Revista Philomatica

sexta-feira, 27 de abril de 2018

Absurdos: da educação e d’A Cantora Careca, de Ionesco


O site do periódico a favor do partido publica hoje uma reportagem inusitada: “Famílias fazem sacrifício para filhos estudar no exterior”. O lado positivo é que os chamados intercâmbios estão mais acessíveis, não são mais só aqueles poucos eleitos que têm a oportunidade de, digamos, conscientizarem-se dos contrastes entre o que o governo nos oferece em matéria de educação, e o que está disponível nos ditos países de primeiro mundo. O lado sombrio é ver o dono de uma renomada agência promotora de intercâmbios afirmar: “É muito comum sabermos que o pai está vendendo o carro dele para pagar o intercâmbio do filho, e é muito bonito ver isso.”
!!! E continua o Sr. Garcia: Você vê que são famílias de poder econômico limitado, mas o pessoal vê como investimento. Muitas vezes o pessoal trabalha, mora com a família e vai juntando um dinheirinho, porque sabe que o idioma é mais importante na empregabilidade do que fazer um curso universitário de qualidade ruim ou fazer uma pós-graduação ou extensão universitária que não agrega nada.”
Segundo o Sr. Celso Garcia, que lucra com o desespero do alunado (não o critico, afinal, alguém sempre lucra, o governo lucra, a canalha de Brasília e do judiciário lucram!), “a questão do idioma é sempre o ponto número um”. É claro, ele precisa vender seu peixe.
Mas, consultando os meus botões, há aquele cuja sabedoria me surpreende sempre; pois bem, ele me sussurrou algumas perguntas: mas o Sr. Garcia não sabe que em seis meses, um ano, poucos, muitos poucos, tornam-se fluentes em um idioma, seja ele qual for, a ponto de isso por si só garantir a dita empregabilidade? Pois é, replico em concordância ao que ele acabara de dizer: Eu mesmo, acrescento, conheci alunos no exterior que não tinham sequer o conhecimento básico do idioma e, chegando lá, precisaram começar do bê-á-bá, repetindo “Eu me chamo... Eu sou brasileiro.” Aquiescente, ele rememora e concorda. E diga-se, acrescento, eram alunos que deixaram o Brasil em busca de um doutorado em conceituadas universidades. Voltaram prontos para o mercado de trabalho?, pergunto. Ele, escapando da casinha que o mantém fixo na camisa, olha-me de soslaio e é como tivesse lançado um sorriso irônico por entre as dobras do tecido.
O Sr. Garcia faz parte de uma engrenagem colocada em movimento há tempos pelo governo, cuja mobilidade não tem outro fim que o sucateamento da educação. Não acho bonito ter que se desfazer dos míseros bens materiais que possui para poder pagar um cursinho de língua na esperança de que isso seja garantia de bom trabalho. Bom trabalho para quem? Para os empregadores? Vejam: hoje há empresas que exigem do candidato fluência em inglês, conhecimentos de espanhol, além de todos aqueles apetrechos criados pelos especialistas em recursos humanos, enfim, tudo isso e otras cositas más em troca de um mísero contracheque, às vezes, de dois salários mínimos. Resumo da ópera: o carro vendido para o intercâmbio, nessa lógica, será readquirido décadas depois!
Deixemos o Sr. Garcia acumulando seus caraminguás com a ilusão dos tolos e vamos a um absurdo mais palatável e não tão obsceno quanto a educação brasileira; falo d’A Cantora Careca, de Ionesco.
Hoje, 26 de abril de 2018, o teatro Huchette, em Paris, celebra seu 70o aniversário com a obra de Ionesco, A Cantora Careca, que detém um recorde de longevidade nos palcos, uma vez que está em cartaz neste mesmo palco há nada menos que 61 anos.
Considerando-se a recepção da peça quando de sua estreia, isto é um grande feito, pois, à época, as críticas foram violentas. Mas falemos de Ionesco, esse gênio do teatro do absurdo: nascido na Romênia, filho de pai romeno e mãe francesa, Ionesco vive na França entre os anos de 1913 e 1925; termina seus estudos de literatura francesa na Universidade de Bucareste e torna-se professor de francês e crítico literário. Retorna a França para escrever uma tese que jamais terminará, mas o que deixou é de uma monta inigualável: A Lição, As Cadeiras, Rinoceronte, O Rei está morrendo; ou seja cerca de trinta peças teatrais, ensaios e alguns romances. E quem quer saber da tese?
A Cantora Careca, sua primeira obra teatral, Ionesco qualificou-a de “teatro de escárnio”, cujo subtítulo era “ante-peça”. A ideia lhe ocorreu depois de aprender inglês (algo de extrema importância ainda hoje, ao menos para o Sr. Garcia!) com o método Assimil: frases curtas, desarticuladas, clichês, tudo junto e misturado resultando em um diálogo muito louco. O título original Inglês sem dificuldade, foi substituído por A Cantora Careca, em razão de um deslize de um ator durante o ensaio.
Emblemática obra do teatro do absurdo, o texto foi encenado por Nicolas Bataille em 1950. Para Bataille, o ponto de partida da peça é “um casal que não tem nada a dizer um ao outro depois de vinte anos de casamento, e um outro que não se reconhece mais”. Diante disso, comentários frívolos, absurdos e incoerentes são trocados.
A primeira apresentação deu-se em uma pequena sala no Quartier-Latin, no Théâtre des Noctambules, em 11 de maio de 1950, às 18 horas. Mal recebida pelo público, as apresentações foram interrompidas logo após a estreia (25 apresentações foram canceladas).
Depois, em 16 de fevereiro de 1957, a peça volta em cartaz no Théâtre de La Huchette, em Paris, e finalmente conhece o sucesso. A Cantora Careca continua em cartaz provando entre outras coisas, que o teatro e as humanidades têm muito a dizer, e não só as “praticidades” como quer o Sr. Garcia.

