncio da grande massa amorfa e desinteressada.
Na Síria, crianças caem ao solo feito fruta madura ao sabor de bombas e torpedos que irrigam o solo árido das cidades. Malgrado o ressoar local das explosões e os gritos lancinantes da carne que sangra, e da vida que murmura por ajuda em seus últimos instantes, nos grandes centros da Europa e da América (também a Latina), os interesses silenciam poderosos, intelectuais e ativistas tout court.
À espera da terra arrasada, bombas e morteiros são tomados por fogos de artifício. Depois do longo silêncio que há de vir - e virá - com a morte de homens, mulheres e crianças, as grandes nações e a benemérita ONU, surgirá no horizonte pronta a tudo reconstruir. Haverá um grande ruído, que se transformará em alarido, gritos e berros, quando todos haverão de bradar sua comiseração e bondade. O silêncio há de ser quebrado!
No Rio de Janeiro e em centenas de outras cidades brasileiras, jovens pobres, homens, mulheres e crianças, quotidianamente caem como frutos podres e adentram o silêncio da morte e o esquecimento. Os sapiens da canaille, seja ela de Brasília, Rio ou Maceió, recolhem-se ao silêncio. Covardemente, calam-se face ao sofrimento e gritos lancinantes de desespero, desalento e dor! A massa, embrutecida, prefere a hostilidade, a peleja rasteira de ideias nas redes sociais, agredindo-se mutuamente e fazendo ecoar, cada uma das partes, o eco triunfante da verdade, sufocando o rumorejo daqueles que, de fato, provam do cálice amargo da perda e do sofrimento.
A indiferença prevalece, as ideias gritam nos panfletos, os sapiens autoproclamados (ou por suas corriolas) líderes anunciam aos berros o mundo ideal e a massa, fadada ao abandono, sussurra o som do silêncio. A saída parece ser o clamor, ainda que silencioso, da partida. Abraçar o silêncio, enfim!

sábado, 17 de março de 2018

Que graça tem a tolerância?


Parece-me, nenhuma! À primeira vista, a resposta ao título parece surpreender, afinal, na Era do Caos em que vivemos, é incontestável a militância em favor dos direitos humanos, ainda que em muitos aspectos tenhamos caminhado para trás. Hoje, para reivindicarmos alguma tolerância, sufocamo-nos em rótulos e fobias. Não bastassem os preconceitos raciais e sexuais, compartimentamos as variantes, e incitamos a militância, acreditando assim salvar o mundo da intolerância.
Para cada rótulo, seja ele racismo, homofobia, gordofobia, machismo, misoginia, misandria, sexismo, antissemitismo, misantropia, etnocentrismo, xenofobia, etc etc etc há uma antinomia propalada pela militância, lamentavelmente, por meio de discursos líquidos. Ocorre que o excesso de rótulos mais atrapalha que ajuda, isso porque os usuários se perdem na defesa de uma causa específica, relativizando as demais. Ao fazê-lo, na maioria das vezes apropriam-se das armas e métodos do opressor e/ou preconceituoso racista, capitalista, facista ista ista (sonoro isso, as pessoas adoram)!
Nas redes sociais a intolerância pulula, e não raro vem embalada em frascos diminutos contendo pequenos textos denunciatórios e opiniões disseminadas em comentários a reportagens ditas politicamente incorretas. Ao contestar o não politicamente correto, o internauta escorrega, divide o prato com o intolerante e janta do mesmo ódio. Satisfeito, não se dá conta de que sequer conseguiu disfarçar o ódio que habita sob sua epiderme.
Tratando-se de celebridades idealizadas, partidários da Escola do Ressentimento, sobretudo, cometem certo deslize e se mostram tal como são ao torcer pontos de vistas para que estes se adaptem a um discurso inconspurcado. É a velha história de ajustar a causa ao poema. Temerosos, sub-repticiamente lançam mão do “eu lírico” para justificar o que consideram politicamente incorreto, mas tudo está lá, na obra, na letra da canção! Ora, ao fazê-lo, preconizam a perfeição em seres humanos passíveis de erro! O mal, a raiva, o ódio, querido leitor, não é algo extrínseco ao homem. Muito pelo contrário! O mal tem natureza humana, senta-se à mesa do jantar, seja em lares pudicos e conservadores, seja nas moradas dos mais liberais e dedicados defensores de rótulos e minorias.
Ao reproduzir uma notícia falsa, por exemplo, no intuito de fustigar aquele que não escolheu a mesma ideologia que ele para ler e interpretar o mundo, o internauta, lá no fundo, assoma o desejo mais profundo de vergastar seu adversário. Afinal, se esquece de que toda ideologia é mentirosa e crê-se “o dono” de supostas verdades. E não falo aqui de seu desejo, também profundo, de se expor nas redes sociais como humanista bonzinho, fazendo disso um hábito fictício, não raro contagioso e, arrisco, pornográfico.
As ideias se relativizam e o que se nota é um atraso cultural, cuja pungência em nossos dias se assemelha a uma doença em estado de metástase. São opiniões e textos pautados por singular brutalidade, de valor estético rasteiro, e que creditam toda e qualquer injustiça social à luta de classes, por exemplo. O preconceito linguístico aventado pelo aluno vislumbrado com o mote da supremacia da oralidade à norma erudita beira à ingenuidade. “Bagna-se” de ideias geradas em uma diegese linguística, apartada do mundo real, esquecendo-se de que seu guru, nos momentos raivosos, clama-se pela guilhotina àqueles que não se ajustam aos seus dogmas.
Nesse panóptico digital, todos vigiam-se continuadamente e a alienação advém do fato de que para aglutinar a atenção e mobilizar seguidores e likes, o discurso torna-se amorfo, as opiniões são instáveis e os resultados são incalculáveis. Não por outra razão, tudo é fugaz e se dispersa ao sabor de novas crenças e ideologias, afinal, fatos não interessam mais, pois, estes, para o bem ou para mal, trazem a acidez da verdade. O que sobra é ler a favor de uma ideologia, algo que, trocando em miúdos, é o mesmo que não ler de modo algum!
E tudo isso, c'est pas la faute à Voltaire!