terça-feira, 24 de abril de 2018

Delírios literários


Lá pelas tantas de a Poética, Aristóteles afirma que os poetas são gênios e que os loucos deliram. A loucura tem sido, parece, o pão quotidiano que nos tem mantido de pé nesses últimos tempos. A procura pelo certinho anda tão árdua e exaustiva que temos nos tornado direitos demais. Não por outra razão acredito que a vida, os acontecimentos, enfim, até mesmo a história caminha em movimentos pendulares. Às vezes, com o soprar dos ares, o pêndulo avança - até mais da conta -, tanto é que somos obrigados a presenciar a derrocada moral daqueles outrora chamados príncipes do Império – hoje meramente ditos senadores (digitei pérfidos, o adjetivo, ante de senadores, mas o pensamento não se ajustou à frase).

Mas os delírios são de outra ordem: adentram à literatura, ou melhor, orbitam sua periferia. Cortázar fala em cozinha literária. Algo, leitor, parecido com deixar tinta no papel, alimento para o esquecimento. Pois bem, ao sair em busca de alguns artigos para um aluno, descubro a facilidade dos buscadores da internet. Vou lá e digito Pai Goriot, minha palavra-chave. De pronto, uma explosão de resultados. Obra de finado, digo, de gênio, nenhuma, nada, sequer uma iguaria! Mas, gororoba, bóia, rango, ah, isso havia em abundância! Perfeita cozinha literária!

E não é que no refrigerador da cozinha acho eu algo exótico? Um prato pequeno, perdido atrás dos potes de condimentos e de muita salada metida a prato principal. Um texto publicado no site chamado Esteta e que compara o futebolista Neymar à personagem Rastignac, de Balzac.

Segundo o autor, o simples fato de o jogador ter se transferido para Paris é razão suficiente para equipará-lo a Rastignac, personagem arrivista de Le Père Goriot. O autor do texto tem como fio condutor a célebre frase da personagem balzaquiana: “À nous deux maintenant!” (Agora, é entre nós dois!).

Vale contextualizar o entrecho: ao final de Le Père Goriot, Eugène de Rastignac, o jovem e ambicioso estudante, do alto do cemitério Père Lachaise, vê a cidade de Paris e finalmente compreende o papel da cidade, e é exatamente nesse instante que lança ao ar o célebre desafio.

Ora, isso é muito pouco meu caro futeboleiro (acho que o neologismo é bem a cara do texto dele – e, por que não, do meu?; às vezes me é impossível um certa dose de autoironia!)! Poderias, afora ter insistido na tecla do arrivismo, escorregado os dedos sobre aquela em que explicaria muito da sua associação, meu caro autor: por exemplo, o fato de Balzac ter se inspirado em Thiers, jovem liberal, que mais tarde se tornaria presidente da república. Todos sabemos, a política produz o pior tipo de arrivista, não porque são arrivistas tout court, mas porque, para chegarem ao topo, associam-se a pessoas da mais alta suspeição. Ademais, não me ocorre de Rastignac ter se metido em tenebrosas transações (ao menos em Le Père Goriot), algo como sonegar milhões do imposto de renda em dois países e, ainda assim, ter suas dívidas perdoadas por acordos escusos.

É claro que nosso autor menciona o fato de Neymar ser avesso aos livros e, mesmo depois de um bom tempo na Cidade Luz, mal balbuciar a língua de Molière. Isso só prova a disparidade da comparação: se há algo que faz de Rastignac uma personagem singular é o uso dos neurônios. Esse jovem lobo de dentes longos, como se diz de um arrivista na França, tem constituição e essência bastantes substanciosas que, honestamente, não resvalam na futilidade do nosso spécimen.

Trago alguma arrogância na prosa? Vá lá, que seja! É lamentável que pseudo-historiadores lancem mão do copia-e-cola no intuito de justificar a pobreza de espírito que vejo no nosso homem da bola, cujas sinapses – para ele, felizmente – produzem-se entre os pododáctilos. A meu ver o mocinho de Mogi das Cruzes, que fazia e faz Chico Pinheiro papagaio, traz uma malandragem que não cai bem em Rastignac, provinciano do sudeste da França disposto a conquistar Paris. Ademais, Rastignac chega por lá pobre, ao contrário do tupiniquim e, cá entre nós, se nosso historiador conhecesse um pouco do jeito francês de ser, ia saber que do futebolista só querem as pernas e os pés, até mesmo porque quem o paga são os árabes. Et voilà!