sexta-feira, 9 de março de 2018

A fuga de Graziella, a cachorrinha de Machado de Assis


Não se pode levar tudo ao pé da letra, sobretudo quando se trata de escritores cheios de estratagemas e artimanhas. Esqueça, por exemplo, aquele entrecho de Memórias póstumas em que uma borboleta preta adentra o quarto de Brás Cubas, esvoaça em torno da venal e voluntariosa personagem, pousa em sua testa, provocando-o, até que Cubas, aborrecido, lança mão de uma toalha e atinge mortalmente o pobre lepidóptero.
Não, não se pode ler de modo rasteiro e deduzir que Machado não dava a mínima a esses pobres insetos cujas asas assemelham-se às palhetas de um Monet ou um Van Gogh. De minha parte, prefiro o lado madrugador do Bruxo, revelado em uma crônica da Semana, de fevereiro de 1893. O entrecho é delicioso: “É meu velho costume levantar-me cedo e ir ver as belas rosas, frescas murtas, e as borboletas que de todas as partes correm a amar no meu jardim. Tenho particular amor às borboletas. Acho nelas algo das minhas ideias, que vão com igual presteza, senão com a mesma graça.”
Machado não tinha apreço só às borboletas. Curioso também é um fato ocorrido na vida do grande escritor em fins de fevereiro de 1879. No episódio, a protagonista é ninguém menos que Graziella, uma tenerife mimada por Machado e Carolina, sua esposa. A cachorrinha ganhou o nome em homenagem a uma heroína romântica de Lamartine.
Machado, à época, adoecido, transferiu-se do Rio de Janeiro para Friburgo, onde passou uns três meses repousando. Foi quando deixou Graziella aos cuidados de Clara, uma empregada. Acontece que Graziella, curiosa, resolveu explorar as adjacências e não voltou para casa. 
Alarmada, Clara entra em contato com os vizinhos, que tinham sido incumbidos pelo casal de olharem a casa enquanto estivessem ausentes. Logo que recebe a notícia, Machado telegrafa para amigos e lhes pede que coloquem anúncio nos jornais, oferecendo uma gratificação de cem mil-réis àqueles que encontrassem e devolvessem Graziella.
Assim que recebeu o telegrama de Machado, Joaquim Arsênio Cintra da Silva, amigo do escritor, prontificou-se em publicar anúncios no Jornal e na Gazeta, incumbindo-se ainda de fazer outros anúncios minuciosos, logo que tivesse mais detalhes do desaparecimento.
Nos dias 2 e 3 de março de 1879, apareceram no Jornal do Commercio e na Gazeta de Notícias o seguinte texto:


Os anúncios deram resultado, pois Graziella foi encontrada e entregue no endereço indicado, reunindo-se ao casal logo depois de sua volta ao Rio de Janeiro. Graziella, por sua vez, deve ter abanado o rabinho, feliz por rever o Bruxo do Cosme Velho, que não amava só as borboletas.
Curiosa, Graziella não quis mais saber de surpreender o escritor durante o longo tempo em que viveram juntos.   