quinta-feira, 19 de abril de 2018

Humanizando o passado


Mais uma vez a canalha política confirmou o clichê de que o Brasil não é para principiantes. Olhe para as leis, leitor, e veja como essas senhoras tornaram-se dissimuladas e traiçoeiras. Foi-se o tempo em que a elas nos dirigíamos respeitosamente e bradávamos hora ou outra dura lex sed lex. Volúveis, fanfarronas, hoje elas riem nas nossas caras e estão tão maleáveis quanto as verdades - ou pós-verdades - na boca suja da politicalha. A situação tem se tornado indigesta a ponto de até mesmo as generalidades na imprensa adentrarem a folha política - ou de polícia -, uma vez que celebridades, tomando-se por formadores de opinião, decidiram também vender suas pseudo-ideias.  
Parece-me que estamos a cada dia menos humanos. Não por outra razão, fui buscar a história de uma brasileira nas páginas francesas do Le Figaro. Trata-se de Marina Amaral, artista aqui da terrinha, cuja ocupação é passar horas e horas a fio trabalhando em fotos monocromáticas. Tudo o que faz, afirma Amaral, é tentar humanizar documentos, o que não deixa de ser ironia, comparando-se sua singeleza artística à truculência política.
Marina Amaral foi notícia aqui só porque, recentemente, foi notícia lá fora. Entrevo aí uma nesga do nosso velho complexo de vira-lata. Se o gringo diz ser bom, então tá, reconhecemos que é de fato bom. O lixo, a imprensa teima em nos oferecer diariamente, como o café, cujos melhores grãos são exportados e a nós, oferecem-nos palha e casca torradas, talvez pensando que não sejamos capazes de digerir pérolas, como as produzidas por Marina Amaral.
A artista trabalha em fotos pungentes de forma meticulosa e o caso de Czeslawa Kwoka foi singular. Kwoka tinha 14 anos quando, em 12 de março de 1943, sucumbiu no campo de Auschwitz, logo após ter recebido uma injeção de fenol em seu coração. Pouco antes, ela havia sido espancada por um Kapo e fotografada sob diferentes ângulos. Sua história jazia desconhecida do público até 12 de março último, quando Marina Amaral, tocada pelas imagens da garota ferida, mas que mantém a cabeça erguida, resolveu colorir suas fotos monocromáticas.
“Eu queria dar a ela uma chance de contar sua história e dar às pessoas a oportunidade de ver seu rosto em cores pela primeira vez”, disse a artista. Compartilhada no Twitter pelo memorial de Auschwitz, na Polônia, no dia do aniversário da morte de Czeslawa Kwoka, as fotos coloridas imediatamente viralizaram na web. “Recebi mensagens de todo o mundo, de pessoas totalmente diferentes, que entendiam minhas intenções”, afirmou Marina.
Aos 25 anos, esta colorista digital já conquistou um enorme público graças às fotos históricas em preto e branco às quais adicionou cor. Martin Luther King, Elvis Presley, Albert Einstein, a Rainha Elizabeth II, todos eles ficaram sob seus dedos de fada. A jovem brasileira, que já trabalhou em mais de duzentos clichês, afirma desenvolver uma atividade à qual não estava predestinada, pois estudava relações internacionais. Seu trabalho de formiguinha adveio depois de descobrir na internet uma coleção de fotos coloridas da Segunda Guerra Mundial. Marina então decidiu reproduzir a técnica, meio que intuitivamente e, com o tempo, descobriu seu próprio jeito de trabalhar.
Quando finalmente encontra uma foto acessível, “com uma história pungente por trás dela”, Marina inicia um processo de investigação sobre a origem e a história da foto. Esse trabalho demanda um tarefa meticulosa, cujo objetivo é fazer com que a imagem permaneça o mais fiel possível em relação ao slide. Isso pode durar semanas, explica Marina. “Se, por exemplo, eu tenho uma imagem de um conflito armado, vou procurar as cores originais dos uniformes, medalhas, botas, veículos, pele, olhos e cabelos da pessoa ou personagens, quando é possível. Eu também tento encontrar instantâneos recentes dos locais das fotografias”, detalha Marina.
Todo o trabalho artístico de Marina faz com que o passado seja redescoberto de forma diferente. Marina não descobriu a pólvora, diga-se, já que o processo de colorir fotos não é novo, traços podem ser encontrados já em 1840 nas obras do famoso fotógrafo suíço Johann Baptist Isenring, contudo, Marina é prata da casa, e só por isso deve ser incensada, admirada. Infelizmente, o espaço que as redes sociais concederam a Marina só encontrou correspondente na imprensa francesa, sob a pena da jornalista Ludivine Trichot.
Para conhecer o trabalho de Marina acesse:
E se você se apaixonar pelo trabalho da artista, há o livro The Colour of time: a new history of the world (1850-1860), de Dan Jones & Marina Amaral, lançado recentemente pela Hardcover. É só apreciar!

Foto: Czeslawa Kwoka, vítima da barbárie nazista no campo de Auschwitz, Memorial de Auschwitz/Marina Amaral.

domingo, 8 de abril de 2018

Salvem o Homem!

“O Evangelho fala ao meu coração”, escreveu um dia Rousseau. Machado de Assis, que costumava escrever nas horas mortas, em uma de suas crônicas afirmou que a tragédia do Gólgota faz parte dessa meia dúzia de assuntos que não envelhecem nunca. E mais: Machado dizia que “o belo sermão da Montanha, as parábolas de Jesus, os duros lances da semana divina, desde a entrada em Jerusalém até à morte no calvário, e as mulheres que se abraçaram à cruz, [...] tudo isso [...] faz sentir e pasmar”.
O Filho do Homem, em um de seus últimos e dolorosos lances, pediu ao Pai que perdoasse os homens porque estes não sabiam o que faziam. Se não me falha a memória, depois de ter chegado ao local da crucificação e, diga-se, ter sido preterido a Barrabás, o ladrão. Coloquei a última parte do parágrafo anterior no imperfeito, embora desconfie ter cometido não um erro gramatical, mas moral. Talvez o tempo presente verbal fosse mais justo com nosso estado de coisas.
Pensando nas linhas em branco à frente, não deixo também de pensar em Rousseau e Machado, homens que talvez soubessem o que faziam. Ocorre-me também que faziam parte, de certo modo, daquela pequena parcela que maneja as ideias com sensatez, longe da maioria, que mantém as engrenagens girando por pura força bruta!
De qualquer modo, mesmo entre os pecadores surge uma centelha de esperança. Entre as notícias da última semana, uma delas chamou a atenção por seu caráter insólito. Republicada em diversos periódicos, poucos notaram um quê de poeta e louco no agressor do ator que representava o soldado romano, sim, porque só poetas são gênios e só os loucos deliram – e está aí Aristóteles que não me deixa mentir! Gente normal, centrada em seus próprios interesses, defende Barrabás!
Vá lá, contextualizando a prosa acima: na semana santa passada, em uma representação da Crucificação, na cidade de Nova Hartz, Rio Grande do Sul, um homem invadiu o palco para defender O Cristo, atacando o ator que representava um soldado romano, justamente no instante em que este fustiga o Filho do Homem com uma espada. O vídeo tornou-se viral e provocou risos e comentários da massa hipócrita, que, não sei porque razão, resolve praticar o humanismo e a caridade, nessa única semana, esquecendo-se de que os anos são feitos de dias, semanas e meses.
O fato é que depois de os homens terem optado por Barrabás e matado o Filho do Homem, alcunha que o identificava com a humanidade, os homens mataram o próprio Pai. Célebre é a frase: “Deus está morto.” Contudo, alguns poucos insistem em fugir da desesperança, o que irrita muita gente. Recebi, há dias, trechos de uma entrevista antiga em que o jornalista Geneton Moraes Neto entrevistava o poeta Ariano Suassuna (ambos mortos). Veja você leitor, o porquê de alguns poucos se apegarem ao metafísico e disso fazerem vibrar a vida:

Geneton: Você (pausado), acredita em Deus?
Suassuna: Acredito!
(Olhar incrédulo de Geneton.)
Geneton (olhar irônico): Como é isso?
Suassuna: Eu não conseguiria conviver com essa visão amarga, dura, atormentada e sangrenta do mundo. Então, ou existe Deus ou então a vida não tem sentido nenhum. Bastaria a morte. Leandro Gomes de Barros, a meu ver, formulou muito melhor o que eu disse. Essa pergunta... que a pergunta mais séria que as pessoas que não acreditam em Deus pode fazer aos que acreditam. Repare, ele disse: “se eu me encontrasse com Deus, seu conversasse com Deus, iria lhe perguntar: por que é que sofremos tanto, quando viemos pra cá? Que dívida é essa que o homem tem que morrer pra pagar? Perguntaria também como é que ele feito, que não dorme, não come, e assim vive satisfeito. Por que foi que ele não fez a gente do mesmo jeito? Por que existem uns felizes? E outros que sofrem tanto? Nascidos do mesmo jeito, criados no mesmo canto? Quem foi temperar o choro e acabou salgando o pranto?”
Veja que coisa linda!, afirma Suassuna.
(Olhar irônico e incrédulo de Geneton! Olhar da razão superior!)
Suassuna (continua): Isso coloca em questão a própria existência de Deus, porque é como se Deus tivesse querido o choro e acabou errando na mão, como se Deus fosse capaz de dar um erro, e infringido um sofrimento terrível ao ser humano. “Quem foi temperar o choro e acabou salgando o pranto?” Pois é, então Deus pra mim é uma necessidade. Se eu não acreditasse em Deus eu seria um desesperado.
(Olhar e expressão de fé de Suassuna.)


Mas Suassuna era poeta – ou louco, pode argumentar muita gente, sobretudo a juventude desesperançada e perdida de hoje. Mas não é só a juventude, há aqueles que já se tornaram autobiográficos, e, por se acharem transcendentais, matam o Filho do Homem quotidianamente. Ontem, por exemplo, o historiador Boris Fausto comentou a empreitada do ex-presidente condenado à prisão. Segundo Boris Fausto, o ex-presidente está empenhado na construção de uma imagem grandiosa, a do Cristo, que se sacrificou pela humanidade; um Cristo leigo, no caso. E nós, mortais, continuamos a escolher Barrábas a cada quadriênio! Pobres de nós! Continuamos a não saber o que fazemos!