sexta-feira, 2 de março de 2018

Roda quadrada egípcia é encontrada no Brasil

Em busca do carro das ideias, corro os olhos por diferentes periódicos e sites de notícia, o que me levou, uma vez mais, a refletir sobre os benefícios e malefícios da imprensa.
Em 1859, na Revista O Espelho, Machado de Assis publicou um pequeno texto chamado “A reforma pelo jornal”. Nele, chamava o jornal de fiat humano, algo que faria tremer as aristocracias; dizia ainda que o veículo tende à unidade humana, ao abraço comum e que a “primeira propriedade do jornal é a reprodução amiudada, é o derramamento fácil em todos os membros do corpo social”.
Mas, hoje, refletindo sobre o que nos é oferecido, cabe questionar: que abraço é esse? O que nos é derramado de modo tão democrático? O que tem feito esta alavanca que Arquimedes pedia para abalar o mundo?
Um leitor contumaz de livros, objetos que trazem “alguma coisa de limitado e de estreito se o colocarmos em face do jornal”[1], ao deparar-se com os jornais atuais, choca-se e tem ímpetos, no mínimo, psicopáticos: perde seus afetos mais profundos, a incapacidade de respeito, arroga-se extremo egocentrismo e nutre vontades de matar, de modo lento e doloroso, o jornalista ou seja lá quem for que tenha escrito o texto.
O porquê disso tudo? Ora, leitor, não há mais grande jornalista. Este espécimen está extinto. Vivemos a época dos grandes furos de reportagem e da venda de ideias; não se vendem mais fatos. A imprensa, zelosa de seus interesses, deforma a realidade, esconde- a do leitor, que, na origem, era sua razão de existir. A imprensa não mais precisa de leitores. O poder, naquilo que este representa de mais pernicioso, é seu grande financiador, sua razão de existir. Por isso, e só por isso o abraço comum que hoje recebemos da imprensa é um abraço de Judas; somos por ela traídos todos os dias. Regados com baldes de estupidez e obtusidade, nós, o jardim que ela crê ressequido, incapaz de florescer por nossa própria conta ao orvalho de nossas escolhas, somos alienados por essa meretriz. 
É certo que sempre lançamos mão uma ideologia para interpretar o mundo, mas, com o desparecimento do jornalista, adentraram as redações os estagiários. Estes, em geral doutrinados em criar factoides, insistem que leiamos a mesma cartilha que lhes foi oferecida, subtraindo-nos o conhecimento e nossas próprias escolhas. O resultado é que até mesmo nos assuntos mais palatáveis e exóticos, a imprensa tem se empenhado em entorpecer e debilitar o leitor.
Há pouco li uma matéria intitulada Experimento pode ter resolvido mistério na construção das pirâmides[2], de autoria de Thaís Uehara. Em seis curtos parágrafos, Uehara mostra-se maravilhada com a provável descoberta de um grande mistério: como os egípcios alinharam a pirâmide de Quéops com os pontos cardeais. Até aí, vá lá, cada um maravilha-se com o que quer. Mas o imperdoável é Uehara ter afirmado em um texto tão curto e simples, em que às sinapses não é oferecido trabalho algum, que “os egípcios sequer conheciam a roda, quanto menos bússolas.”!!!
Ah, minha apedeuta, por que insiste em nos abraçar assim, em regar nosso jardim com tanta estupidez? Pergunto-me se Uehara não se deixou levar por Glen Dash, autor do artigo publicado no Journal of Ancient Egyptian Architecture, do qual chupou suas garatujas, assinando-as. Certo, a partir deste exemplo temos um parâmetro do que se oferece aos leitores todos os dias. O lamentável é que jovens leitores, dada a condição atual de nossa educação, acreditarão em Uehara e acharão que os belos carros egípcios expostos no Museu do Cairo são invenções hollywoodianas.
Embora a bússola tenha sido inventada pelos chineses muito tempo depois, talvez nós é que não tenhamos descoberto a bússola egípcia. Digo isso porque em 1906, na tumba de Kha foi encontrado um objeto oco de madeira com uma tampa articulada[3] que, segundo Amelia Sparavigna, física da Politécnica de Turim, “poderia ter sido usado para determinar a inclinação de certos ângulos. Os números se assemelham a uma bússola, com 16 pétalas espaçadas cercadas por uma forma circular em ziguezague, com 36 cantos. Quando o lado direito do objeto é colocado em um ângulo, Sparavigna acredita que um fio de prumo iria mostrar sua inclinação no mostrador circular”.
Felizmente, Sparavigna nos dá um abraço de alento, negado por Uehara! Mas Sparavigna não é jornalista! Salva pela física, acreditemos, pois, na imprensa! Ela não mente, não pactua com os ímpios, não comete falso testemunho! Nunca!






[1] MACHADO DE ASSIS. O jornal e o livro. Publicado originalmente no Correio Mercantil, Rio de Janeiro, 10 e 12/01/1859.
[2] http://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/historia-hoje/misterio-alinhamento-ramides.phtml#.WpbslejwbIX
[3] http://antigoegito.org/artefato-egipcio-pode-ter-sido-o-primeiro-transferidor-do-mundo/